Infelizmente, a ideia de publicação da entrevista só surgiu depois da morte do autor, há duas semanas, aos 90 anos. Ele deixa um legado importante para a família brasiliera: o despertar para a necessidade do diálogo e da compreensão. Como uma homenagem, compartilho aqui a sabedoria de Gaiarsa.
José Ângelo Gaiarsa, o “inimigo” da família *
“São 50 anos ouvindo as mazelas humanas.” Assim o médico e psicoterapeuta José Ângelo Gaiarsa, definiu sua trajetória clínica, como orientador e pesquisador das variabilidades psíquicas humanas. No último dia 16, o doutor Gaiarsa, autor de mais de 30 livros, faleceu enquanto dormia aos 90 anos. Deixou como legado uma vasta obra, além de popularizado conhecimentos sobre sexualidade, relacionamentos e família, ao apresentar por 10 anos ininterruptos o quadro Quebra-cabeça, no programa Dia a Dia da TV Bandeirantes. Inúmeras horas de estudo e de consultório deram ao psicoterapeuta a autoridade para fazer afirmações polêmicas. Gaiarsa não negava que fosse “inimigo” da família e do casamento — pelo menos da forma como são interpretados pela sociedade. Em 2006, ele concedeu uma entrevista ao então repórter da Revista João Rafael Torres, em que falou sobre traição e defendeu o fim das ilusões. “Não dá para pensar num casamento feliz para todo o sempre. O segredo da felicidade é perceber quando ela chega na nossa vida, e aproveitá-la até que esse momento se esgote”, ensinou. A entrevista acabou não publicada. Em homenagem ao psicoteraupeuta, recuperamos esse material inédito e ofereceremos ao nosso leitor.
Por que o senhor diz que a família é o lugar mais perigoso que se tem para educar uma criança?
JOSÉ ÂNGELO GAIARSA — Quem diz não sou eu, são as estatísticas. A Unicef apurou que, só em 1998, mais de 80 mil crianças da América do Sul morreram por conta de maus tratos provocados dentro de casa. A educação se torna um escudo para que a família possa maltratar as crianças. E não é só a pancada, também existe o olhar duro, o castigo psicológico, a omissão. A verdade é que não existe escola de formação de pais, e a missão de educar uma criança é uma das tarefas mais difíceis do mundo. Para 90% dos pais, educar é repetir tudo o que aprendeu dos próprios pais — mesmo que isso implique numa educação retrógrada e conservadora. Não é à toa que as neuroses nascem sempre das relações familiares.
As relações familiares têm mudado nos últimos anos?
GAIARSA — Nasci em 1920 e recordo de muitas coisas da minha infância e adolescência. Naquela época, os pais eram mais autoritários, tínhamos menos amigos, a religião tinha um grande peso. A televisão, o rádio e atualmente a internet retiraram a família desse núcleo fechado. O cenário é outro, mas o discurso é o mesmo. Há uma grande dissociação entre o que se elogia nos outros e o que se faz na prática.
O acesso à informação não deveria favorecer uma geração mais equilibrada?
GAIARSA — As crianças que nascem hoje são muito diferentes, na medida em que tem acesso a muita informação. Hoje todos têm um conhecimento mínimo sobre qualquer assunto. Isso cria um distanciamento e uma dificuldade de compreensão entre pais e filhos como nunca havia acontecido em toda a história. Fica difícil para os mais velhos acompanhar a rapidez do raciocínio dos mais novos. Para muita gente, informação demais é tóxica. Em vez de proteger, a informação intensifica o conflito, quando a comparamos com os valores transmitidos dentro de casa. Nesse momento, a vontade de se fazer “normal” diante das pessoas se transforma noutra neurose. A preocupação com isso é tamanha que a família se transforma numa oficina de produção artesanal de “normopatas”, praticamente um minimanicômio. Como consequência, crescem os dois maiores negócios do mundo: as armas e as drogas, incluindo aí os psicotrópicos e o álcool. As pessoas buscam qualquer forma de sair desse mundo. É muito difícil aguentar a realidade.
Até que ponto a dificuldade de comunicação entre pais e filhos se estende ao sexo, aos relacionamentos afetivos?
