Ser indulgente consigo mesmo é um exercício difícil de ser praticado, assim como medir a espessura do fio de uma navalha. Em momentos assoberbados, precisamos beber da própria misericórdia – reconhecer a incapacidade de dar conta de todos os papeis e encargos que sobrecarregam nossa agenda, pensamento e alma. Não é jogar a toalha, desistir da luta. É saber que precisamos obedecer a lei de esforço e repouso, que exige o tempo necessário para que recobremos as energias entre um embate e outro.
No entanto, o exagero de indulgência é o caminho para o sofrimento de muitos. Diante dos maus hábitos, somos tentados a confundi-la com a permissividade. Apoiados em dizeres sobre a dureza da vida, podemos adotar a atitude duvidosa diante do erro. Somos compassivos com nossos erros, repetimos atitudes nocivas – mesmo estando conscientes do dano que elas podem acarretar. “Eu mereço esse pecado”, “não fará mal a ninguém”. Realmente. O mal só afetará uma pessoa: você.
Revisar hábitos e pensamentos faz parte da postura de atenção plena, o caminho mais largo que leva ao autoconhecimento. A repetição daquilo que agride nossa alma pode levar a uma falsa sensação de que estamos fortalecidos diante do problema. Perde-se a sensibilidade e confunde-se isso com resistência. Assim é, por exemplo, quando uma pessoa que ingere bebidas alcoólicas se considera “forte” por não perder mais o equilíbrio com cinco ou seis doses de uísque. Seria isso realmente força ou uma estratégia do organismo debilitado, para lidar com o dano provocado pelos efeitos do álcool? Quem precisa beber para se divertir seria mais capaz do que alguém que não precisa de substâncias entorpecentes para se sentir bem, integrado e feliz?
Até que ponto esse pensamento falacioso não se repete em outras instâncias da vida, como nos relacionamentos, nas amizades e no trabalho? O grau de risco de desenvolver um vício em algumas dessas áreas é igualmente alto. Uma das características das relações de dependência é a falta de discernimento inicial sobre o grau de comprometimento que esse vínculo estabelece. Ou seja: acredita-se que é possível manter o controle sobre o uso. “Isso depende mais de mim que o contrário”. A consciência só surge na restrição do objeto desejado: sente-se na carne a falta que faz, a abstinência fica inegável. Ou então percebemos o quão comprometidos estamos quando as demais atividades da vida sofrem um prejuízo causado por essa relação.
O termo “objeto” é proposital. Nas relações de dependência, tudo se reduz a uma coisa – seja uma pessoa, uma meta ou um deus. Há uma indiferenciação daquilo que é a fonte do desejo. Queremos simplesmente consumir, incorporar ou deglutir “aquilo” que cremos ser a fonte do prazer e da satisfação. Isso é feito como uma característica da baixa capacidade de reflexão sobre o ato: mal percebemos que a impulsividade do desejo faz com que o “sujeito” deixe de ser “sujeito”. Ele passa a ser objeto, nas mãos dos afetos mobilizados pelo vício. Infelizmente, somos facilmente manipuláveis por esses desejos. Erramos ao tentar tratá-los com banalidade, numa tentativa de desqualificá-los. Ou ao venerá-los, como necessidades primazes, o ar que se respira, a fonte de sentido para a existência. Acolhemos nossos defeitos com um carinho excessivo. E, convenhamos essa autopiedade que não combina com quem é comprometido com a própria vida.
De um garoto ouvi uma frase rica, daquelas difíceis de esquecer: se errar é humano, errar cem vezes é ser ainda mais humano. Reproduzo por concordar na sabedoria que essas palavras guardam. Mas acrescento que, na busca pela sabedoria, devemos diversificar o tema das nossas falhas. Erre cem vezes, mas que sejam cem erros diferentes.