Guerras são inerentes à cultura. E também são inevitáveis. Elas surgem quando, de alguma forma, a ordem estabelecida é ameaçada por algum fator invasor: seja por defesa de um território, posses, amores ou ideais. Ou seja, resume-se na necessidade da manutenção ou ampliação do poder. Não é só um ímpeto pela violência gratuita, e sim pela conquista do poder. A maior arma de todas as guerras é a carga afetiva que as lideranças conseguem mobilizar. Muitas vezes, o envolvimento não parte especificamente da causa em jogo, e sim do encantamento desenvolvido por quem está à frente do pelotão. É necessário ter carisma e inteligência para recrutar soldados. Em um exército, a guerra também serve para evidenciar valores como confiança e a cumplicidade – mesmo que isso seja comprovado a duras penas.
Em diversas mitologias, temos a figura do combate personificada em deuses. Ares, Marte e Ogum são representantes desse mesmo arquétipo: todos trazem consigo o poder da mudança e da inconformidade, o caráter impulsivo e indomável, um quê justiceiro. Mas também são precipitados, inconsequentes, desmedidos. Em muitos de seus arroubos, não conseguem medir os interesses do bem comum. A confiança e a assertividade se transformam em intransigência e, por resultado, vem o sofrimento coletivo.
Jung dizia que o poder da coletividade é nefasto nesses momentos. Quando encontra apoio em semelhantes, a vontade de destruição ganha corpo de medidas desproporcionais. Sentindo-se apoiado pela massa, o indivíduo fica vulnerável diante dos próprios limites. Cometem-se assim atrocidades, resultando na punição de inocentes – o espírito da guerra provoca a cegueira, a incompreensão, o exagero.
Desde a Antiguidade, a guerra é vista também como um espetáculo. Há, de certa forma, um quê de gratificação na vitória do semelhante. Vemos no sacrifício do derrotado uma forma de exorcizar nossos conteúdos sombrios – exorcismo esse feito, muitas vezes, com excesso de preconceito e tendencialismo. Ouvi de uma pessoa próxima que a solução para tudo isso seria o extermínio daqueles que aparecem como participantes do narcotráfico. A medida sumária partiu de uma mulher formada, de cultura elevada, casada e com filhos, de situação econômica estável. Ou seja, uma pessoa “normal”, completamente ajustada aos padrões sociais que se espera. A guerra faz isso: cega para valores sublimes, como a vida.
Quem assiste a uma guerra urbana, como temos nas ruas do Rio, torce pela vitória da ordem, da segurança e da proteção – para a maioria da sociedade, valores representados pela polícia; para os habitantes das favelas, muitas vezes, representada pelo poderio dos traficantes.
Combates mortais funcionam, assim, como elementos de contraste. Não só entre bandidos e mocinhos, mas principalmente entre as disparidades sociais. Da mesma forma, temos a oportunidade de reavaliar nossos valores de humanidade: percebemos o valor da paz, reavivamos a necessidade das conquistas, entendemos a força de uma convicção. Uma situação como essa é preciso ser encarada com responsabilidade: o papel de quem assiste não é tão passivo como parece. Se buscamos a paz, precisamos temer o espírito da guerra e afasta-lo, em vez de exalta-lo. Quanto mais cedo refletirmos sobre isso, mais rapidamente teremos as maravilhas de volta ao Rio.
* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br