Self

Outras Ondas* – O dom de iludir

A mente humana soa, em muitos momentos, como uma carroça sem freios numa ladeira. Basta que uma ideia inicial nos chegue à cabeça para que as rédeas se soltem das mãos. Prospectamos cenários, inventamos diálogos e reações possíveis, criamos toda uma situação propícia à fantasia. Buscamos, empenhados, soluções para problemas imaginários. Alegramo-nos com os resultados, ou nos frustramos quando as conclusões não são aquelas que a vontade inspira. Pensar torna-se uma atividade desgastante, quase exaustiva. Daí, num simples toque, a bolha estoura e percebemos que estamos no mesmo lugar do início da história, sendo a mesma pessoa. E aí, essa experiência pode ser classificada como perda de tempo e de energia?

A fantasia se processa como uma formulação espontânea de imagens, que podem se traduzir com uma autonomia variável – a depender do indivíduo e do momento em que ele se encontra. Imaginar é uma função inata à psique. Relaciona-se com a produção e assimilação de conhecimentos sobre o mundo exterior. Mas também serve para traduzir a dinâmica dos movimentos internos. Assim como os sonhos, mostram-se como manifestações diretas do inconsciente. A diferença é que, nos sonhos, a interferência diante das imagens que se apresentam é bem menor. A fantasia permite condução e interferências com muito mais plasticidade.

Os exercícios de imaginação são fortemente estimulados durante a infância. Transformamo-nos em heróis, princesas, profissionais das mais diversas ordens. No entanto, a vida adulta restringe essa função, em nome das ditas responsabilidades. Surge então uma urgência, cada vez mais crescente, de experimentar o mundo a partir de vivências concretas. Daí, acostumados a este padrão, corremos um grande risco de sucumbir à fantasia, quando ela nos chega.

Temos uma prova cabal disso na atualidade quando vemos o comportamento compulsivo que se estabelece entre os indivíduos e as redes sociais. Apesar de não assumirem capas mágicas e superpoderes, cada um cria um personagem mágico quando se vê diante de um computador. E não falo aqui dos papéis estereotipados de quando surgiram os primeiros chats, quando as pessoas inventavam perfis que, de tão ilusórios, despertavam a desconfiança até nos mais ingênuos. Agora, quando um avatar vale mais que mil palavras, o interessante é estigmatizar a si próprio com suas características mais peculiares: o bom humor, o sarcasmo, a ingenuidade, a militância…

Nesta semana, tivemos uma enxurrada de exemplos a partir dos personagens de desenhos animados que tomaram o Facebook. Cada um tentou remexer no baú das memórias infantis para encontrar o mais curioso, o mais comentável, o mais “curtível”. E o 12 de outubro soou, mais uma vez, como o pretexto ideal para viver a fantasia – como se ela fosse temível demais para ser praticada nos outros períodos do ano.

No entanto, o mais saudável seria viver a imaginação como quem pratica um exercício físico: regularmente e na medida certa, a fim de fortalecer o corpo psíquico e oferecer-lhe a maleabilidade necessária para enfrentar os desafios que lhe são impostos.

Uma fantasia negativa é tão desgastante como um problema enfrentado na vida real, e pode marcar a psique de forma igualmente marcante. Por esse motivo, é importante selecionar os motivos que vão compor nossos devaneios. Exercite a fantasia como uma prospecção das coisas boas que deseja ter na vida. É só lembrar que a mais genial das ideias surgiu de um pensamento aparentemente impossível de se concretizar. E tenha atenção plena quando a mente, com suas armadilhas, insistir em conduzir-lhe a imaginações destrutivas, pessimistas ou, simplesmente, vazias de significado.

Fantasiar é natural e produtivo, na medida em que se diversifica a forma de assimilação dos conteúdos que nos envolvem no mundo, além de promover a criatividade diante daquilo que não conseguimos solucionar com a lógica formal. Mas, para que seja uma prática saudável, a imaginação precisa se conciliar com os desafios da vida real. Dar voz à fantasia não é se autoenganar.

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