No candomblé, também temos a crença de um deus supremo. Mas acreditamos que esse deus se manifesta de diferentes formas a partir de cada elemento da natureza. Os orixás seriam cada uma dessas manifestações: Oxum nas nascentes de água, Ossain nas folhas, Oyá nos ventos… Da mesma forma, as divindades também regem atributos humanos: Ogum com a coragem, Xangô com a justiça, Oxalá com a paz… Têm qualidades e defeitos: Logun e suas manhas, Omolu e seus rancores, Exu e sua inconsequência… O conhecimento sobre eles é transmitido a partir da mitologia, transmitida oralmente século após século.
Na África, cada um desses deuses era cultuado de forma regional. Assim, todos que nasciam naquela região eram considerados protegidos pelo mesmo orixá. Quando chegaram ao Brasil, os escravos acabaram agregando os orixás de diferentes povoados da mesma região em um culto único. Nascia assim o candomblé.
Isso propiciou uma nova interpretação da “filiação”. Os adeptos são iniciados para aqueles orixás com quem mantém uma relação espiritual mais estreita. É como se, dentro de cada pessoa, existisse uma fração daquela energia da natureza. Cada pessoa tem um orixá predominante, chamado eledá, e um segundo santo, o ajuntó. Além desses, podem existir outras divindades “herdadas” de família ou que façam parte do contexto espiritual.
Em geral, o orixá se torna perceptível pelo temperamento do indivíduo e, em alguns casos, até mesmo por atributos físicos. O olho das pessoas mais experientes na religião é um bom balizador nessa identificação. O jogo de búzios, instrumento de comunicação com os orixás, também indicará as divindades mais afins. Mas só se tem certeza absoluta do regente do noviço no ato da iniciação. Essa é a forma mais usada (e também mais garantida) para indicar o “santo” de uma pessoa – apesar de hoje se multiplicarem métodos diferentes, como a relação com a astrologia, que arrepia os adeptos tradicionais.
Mas e se eu estiver agradando o santo errado, enquanto negligencio o meu verdadeiro orixá? Não creio nessa possibilidade, ainda mais entre aqueles que são apenas simpatizantes, sem vínculos diretos com a religião. Nesse caso, creio que a melhor forma de lidar com o próprio orixá seja conhecê-lo, seja a partir de bons livros ou da vivência em algum templo. Basta avaliar aquele com quem mais se identifica, pelas características que traz. Orixás são naturalmente pais e mães. Como tais, não renegariam a quem quer admirá-los, a quem recorre em busca de auxílio.
Um dos instrumentos usados para marcar esse elo é o fio de contas ou guia, confeccionado com miçangas ou contas nas cores preferidas da divindade homenageada. O colar ritual age como um talismã (atrai bons fluidos) e amuleto (defende de energias nocivas). Depois de pronto, ele é lavado com as folhas litúrgicas do orixá e passa a representá-lo.
Assim como era feito na Grécia antiga, uma das funções dos sacerdotes é correlacionar os dramas pessoais às passagens míticas que envolvem os deuses. Ao rememorar a história dos orixás, promovem o conforto psíquico a quem sofre.
Deixando de lado as questões dogmáticas, a identificação com os orixás age como um bom instrumento de autoconhecimento. Cada deus aparece com traços peculiares de caráter, reagem de formas diversas quando expostos a problemas, têm afetos e desafetos. Não existe orixá exclusivamente bom ou ruim, melhor ou pior, mais ou menos virtuoso – assim como ocorre entre nós, humanos. E é na inspiração gerada por essa semelhança que os deuses negros realizam a sua função maior: devolver o equilíbrio para quem enfrenta problemas.
A curiosidade que o tema desperta me levou a pensar em uma série de posts sobre orixás. Sempre no primeiro domingo de cada mês, a coluna Outras Ondas trará o perfil de três deles. Em dezembro, teremos Exu, Ogum e Oxossi.
* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br