Nossa vida é feita de papeis que devemos cumprir. Aprendemos a pertencer a um gênero, a sermos bons filhos, a desenvolver uma profissão, a nutrir uma religião, a transmitir valores aos descendentes… Tornamo-nos uma mescla de personagens, dispostos a atender expectativas que a vida nos deposita. Em geral, promovemos essa variação de papeis com maestria: assumimos a máscara mais condizente com cada situação, como era a prática nos teatros antigos. E quando não conseguimos ser hábeis o suficiente para alternar entre as máscaras?
A identificação excessiva com uma determinada função social sempre nos leva a uma visão distorcida da realidade. Confundimo-nos com o personagem, só conseguimos enxergar a realidade a partir dos olhos dele. Nutrimos expectativas referentes a esse papel, cremos que ele é a nossa única forma de realização e felicidade. Restringimos nosso papel diante do mundo: nos tornamos especialistas, em vez de plurais.
Em geral, a máscara que se cristaliza diante da face é aquela que julgamos oferecer a maior recompensa pelo reconhecimento: a melhor mãe do mundo, o médico mais respeitado, a fiel mais devota, o mais descolado dos amigos… Se questionados por outrem, não hesitamos em dizer: somos os mais felizes justamente por termos tais títulos, seguimos incansáveis.
No entanto, para que tal máscara se mantenha impecavelmente lustrada, dispomo-nos a um sacrifício de outros fatores da vida. A mãe deixa de ser mulher, o médico se distancia da realidade, o fiel ignora as delícias mundanas, o descolado precisa ter sempre as tiradas mais libertárias, mesmo no dia em que as adversidades da vida extinguem o bom humor. Em alguns momentos, cada um desses títulos nos transforma em alguém especial, venerável. Se vividos vinte e quatro horas por dia, o motivo de orgulho transforma-se num fardo. O desejo íntimo é de um refúgio, de férias de si mesmo.
Sempre que um papel social se sobressai ao extremo, que somos reconhecidos por um atributo e não pelo que verdadeiramente somos, precisamos refletir. Qual a autoimagem que tenho? Quais são os propósitos que alimento fora dessa instância onde reino? Muitos temem esse exercício, justamente por não quererem encarar que a alma está empobrecida. Condicionar nossa felicidade e bem estar a uma única fonte é bastante arriscado. Se não formos infalíveis, encontraremos a frustração na esquina e vamos sucumbir. Uma dica: ninguém é infalível, por melhor e mais dedicado que seja.
O primeiro passo para promover o tal enriquecimento interior é reconhecer que o custo-benefício que o papel tão bem cultivado já não atende às nossas expectativas existenciais. Somos mais que isso. Não é um exercício fácil, afinal já estamos muito bem condicionados a responder diante disso. E também, na medida em que alimentamos tal imagem, despertamos expectativas nos outros. Mesmo que seja somente para que aliviemos suas angústias, facilitando-lhes a vida e limitando-lhes a chance de crescer com as adversidades da vida – uma postura um tanto egoísta, vamos combinar. É uma questão de escolha: a quem preferimos frustrar, os outros ou nós mesmos?
Descobrir-se diferente não é renegar os títulos que tanto nos promoveram o desenvolvimento. Não é preciso agir com ingratidão. A ideia é cultivar o respeito aos anseios, ao desejo de expansão. Os títulos que forem realmente seus vão permanecer, pode acreditar. Os que não ficarem… Bem, aquilo não era você.
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Também é importante perceber que nem todas as máscaras que nutrimos são positivas ou construtivas. Muitas vezes, nos atrelamos papeis como o “injustiçado”, o “desqualificado”, o “menos capaz”. Até mesmo nessa associação com a vítima encontramos uma gratificação. Mas isso é tema para outra conversa.