Self

Outras Ondas* – Banidos do paraíso

“E lhe deu esta ordem: de toda árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque no dia em que delas comeres, certamente morrerás. (…) vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos, e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe o fruto e comeu, e deu também ao marido, e ele comeu. Abriram-se, então, os olhos de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de figueira, e fizeram cintas para si”.

O mito de Adão e Eva, protagonistas da criação na cultura judaico-cristã, vai além de uma explicação religiosa sobre o surgimento da humanidade. A linguagem simbólica presente nas escrituras bíblicas também nos apontam para o sacrifício inevitável à ampliação da consciência.

O fruto do conhecimento é descrito, antes de tudo, como algo bastante perigoso: ao simplesmente tocá-lo, o homem ganha a capacidade do discernimento entre o bem e o mal das coisas – e, obviamente, de si próprio. Ganhamos, com ele, a chance de discernir e julgar. Passamos a atribuir valores ao que nos cerca.
Tais atributos são despertados no homem graças à influência da serpente. No texto bíblico, ela não é apresentada como o demônio, mas sim como um fruto da criação divina – “o mais sagaz dos animais selvagens”. Ela oferece à mulher a tentadora chance de aproximar-se a Deus. Ele reinava como único detentor do poder do entendimento. Comendo do fruto, podemos entendê-lo melhor, pois sentimos a força de Sua plenitude.

Mas, antes de qualquer maravilha, a primeira percepção do homem ao comer do fruto do conhecimento é perceber a própria vulnerabilidade, expressa pela nudez. Estar despido nos remete à inocência e à naturalidade. Mas, desde Adão e Eva, interpretamos tamanha transparência como fragilidade. Ganhamos roupas, que nos protegem do julgamento alheio e promove a interação entre os iguais sem a exposição crua da intimidade.

Jung chamou essas “roupas” de personas – termo vindo do latim, usado para designar as máscaras usadas por atores na antiguidade. As máscaras são tão múltiplas quanto são os nossos campos de interação com os demais: a profissional, a amiga, a mãe, a religiosa, a ativista, a vizinha… Mudam constantemente a partir do que a situação exige. Deus presenteia o casal primogênito com peles de animais que deverão ser usadas a partir de então. Uma imagem bastante significativa: ao “nos vestirmos de animais”, associamos simbolicamente atributos inerentes aos mesmos. Tal assimilação é a base de diversas culturas religiosas primitivas. Entre elas, a dos xamãs. O exercício da consciência passa também pelo reconhecimento de cada uma dessas personas: o quanto são parecidas entre si, as dificuldades que temos em trocá-las e a confusão entre o que representam e o que realmente somos.

A morte presente na advertência de Deus sobre a árvore do conhecimento está relacionada ao fim da inocência. Ela nos limita, mas também protege. Quando somos tocados pela consciência, somos chamados a agir. Os olhos abertos não veem somente a própria nudez, mas avaliamos o cenário que nos envolve. Com tamanha percepção, fica impossível continuar vivendo no Éden. Banidos, Adão e Eva passam a observar a completude do paraíso como um desejo inalcançável, protegido por anjos que impunham espadas. Instigante, mas perigoso – assim como era a Árvore da Vida.

A consciência também impõe sobre os dois grandes sacrifícios. Para Adão, a necessidade do trabalho (“do suor do rosto comerás o teu pão”) e a consciência da morte (“até que tornes à terra, pois dela foste formado: porque tu és pó e ao pó tornarás”). Eva foi condenada a sofrer com os sofrimentos da gravidez e a dor do parto, além da submissão ao marido.

A serpente, pivô do rompimento entre Deus e homens, também recebeu punições severas. Ganhou o título de o mais vil dos animais, maldito entre todos os demais, e de eterna inimiga da mulher. Uma imagem intrigante: aquela que seduz é também a que mais amedronta o feminino. Não é a toa que a cobra e o falo estão sempre tão associados…

No mito, foi somente quando Adão e Eva foram expulsos do paraíso que puderam perceber os atributos da humanidade. Ganharam ali o livre arbítrio, a capacidade de decidir e, consequentemente, a necessidade de lidar com os resultados de cada decisão. Despertar a consciência é um exercício angustiante, mas compensador. A reflexão nos ensina sobre limites e virtudes. Se nos bane do paraíso, favorece o verdadeiro desenvolvimento. Herdamos, todos nós, as penas impostas dos pais míticos da humanidade. Mas também deles ganhamos a chance de explorar o mundo e de nos superarmos diante das adversidades. O fruto do conhecimento é doce e gratificante o suficiente para que deixemos de experimentá-lo.

* Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

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