A espiritualidade é um valor inerente ao homem, motivo pelo qual a religião torna-se um fenômeno cultural intrínseco à civilização. No entanto, nem sempre o que é apregoado em cada templo ou livro religioso desemboca em um bem para o indivíduo. Tivemos esta semana uma triste prova disso. Um rapaz ceifou as expectativas de uma dúzia de famílias, além de interferir diretamente no futuro de outras centenas. Sim, todos os estudantes da Escola Municipal Tasso Silveira, além de vizinhos (e de todos nós, espectadores da tragédia) terão a vida transformada pela ação de alguém que, contaminado por pensamentos religiosos distorcidos, praticou o gesto mais vil que um ser humano pode cometer: retirar a vida de um semelhante.
É impossível dizer que o crime tenha sido motivado pelo dogma de alguma religião específica – até porque o fato de ele ser ex-aluno da escola e ter alvejado mais meninas que meninos é bastante significativo. Mas a carta deixada pelo autor da barbárie revela que o comprometimento psíquico que apresentava exercia um diálogo franco com o fascínio despertado por ideais religiosos. Há falas sobre pureza, pedidos de perdão a Deus, tudo em um tom missionário. Wellington Menezes de Oliveira entra para o hall de milhares de pessoas que agridem, matam e degredam em nome da fé.
Não quero dizer aqui que o valor redentor das religiões não seja ainda o principal caminho para que os indivíduos alcancem os valores da espiritualidade. Somos naturalmente atraídos por templos e ritos, aprendemos com os ideais morais e éticos lá ensinados. Mas esses também podem ser instrumentos para o desenvolvimento de neuroses e psicoses. A determinação dependerá do nível de ajustamento psíquico do indivíduo, da capacidade dele de distinguir minimamente as orientações dogmáticas de determinações fanáticas.
Para Wellington, a religião era o veículo da doença. Assim também o foi com a morte do filho do cartunista Glauco. Tais exemplos configuram situações extremadas. No entanto, não é preciso ter mortes para que enxerguemos o quão nociva pode ser a crença desmedida. Recentemente, os jornais baianos noticiaram a destruição de mais um terreiro de candomblé nos subúrbios de Salvador, por seguidores de outras denominações religiosas. Nem precisamos sair de Brasília: as imagens da Prainha precisaram passar por uma restauração completa em virtude de tantas agressões que sofreram. Ainda esta semana, observamos mais uma manifestação de crença nociva: uma garota do Entorno teve parte do corpo queimado com álcool em chamas, ao participar de um ritual de exorcismo encomendado pela família a um médium – um vizinho com 12 anos de idade.
A religião é um canal prático onde o homem busca conectar-se com o desconhecido, por crer que ele poderá provê-lo com respostas aos seus anseios. Muitas vezes, encontra tais explicações ou alcança a resignação necessária para o enfrentamento do problema. A segurança da ponte, no entanto, dependerá da perícia de quem caminha sobre ela. O problema é que esse desconhecido, que chamamos Deus, inspira mistérios e maravilhas capazes de cegar a razão. Em alguns casos, pode afastá-lo do terreno da realidade: é como se a ponte se rompesse, impedindo o retorno ao mundo real. Tomado pelo fascínio, o indivíduo não consegue discernir entre as vontades que lhe tomam e as questões éticas que deve seguir. A verdade ganha um tom unilateral: de um lado, eu e minhas crenças; do outro, tudo que se opõe a mim e a elas. Fé cega, faca amolada. Quando não há diferenciação entre pessoa e crença, é difícil distinguir quem manda em quem.
Óbvio e felizmente, os casos de fanatismo patológico, desses que levam à morte e à destruição, são pouco comuns e repudiados em nossa sociedade. No entanto, não podemos nos esquecer que o mal se esconde na intolerância nossa de cada dia. Manifesta-se sempre que criticamos o diferente, que olhamos com desdém as crenças que não nos atendem. Deixamo-nos contaminar até mesmo nos templos que decidimos seguir – competimos como filhotes que despertam o seio que os nutrem, sem entender que a saciedade está ao alcance de todos. Criamos escambos com Deus, inocentes da incapacidade de ludibriá-lo.
As religiões têm, em comum, uma figura de totalidade, pureza e sabedoria. E é essa a fonte que nutre a nossa espiritualidade e ética. Nem sempre conseguimos encontrá-la diretamente nos lugares que indicam com letreiros a presença da divindade. Os grandes mestres nos alertam sobre isso. Jesus ensina que a casa do Pai tem muitas moradas. Khrisna diz que as religiões são contas de um colar, e que ele (Deus) é o fio que as une. Lições genuínas de amor ao próximo.