Self

Psique: É preciso ser grato pelo amor e pelo desamor. Tudo nos transforma

crédito: Metrópoles/iStock

Devo muito ao mundo por ser quem sou. Mas a ele, enquanto imagem do todo. Podia, então, dizer também que devo tudo isso a Deus. Ele também personifica o todo. Essa é a dívida que reconheço.

Sou filho de uma família de classe média, que pode me proporcionar o estudo em instituições particulares. Também nunca me faltou para a assistência básica: alimentação, saúde, segurança, diversão. Sou um privilegiado. E sou grato a meus pais por isso.

Grato, apenas. Pois sei que não foi o que tive que me fez ser o homem que sou. Foi uma colaboração importantíssima, ainda o é. Mas não me sinto um devedor. Nem deles, nem de ninguém. Também não aceito cobranças.

Minha forja foram quem consegui ser, os lugares que minha vista alcançou e as minhas decisões. Algumas, precipitadas e imprecisas, geraram tortuosidades daquilo que sou. Outras, moldaram duro o que carece de firmeza. E temperaram, deram maleabilidade para que eu pudesse me encaixar nos espaços que a vida oferece.

Sou grato a cada amigo, a cada amor, a cada professor. Mas também a cada praga rogada, a cada dúvida sobre meu caráter, a cada resposta que me foi negada. Tudo isso me revelou para mim. Fez com que eu precisasse remexer fundo, em busca de um potencial esquecido, de uma chave enferrujada.

O termo “gratidão” está super em alta, apesar de muitas vezes ser administrado de uma forma imprecisa, outras vezes jocosa. Substitui o “muito obrigado”, num reconhecimento muito honroso a quem ameniza nosso caminho, ao nos prestar algum favor ou gentileza. Acho adequado.

Afinal, estar “obrigado” é condicionar-se a uma recíproca à altura, quando nem sempre temos a oferecer – ou queremos fazê-lo. A verdadeira gratidão se distingue da dinâmica de devedor x credor. Compreender essa semântica, e internaliza-la, pode ser um exercício de libertação.

Muitas vezes, cremos que, para sermos gratos, precisamos estar sempre disponíveis ao outro. É como se tivéssemos sido aprisionados em troca do bem que nos foi favorecido. Sendo assim, somente trocamos de problemas.

Da mesma forma, quando estamos do outro lado do balcão, sentimo-nos autorizados a emitir promissórias sempre que fazemos algo por alguém. Mesmo que elas nunca venham a ser enviadas, ficarão guardadas, exalando uma substância densa, altamente tóxica: o rancor.

Crer numa dívida eterna pela participação do outro em nossa história (ou vice-versa) fundamenta um vínculo pretensioso, criado a partir de exigências. É um entrave imbecil ao desenvolvimento.

Participamos mutuamente uns na vida dos outros. De forma mais ou menos cordial, mais ou menos útil. Não há, entretanto, resultados que dependam mais de alguém que de mim mesmo: até mesmo para sermos ajudados, devemos antes nos autorizarmos a tal.

Quem se vangloria de ter auxiliado alguém não o fez por entrega ou grandeza de alma. É justo o contrário: “emprestou” uma força ao reconhecer um valor naquele que é ajudado, na expectativa de poder gozar no futuro de algum benefício. Nem que seja o status de bondoso, solícito, nobre.

O bem se faz em silêncio, de cabeça baixa. A gratidão, idem. Ambos fazem mais sentido a quem os pratica, e não a quem assiste.

Psique: Paris e Rio Doce – o horror e a “solidariedade estética”

Crédito: Metrópoles

RJ - PARIS/ATENTADOS/CRISTO REDENTOR - GERAL - O monumento do Cristo Redentor é visto iluminado com as cores da bandeira da França, no   Rio de Janeiro, neste sábado (14), em homenagem às vítimas dos ataques terroristas em   Paris.    14/11/2015 - Foto: ALEX RIBEIRO/ESTADÃO CONTEÚDO

No início deste ano, foi noticiado que, num período de dois dias, dois mil seres humanos foram exterminados na Nigéria por grupos radicais islâmicos. A Nigéria é longe. É desinteressante. É pobre. É inexpressiva. Qual é o ponto turístico da Nigéria? Qual o grande monumento? Que lugar ocupa na fila do glamour? Onde se faz um bom selfie na Nigéria?

