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Psique: Quando o fim do ano se aproxima, devemos fazer balanço da vida

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Individuality concept, birds on a wire

Somos seres impressionantes e impressionáveis. A cada momento, algo novo nos atravessa – vindo de fora, do outro, ou de algum aspecto desconhecido de nós mesmos. E em cada atravessamento, a plasticidade da vida se manifesta.

A mudança está ali, até quando não temos a capacidade de percebê-la. Quando o encerramento do ano se aproxima, invariavelmente o consultório assume uma espécie de ritmo de balanço. Clientes aprontam retrospectivas, traçam metas, fazem inventários, pedem devolutivas.E isso é muito importante, faz parte do meu papel. Especialmente porque nem sempre temos por hábito avaliar a trajetória percorrida. O ideal de irmos muito além faz com que menosprezemos resultados. Aí eu entro: mostro como foi importante cada avanço.

É uma espécie de educação para que celebremos nossos méritos. Sem pedantismos, nem egos inflacionados. Mas ter o orgulho e a honra de conseguir suportar as próprias mazelas, transformar o que é possível, explorar as possibilidades da melhor forma. Sentir-se inteiro na própria vida.

É gratificante quando vemos um novo brilho no olhar, uma postura mais serena, mais assertiva. A cumplicidade que se forma na nossa relação faz com que os avanços não precisem ser nomeados – são percebidos de alma para alma.

Nesses momentos, confrontamo-nos com o orgulho e a vaidade, que podem ser a grande mácula de todos nós, terapeutas. Nosso papel é de acompanhar transformações, e não de deflagrá-las. Entender isso custa um tanto, assim como também custa a frustração de não ver o avanço que idealizamos.

Esse acaba sendo também um período de despedidas. Por mil razões. As viagens de férias. As mudanças de cidade. Os novos planos. As fugas diante dos grandes confrontos. Tudo potencializa encerramentos, cada um deles inspira uma emoção. Realização, fé, preocupação, alívio.

Alguns saem por sentirem-se prontos. Outros por acharem que nunca se aprontarão. Outros ainda por não terem encontrado a aliança que desejavam. Triste mesmo é ver os que se desligam pelo medo da mudança, que escapam acuados pela própria sombra.

Por aqui, vou ficando. Arejar a cabeça, remexer os livros, realizar novos pensamentos, conectar velhas emoções. Tudo para que, quem chegue, seja recebido com a energia de renovação – algo imprescindível para os dias de hoje.

Psique: Viver bem é saber ocupar seu lugar no mundo, e não qualquer lugar

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Large cog wheels in the motor.

Onde termina a vida e começa a sobrevivência? Pergunta capciosa, de respostas múltiplas. Aqui falo do significado da vida, da razão para existir e ocupar, com um corpo, um lugar no tempo e no espaço. De algo que, que de tão óbvio, parece estar subentendido. Não está.

No meu ofício de analista, acostumei-me a estar diante de sujeitos que nem sempre sabem para que existem. Sabem até os porquês – especialmente enumeram aqueles que impõem sofrimento. Quase nunca percebem a ausência de sentido como alimento do mal-estar.

Existir é muito pouco para a condição humana. Desde os primórdios, quando começou a pensar-se, o ser humano buscou uma função a ocupar diante do outro e do todo. Uma função que validasse sua inserção no universo que o engloba, que o identifique como ser único.

E, enquanto vivíamos no dito primitivismo, essas respostas eram suficientes. Jung cita o representante da tribo aborígene que tinha por função permitir que o sol nascesse. Obviamente, uma fantasia mágica. Mas que era impreterível a ele e aos seus convivas.

Representar esse papel era a salvação de tal sujeito. Era experimentar o sagrado em si. Por esse motivo, desempenhava esse ofício da maneira mais fiel e responsável o possível. Hoje, demarcamos espaço com feitos superficiais e repetitivos, com um álbum de fotos e depoimentos curtos sobre nossos afazeres. Reclamamos da segunda-feira, do cansaço, da corrupção. Comemoramos a sexta, o lazer, as vantagens que o outro não percebeu – mesmo que não saibamos o que fazer com o tempo, nem entendemos a função da diversão e da ética.

