Self

Outras Ondas – Como os nossos pais (2)


Ao escrever sobre pais e filhos na última semana, percebi o quanto nos sentimos despreparados para questionar as questões parentais. Recebi um apoio especial das mães, que se assumiram inseguras na lida com o legado familiar, com o trato da cria. Mas também recebi cobranças de filhos, que sofrem com a dificuldade de desvinculação dos papeis herdados – e principalmente das expectativas projetadas. Sou filho, mas não sou pai. E, por essa razão, esse novo texto ganha um tom mais desafiador, pela exposição que ele proporciona. Agora, falo sobre aquilo que sei – não pelo que li, investiguei ou presenciei, mas também pelo que vivo.

Todo filho nasce com um script predefinido. Mesmo entre aqueles que se propõem ser os mais liberais dos pais, os mais respeitosos às opiniões do novo ser que surge. Gostos, aspirações, um futuro brilhante: tudo sob a óptica dos pais, da família, da sociedade. Essa influência desponta na consciência da gravidez, e não se encerra enquanto há vida – e, se há uma crença na continuação do espírito pós-morte, nem mesmo do lado de lá estaremos livres de atribuições, como zelar pelos que ficam. O problema é quando, passado algum tempo de vida, percebe-se que o papel definido para aquele novo indivíduo não casa com sua alma.

O tempo ensina que é melhor mesmo que tais expectativas não correspondam. Filhos que seguem fielmente à idealização dos pais sofrem de um mal crônico: não se sentem integrados, acham a vida esvaziada de propósitos, enxergam-se como personagens secundários da própria história. Lutam de uma forma desleal contra uma verdade que só existe na mente dos pais. E, em geral, são corroídos por uma dificuldade imensa para manter a tal aprovação adquirida à custa da negação da própria vida. Quando reagem de forma diferente do programado, sentem-se errados, culpados, ressentidos, ingratos. Nos lares regidos por essa lei, em geral aprende-se desde cedo que a melhor forma de honrar todos os sacrifícios vivenciados pelos pais é acatando-lhes as opiniões, minimizando qualquer possibilidade de atritos.

A questão é que muitos dos pais que transmitem à cria essa opinião buscam reparar as frustrações da própria vida não-vivida. Eles também foram filhos e, provavelmente, sentiram-se impedidos de ganhar formas próprias – optaram ou foram tangidos a seguir o velho modelo, no qual hierarquia se confunde com opressão. Nesse molde, a culpa e a vitimização se transformam em um vínculo inoxidável: ganchos que impedem o desenvolvimento natural da individualidade dos filhos. Inconscientemente dizem: a liberdade que eu não tive, vocês também não terão. A inveja é dissimulada perversamente pelo excesso de zelo, ou por uma sabedoria infinita – mas pouco tangível pelos fatos, ilógica para o contexto.

Muitos, condicionados pelas “melhores intenções”, se esforçam para impor aos filhos uma série de “oportunidades” que lhe foram negadas. Mas pouco escutam sobre as verdadeiras demandas que brotam da descendência: atenção, para substituir o dinheiro; afeto, em vez de cursos e intercâmbios; respeito, no lugar de limites preconceituosos. Tudo seria mais fácil se percebessem que o melhor legado que podem deixar aos filhos é a vida bem-vivida que conseguiram ter.

Aos filhos, resta a difícil tarefa de ressignificar a relação parental. Prefiro essa reelaboração ao “matar” freudiano, a meu ver uma tarefa impossível: o espaço ocupado pelos pais na psique é privilegiado demais para que simplesmente “percam a vida”, ou seja, o poder de nos influenciar. No entanto, as imagos materna e paterna podem se transformar na medida em que nos aproximemos da nossa essência, a partir do autoconhecimento. Percebemos as razões que os motivam a ser dessa ou daquela forma.

Mais seguros do que somos, conseguimos manter uma distância segura das idealizações que nos são projetadas. Não precisamos mais de uma identificação com elas para que nos sintamos validados no mundo. Nem mesmo para transmitir o respeito e o amor que sentimos pelos pais. Num primeiro momento, eles podem torcer o nariz, ao perceber no que nos transformamos. Mas internamente terão a sensação de dever cumprido: a prole está preparada para lutar pela própria felicidade.

nivas gallo