Em Paris, não. É tragédia sem precedentes. Dá dó. Preocupa. Pray for Paris. Graças a Deus, meus amigos que vivem lá estão bem. O mundo não pode continuar assim, tenho de expressar minha revolta. Vou usar aqui o aplicativo da rede social para pintar minha fotografia com as cores da bandeira francesa.

Não é a geografia que separa Nigéria, França, Síria e demais lugares assolados pelo terrível fundamentalismo. Nem é o ódio: todos os ataques são motivados pela intolerância, pelo desejo de extermínio de tudo que é diferente. É a imagem que distingue tais nações. Ou, como ressaltou um amigo: “até a solidariedade é estética!!”.

Dois pesos, duas medidas
Esse é um ato de terror que cometemos sem perceber. O mendigo loiro e de olhos azuis ganha espaço nas mídias, enquanto o coração dispara apreensivo na aproximação do rapaz negro na calçada. A piada sobre o nordestino, a travesti, o macumbeiro, o aleijado… Tudo isso ofende menos do que o xingamento que recebo quando cometo alguma atrocidade no trânsito.

Na mesma semana, nosso país se deparou com o maior desastre ambiental da história. Uma população foi engolida pela lama. Resíduos tóxicos mataram um rio, e levarão um rastro de dano que irá desembocar no oceano. Não é preciso ser vidente para saber que a contaminação amaldiçoará gerações. Mas onde mesmo fica Mariana?

E se a lama da desgraça manchasse Ipanema, Copacabana? Se a vila atingida fosse Trancoso? Se as lembranças das últimas férias fossem maculadas? Certamente, a rede social providenciaria um aplicativo para alterar fotos de perfil. E a solidariedade seria instantânea.

A empatia é um afeto que se apresenta quando conseguimos nos ver no lugar do outro. E isso é muito mais fácil de acontecer quando reconheço o outro como um semelhante. Ou quando vejo o outro como um modelo a ser seguido. Duro é reconhecer a necessidade de quem não me assemelha.

Além disso, a “solidariedade estética” pouco faz em resultados práticos. Costuma não passar da fotografia, da frase indignada. É insuficiente para transformar, pois dura apenas o período de ebulição do assunto. Natural que seja assim: em nossa vida, só perdura o que vem da alma.

Encenar o bem
Todos nós investimos em personas, ou seja, papeis sociais que assumimos frente ao mundo. Os valores cultivados aí são oportunistas e utilitários. Somente investimos neles enquanto nos gratificam. E a principal gratificação que vem da persona é ocultar temas perturbadores, controversos, que nos colocam em contradição.

Dessa forma, a solidariedade estética pode apontar justamente para sua sombra: o egoísmo, a incapacidade de enxergar o mundo pelos olhos do outro. Olhe o parisiense e o membro do estado islâmico; o dono da mineradora e o ribeirinho afetado pelo desastre. Encenar o bem é diferente de fazer o bem. A compaixão vai além das diferenças.

Não questiono tudo isso para comparar tragédias. Dor e sofrimento são medidas intransferíveis. As duas, e as demais que fazem o mundo soluçar, merecem nossa atenção plena, nossa contribuição plena. Isso só se faz com a verdade de sentimentos.

Crises apontam para o colapso, ou para a transformação. Tudo dependerá do trato que assumirmos. Por aqui, seguimos morrendo. Vi numa charge que Deus resolveu tirar férias. Primeiro, temi por parecer verdade. Mas não: certamente, Ele está mais atento do que nunca. Distraídos estamos nós.

***

Sento para escrever esse texto, ligo a seleção aleatória de músicas do meu computador. A primeira que toca é o Hino Nacional Brasileiro, gravado por Fafá de Belém em 1985, no álbum Aprendizes da esperança. Eu tinha cinco anos. Não entendia nada do que ocorria com o cenário político da nação. Mesmo assim, chorava cada vez que a canção era repetida.

No começo, minha mãe se preocupava, depois virou piada familiar. Isso aconteceu incontáveis vezes, afinal a música foi o tema das Diretas Já, da comoção pela morte de Tancredo. Desta vez, tocou e não chorei. Algo mudou em mim. Amargor da desesperança, sobriedade do amadurecimento? Temo que, como ocorreu na minha infância, os temas que trago nesse texto passem a ser tratados como algo banal. Ou, pior: virem motivo de piada.

nivas gallo