Replicamos ideias, crendo que somos delas autores (na dúvida, pesquise em Platão ou Aristóteles – “é provável que eles já tenham pensado sobre isso, e de forma melhor”, como me alertou uma professora querida).

E, assim, sobrevivemos. Assumimos um estado de torpor enquanto a morte não vem. Não arriscamos, pois não queremos perder. Queixamo-nos pelas oportunidades que não chegam. Descartamos o aprofundamento, quando ele exige mudanças. Culpamos, muito, o outro por nossos fracassos. Não nos permitimos a dádiva educativa do fracasso.

Nesse estado de espera por um advento, ou um agente redentor, evitamos tudo que inspira vida. O movimento, a desconstrução, o embate. Não sentimos a alma pulsar, e isso se traduz numa ausência de sentido, uma espécie de desconexão ou falta de pertencimento.

Muitas vezes, tudo isso é simples reflexo da dificuldade que temos de bancar o que sempre soubemos, mas nunca quisemos admitir. Aquilo que, convencionalmente, não parece o melhor – apesar de, por dentro, ser um valor genuinamente seu. Parece difícil bancar nossa verdade.

Basta olhar para a história da humanidade. Os veneráveis nunca eram os mais bem adaptados, e sim os autênticos. Quase sempre, eles não tiveram autorização para realizarem a própria história. Muitos pagaram com a vida. Viver nunca foi fácil. Mas é recompensante.

Psique: Religiosos e céticos concordam: Deus escreve certo por linhas tortas

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Walking direction on asphalt.

Deus escreve certo por linhas tortas. Somos chamados a acreditar nisso, seja por crença religiosa ou como metáfora: como forma de percebermos que nossa vontade pode apontar para equívocos, mas que a vida está atenta e disponível para corrigir as rotas antes que um mal maior aconteça.

É o que chamamos de livramento: o escape diante da nossa cegueira, o anteparo invisível que nos guarda na beira do abismo, a blindagem contra aquilo e aqueles que podem nos tanger dos propósitos de nossa alma.

Deveríamos agradecer devotamente quando isso ocorre, mas nem sempre é o que acontece. Quase sempre, queixamo-nos pelos planos que falharam, pelos contatos não efetivados. Achamos que o mundo está sendo cruel com o nosso desejo.

Essa reclamação parte do ego – uma espécie de gerente prepotente que se acha o dono da loja. Quando as coisas não saem como ele gostaria, faz birra como uma criança mimada: vitimiza-se, insiste no erro, ignora os sinais. E sofre pela própria ignorância.

Daí passa o tempo, senhor de tudo, e a vida mostra que aquela frustração foi um ponto de partida. Percebemo-nos pequenos e conduzidos por uma força maior para algo muito mais pertinente.

Muitos, ao viver isso, refazem os laços com o sagrado. Em suma, isso se dá quando percebemos um sentido maior para existência, quando nos vemos pertencentes e integrantes num sistema bem mais complexo que esse das eleições egoicas.

Por isso, o livramento não é para todos. O mundo nos pede autoria, liderança e controle, valores com os quais o ego tem plena identificação. Não existe assistência se não há espaço para a submissão (estar sob uma missão, mesclar-se a um propósito maior).

Quem, então, nos livraria dos males, se nossa arrogância nos leva a crer que seremos “vencedores” se lidarmos com tudo sozinhos? Ainda assim, sentimo-nos injustiçados quando a falha não sai de nosso caminho.
Feliz daquele que reconhece, em situações graves e nas trombadas corriqueiras, a proteção. Esses não são melhores nem piores, mas estarão mais acalentados fortalecidos diante das adversidades. E, dessa conexão com a alma, encontrarão mais significados para a existência.

Psique: Amigo de verdade suporta sua felicidade, seja ela qual for

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Tendemos a querer adaptar o outro àquilo que somos. Não necessariamente por querer-lhes o bem, mas para que a nossa vida fique mais fácil. A felicidade é um conceito subjetivo. Cada um concebe as próprias imagens de paraíso. Impor as nossas aos demais é um erro.

Fazemos escolhas que podem representar motivo de preocupação, ou desgosto, para quem nos ama. Principalmente por forçarem a assumir uma nova perspectiva. Isso incomoda porque, numa dessas, poderá despontar a percepção de estarem equivocados. E isso é frustrante.

