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Psique: A vida não precisa estar ruim para que nos sintamos insatisfeitos

crédito: Metrópoles/iStock

A vida não precisa estar ruim para que nos sintamos insatisfeitos. Não carecemos de um problema exato, de um dilema identificado, de uma relação frustrada. Tudo pode estar nos eixos e, ainda assim, pairar uma sensação de estranhamento, de falta, de impertinência.

Depressão, a aposta óbvia, é o extremo patológico desse estado. Mas nem sempre chegamos a tanto: a vida está seguindo, funcionando, apesar do esvaziamento. Não se vê a solução num sedativo para o sofrimento. Aliás, sofrimento não é a melhor definição para aquilo que se sente.

Melancolia é o bom nome que os gregos criaram para definir esse estado: o veneno sombrio, a bílis da tristeza secretada pela alma. Ela escorre por nossos sonhos, alterando-lhes o sabor. O amargo afasta a doçura, deixa o paladar metálico, ríspido, pesado. Talvez daí venha o tal “gosto de cabo de guarda-chuva” – a metáfora para o estado melancólico da ressaca.

Nenhum afeto se apresenta sem um propósito maior. Existe em nós uma tendência quase compulsiva a querer correlacioná-lo a algum acontecimento exterior. Ignoramos, assim, que a dinâmica psíquica vai além de fatores sociais, relacionais e biológicos. Especialmente quando os isolamos para facilitar nossa observação.

A alma fala por uma linguagem própria, numa pertinência absurda. Chega a ser constrangedor quando, pela reflexão, conseguimos compreender algo que ela expressa. Constrange por percebermos que aquilo sempre esteve ali, só não éramos capazes de enxergar.

É como se, por um átimo, acessássemos todo o conhecimento do nosso universo particular. Em geral, a experiência mobiliza a ponto de alterar cursos e ritmos. Costuma colocar o trem novamente no trilho. Em alguns, é como se desesperasse ainda mais o maquinista: a vontade de agir faz com que ele descontrole ainda mais o manete. Imprevisibilidades da nossa mente.

A melancolia não escapa dessa regra. Se está ali, tem uma função – ainda que incompreendida. O mundo contemporâneo nega espaço a esta compreensão: não devemos perder tempo com aquilo que não afirma a produtividade, a forte atuação social e o sucesso.

Ignoramos que esse estado melancólico possa ser uma espécie de elaboração. É como um terreno que se prepara para a semente. A terra sendo remexida, a putrefação do adubo enriquecendo o solo, nascentes sendo desviadas para a irrigação. E o vazio desolador das covas nuas, vazias, à espera do que virá a brotar.

Suportar essa espera é um desafio, especialmente àqueles que “não têm tempo a perder”. Mas, para que sincronizemos relógios e calendários ao ritmo da alma, é preciso escutá-la. Reverenciá-la, até mesmo quando ela parece se esconder. Contentar-se com o mais sutil dos sinais que venha a oferecer, em vez de desejar que ela se manifeste algo arrebatador.

Nossa percepção é simplória demais para tudo aquilo que queremos saber. Assim, resta-nos confiar em um propósito maior, sempre que nosso eu se assemelha a um campo limpo. Concentrar-se na possibilidade, em vez da ausência. Somente assim teremos chance de acessar aquilo que é imenso e sublime em nós.

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