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Outras Ondas* – O banquete dos deuses

O candomblé é uma religião originária de gente sofrida. Pela fome, pela guerra, pela desigualdade. Nela, são cultuados energias da natureza personificadas, chamadas orixás. É como se o vento tivesse corpo e personalidade, com seus gostos e contragostos. As pedras, a água, a lama, as folhas… Tudo que é fruto da criação é orixá. A comida, elemento primordial para manutenção da vida, também é divina. Não podia ser diferente num povo assolado pela terra improdutiva e que aportou em terras brasileiras pela via macabra da escravidão. No candomblé, Deus come e se contenta quando comemos com Ele.

A comunhão se dá de forma simbólica. Assim como o pão e o vinho se figuram no próprio corpo crístico de Jesus, as comidas preparadas e oferecidas aos orixás se transformam na energia das divindades. Depois de sacralizado, o alimento se transforma em axé, a força dinamizadora que conduz a vida.

As comidas de cada orixá ajudam a traduzi-lo, a partir de suas características e predileções. Assim, Oxóssi, o caçador, gosta de feijão torrado – comida prática, leve e forte, que garante a subsistência cada vez que ele se entoca na mata. Yemanjá, dona das cabeças e do equilíbrio psíquico, come do manjar de arroz, tão gelatinoso como o cérebro. Omolu prefere as pipocas, que florescem assim como a varíola e demais doenças infecciosas da pele, que remetem aos males que o dominaram na infância.

O amalá de Xangô, o orixá da justiça, é mais que uma receita a ser seguida, é aula de mitologia. O quiabo é cortado com cuidado em pedaços pequenos, preferencialmente sem que as sementes sejam afetadas pelo fio da faca. Temperado com camarão seco e cebola moídos, o legume vai cozinhar até que as sementes fiquem graúdas e rosadas. A comida é arrumada numa gamela de madeira – diferentemente dos outros orixás, que comem em louça ou barro. Xangô assim prefere como sinal de submissão, uma promessa que fez a Oxalá, seu pai. Conta o mito que, numa ocasião, guardas do reino de Xangô aprisionaram o velho num estábulo ao pensar que ele havia roubado o cavalo do rei. Ao descobrir a injustiça, o governante disse que comeria em gamelas, assim como os animais, para que ninguém esquecesse o peso da negligência. Na arrumação do amalá, são colocados 12 quiabos com a coroa para cima – para lembrar os 12 ministros de Xangô – e no centro vai um orogbô, o fruto africano que remete ao próprio rei.

Yansan, a esposa dileta de Xangô, é vista como a mais curiosa e desaforada dos orixás. Ela não se conformava com o fato de o marido ter o domínio sobre o fogo. Queria descobrir qual era o segredo para o domínio do elemento. Um dia, ao mexer nas coisas do marido, acabou sendo encantada por uma magia, que a levava a cuspir labaredas sempre que abria a boca. Desde então, ela ganhou o domínio dos acarajés. Os bolinhos de feijão, quando fritos no azeite corado do dendê, ganham a cor do fogo. Agora, Yansan não cospe fogo, e sim os coloca para dentro, como quem engole brasas. E vem daí a tradição da culinária baiana de vender o bolinho nas ruas: o ofício era, originalmente, um dever das noviças iniciadas para a orixá.

Dois orixás merecem destaque quando o tema é o banquete dos deuses. Em primeiro lugar, Exu. O mais controverso dos orixás, diretamente ligado ao funcionamento do corpo, tem fortes ligações com a alimentação. Ele é aquele que primeiro come nos rituais. Alimenta-se de tudo que há. Precisa comer primeiro para não perturbar o culto aos demais orixás. Quando nasceu, Exu tinha um apetite insaciável. Comeu todos os legumes e raízes, todos os animais terrestres e aquáticos, pedras e até a própria mãe. Foi detido pela espada do pai, que o dividiu em inúmeros pedaços – trama bem edipiano, vale ressaltar. Apesar de se saciar com qualquer comida, a sua favorita é a farinha misturada com dendê cru – comida de preparo simples e rápido, ágil para aplacar a fome voraz que pode se manifestar a qualquer instante.

O último orixá que come é Oxalá, o grande responsável pela criação do mundo e dos homens. A ele é destinado o acaçá, ou ekó, que consiste num mingau de milho branco moído e posteriormente embalado em folhas de bananeira. Quando esfria e descansa, ganha um formato piramidal. O branco imaculado, semitransparente, lembra o líquido seminal – a base da criação, origem da vida, fluido sagrado para os africanos.

A crença do candomblé se baseia numa premissa: Deus, em suas mais diversas faces, gosta tanto dos homens que quer vê-los sempre em festa, com muita alegria e dança! Diante desse ambiente, os orixás não se contentam em simplesmente assistir: tomam seus noviços por possessão e, ao serem vistos pelos demais, distribuem a sua força. Quando a cerimônia parece ter chegado ao fim, surgem dos fundos das cozinhas imensas panelas, ricas em cheiros e sabores. A primeira porção das comidas foi oferecida aos orixás, em agradecimento. E também com votos de que o restante da panela se transforme em energia, axé, que alimenta o corpo e cura a alma. A hora do ajeum, a refeição que é compartilhada aos convidados. Só então a festa se encerra.

Para os desavisados, oferecer comidas e sacrifícios aos deuses pode soar primitivo – ou até mesmo desperdício. No entanto, o que alimenta os orixás é a crença do homem na natureza, como instrumento de crescimento e socialização saudável. É essa fé que o santo come.

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