Daí vem sempre aquele argumento da defesa, do prevenir o outro dos males que pode atrair para si. Falamos isso como se o erro não fosse edificante. Ou como se tivéssemos uma visão privilegiada da realidade, capaz de antever fracassos. E nós, também não fracassamos?

Suportar a felicidade do outro, seja ela qual for, é o sinal da verdadeira amizade, a prova do amor fraterno. Com quem se relaciona, o que consome, o que decide fazer, qual a hora certa de entrar ou sair de uma situação? Tudo isso é de responsabilidade de cada um. Cada escolha, boa ou ruim, só compete a quem poderá sustenta-la.

Vender ao outro as nossas verdades é uma atitude tirana. Basta inverter os papeis nesse balcão: como você reage quando a paixão chega (por algo ou por alguém), e vem aquele amigo aconselhar sobre os riscos desse empreendimento? Isso é suficiente para deter o sentimento?

Por mais que algo seja notoriamente negativo, tal situação foi a forma encontrada pelo outro para algum aprendizado. Não é que devemos ser negligentes: advertir é o papel de quem gosta e cuida. Mas é imprescindível que saibamos que é do outro a escolha – e que nossa visão está sempre contaminada por nossos preconceitos. A verdade tem muitas faces.

O bem estar do outro pode nos elevar, servir de estímulo para que busquemos melhorar a vida. Mas também realça o que há de errado conosco, nossas faltas ou excessos. Daí brotam emoções incomodativas, como a inveja e a competitividade. E, como reação, buscamos formas de desqualificar a felicidade alheia – um mecanismo muito comum. Somos terríveis.

Por isso, entenda o verdadeiro amigo como quem que divide o ombro para chorar, mas também sorri ao ver seu sorriso. E que se alegra com suas conquistas, até quando a própria vida não foi capaz de satisfazer-lhe os desejos. Esses merecem respeito e consideração, por saberem que amar é respeitar o outro como ele é.

Psique: Ser ignorante é o caminho mais rápido. Refletir exige tempo

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ignorancia

O que trouxe você até aqui? Quanto tempo você tem para mim? Quanto me suporta ouvir falar, qual o tamanho da sua disposição para chegar ao fim desse texto? Qual a sua disposição para investir tempo naquilo que lhe interessa? O que, de fato, interessa a você?

Poderiam ser perguntas retóricas, mas não são. Conciliar tempo e interesse é um desafio nesse mundo de uma enxurrada de informações inúteis, e cada vez mais breves, que nos dão a falsa impressão de que sabemos de tudo.

No fundo, estamos sendo treinados a assimilar frases soltas a imagens fortes. É certo de que a linguagem visual sempre foi a mais eficaz para gerar impressões. Mas nem sempre são suficientes para desenvolver um raciocínio mais elaborado.

É um método que parece perigoso. Afinal, é das sobras de palavras (uma mera “perda de tempo”) que surgem as grandes reflexões da humanidade. Ulisses, Zaratustra, Dante e outras personagens precisaram de centenas de páginas para reformar o olhar do mundo sobre si mesmo.

E quem tem tempo para centenas de páginas? Elas competem com centenas de inutilidades pontuais. Estas ocupam pouco espaço, mas nos enganam: guardamos o que não serve, com a ideia de que um dia pode ser útil. Aprisionam-nos, assim, no lado raso da vida.

Tudo isso faz parte de um novo paradigma, que não pode ser negado ou evitado, mas não foi assimilado da melhor maneira. Buscamos comer e exercitar o corpo para sermos saudáveis, visando longevidade. Para que, se desconhecemos o que é viver bem?

Relações sempre foram a atividade-fim do ser humano. Elas nos dão elementos para que saibamos, minimamente, quem somos. Observar como reagimos às coisas se chama reflexão – aquilo que nos diferencia dos outros animais. Economizar palavras reforça nossa ignorância.

Num discurso monossilábico, como o que a nova realidade propõe, o mecanismo relação-reflexão se compromete – regrediremos aos grunidos e dedos em riste dos nossos ancestrais mais distantes?  Ou encontraremos no percurso uma solução que preserve o desenvolvimento da consciência?

Ou a vida não teria mais tempo para ser profunda?

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