GAIARSA — Sexo continua assunto proibido. Os pais negligenciam que o bebê já tem as primeiras manifestações sexuais no sétimo mês de vida intrauterina. Logo que nascem, as crianças são educadas de uma forma que as faz negar a expressão do próprio corpo. Passa a repetir apenas gestos estereotipados, dentro do que é convencional à sociedade. Além disso, os próprios pais não se permitem demonstrar o afetivo e o erótico entre si, diante dos filhos. Não há evidências de que se gostam, como beijos e abraços. Educação sexual é isso. Não é só dar informações sobre sexo.
Em seus livros, o senhor faz severas críticas à forma como as mães se portam diante de suas crianças. Afinal, até que ponto elas são culpadas pelas frustrações futuras dos filhos?
GAIARSA — Novamente, o problema está entre a cisão entre o discurso e a prática. As mães mudaram muito. Estão mais independentes, não exercem mais tanta influência sobre os filhos e estão mais tempo for a de casa. Graças a Deus. Mesmo assim, ainda afirmo que, juntas, elas constituem o maior partido conservador do mundo. Ensinam o autoritarismo e as chamadas grandes virtudes da família, que são uma balela na sociedade. No mundo, ninguém consegue ser educado, honesto e dizer sempre a verdade. E o que é ainda mais grave e mais grotesco: elas ainda fazem questão de se manterem sagradas diante dos filhos, como se não tivessem sexo. Com isso, os filhos aprendem que só pode existir amor da cintura para cima.
Que complicações isso pode trazer para a vida de ambos?
GAIARSA — A relação entre mães e filhos começa errada logo no nascimento. Geralmente, são separados de uma forma abrupta justamente num momento importante de identificação, dos primeiros contatos, do primeiro cheiro, do primeiro olhar. Quando saem da maternidade, vem o segundo erro: pensar que devem ficar eternamente juntos. A crença de pensar que mãe é para sempre também é um pecado. Em todas as espécies, as mães cuidam dos filhos enquanto eles precisam de cuidados. No caso dos homens, não. Ninguém está preparado para esta separação. Ao contrário, é cada vez mais comum encontrar marmanjos vivendo dentro da casa da mãe santa e eterna, com tudo à mão. E, o que é pior, ela adora isso. O terceiro tabu está em querer amar todos os filhos da mesma forma, como se eles não tivessem individualidades que os tornassem diferentes.
A dificuldade dos homens de se ligarem em relacionamentos estáveis está relacionado a esse comportamento?
GAIARSA — Na fase em que passa de menino para homem, naquele período onde o sexo é o que domina a cabeça, a educação sexual é feita pelos próprios companheiros. Eles compartilham suas “experiências” de uma forma rústica, quase animalesca. Competem entre si, ao mesmo tempo que mantêm grande cumplicidade. Para se manterem integrados, deixam de agir com naturalidade. Muitas vezes, essa experiência se perpetua nos outros relacionamentos. Por outro lado, vem aquela idéia de almas gêmeas, que é predominantemente feminino. O homem patina então pelo meio termo. Nas datas especiais, manda um buquê de flores. No auge do romantismo, escreve uma música. Isso é mais uma atitude do “normopata”, por não ter espontaneidade. As pessoas se preocupam no tal do casamento para sempre, até que a morte separe. Mas não estão preocupadas em nutrir o amor. Precisam aprender que não existe felicidade plena. O segredo é perceber quando ela chega na nossa vida, e aproveitá-la até que esse momento se esgote.
As palavras do senhor desanimam qualquer pessoa que pense em casamento…
GAIARSA — (Risos) E você, meu filho, ainda acredita em casamento? Os ditos casamentos se tornaram verdadeiras tragédias cômicas. A realidade de consultório mostra que dois terços dos sofrimentos psicológicos vêm de relações familiares. Dois terços das moléstias psicossomáticas, incluindo aí o uso de tóxicos e a depressão, vem de casamentos vazios. São pessoas que chegaram a uma certa idade e desistiram de brigar pela felicidade. Se acomodam e esperam a morte. A separação é um dos maiores dramas do ser humano, mesmo quando o casamento está lotado de problemas. O indivíduo fica encurralado: se fica dentro de casa, é infeliz; se sai de casa, se sente culpado e também é infeliz.. Eu, que já casei cinco vezes, posso dar meu testemunho. A experiência terapêutica não amenizou minha dificuldade ao me separar pela última vez. A maior parte dos casamentos dura o dobro do que deveria e só se estende pela covardia.