Self

Correio Braziliense – Revista: O legado de Jung

Para celebrar os 50 anos de morte de C. G. Jung, a Revista do Correio resolveu publicar uma reportagem especial sobre a contribuição da Psicologia Analítica para a sociedade. Recebi o gratificante convite de ser o responsável pelo material e aceitei o desafio. O resultado foi gratificante: tivemos uma boa repercussão do público e da comunidade junguiana.


Reproduzo, abaixo, o conteúdo na íntegra.

Cinquenta anos depois da morte do psiquiatra suíço, a psicologia analítica se desenvolve no Brasil e ganha novos adeptos. Sonhos, pinturas e muito estudo promovem o autoconhecimento e a cura para os mistérios da alma

O LEGADO DE JUNG

João Rafael Torres // Especial para o Correio

“Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou.” Com essas palavras, usadas para iniciar a sua autobiografia, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung tenta sintetizar a experiência de 85 anos e 10 meses de vida a serviço da compreensão da mente humana. Você pode nunca ter ouvido falar dele, mas certamente já ouviu os termos “complexo”, “sincronicidade” e “inconsciente coletivo”. Se os tem incorporados em seu léxico, você compartilha ideias junguianas mesmo sem se dar conta disso.

Jung foi contemporâneo de Freud e chegou a trocar com ele uma série de experiências e conceitos sobre o inconsciente. Conta-se que o primeiro encontro entre eles durou mais de 13 horas ininterruptas de conversa. As divergências teóricas fizeram com que rompessem a parceria: Jung não concordava com a redução dos males psíquicos à sexualidade, feita pelo colega; Freud acreditava que o interesse do suíço pelas religiões e temas místicos era um devaneio inútil, que nada podia contribuir para a psicologia.

Filho de um pastor luterano e primo de uma médium, Jung percebeu uma enorme influência da fé sobre a psique — seja de uma forma saudável ou doentia. Isso o despertou a estudar a filosofia oriental, oráculos, mitologias e a alquimia. Some a esse conhecimento os grandes clássicos da literatura internacional, biologia, física quântica… O resultado de tanta erudição foi a Psicologia Analítica, que o sagrou como o segundo nome mais citado no mundo quando o assunto é o entendimento do que se passa com a mente humana. Amanhã, o mundo celebra o cinquentenário da morte do autor. E, para homenageá-lo, a Revista apresenta uma reportagem especial sobre o misterioso e encantador universo do inconsciente, pela óptica junguiana.

Esqueça o porquê. Pergunte-se para quê?

Enquanto muitas abordagens psicoterápicas se focam no “por que” (as razões dos conflitos) ou no “como” (estratégias comportamentais), a análise junguiana objetiva o “para que”. Ou seja, a função final, o sentido intrínseco de cada experiência. Dessa forma, o futuro não se configura como o resultado de circunstâncias, e sim no fruto de escolhas responsáveis. Além disso, a compreensão sobre o inconsciente leva a um entendimento e integração dos conteúdos desejáveis e indesejáveis, do masculino e do feminino, e da interação do indivíduo com o mundo e do mundo com o indivíduo.

A relação entre cliente e analista também se diferencia de outras abordagens. O atendimento geralmente é feito face a face, e as sessões são mais dialogadas — não há o distanciamento e o excesso de formalidade que muitas vezes marca a psicanálise freudiana. Sonhos, fantasias, produções artísticas, eventos sincronísticos e sintomas são integrantes no processo analítico: eles oferecem mensagens vindas do inconsciente. “Mas convém lembrar que o sucesso de qualquer terapia se dá a partir da empatia que surge entre cliente e terapeuta. Isso terá variações até mesmo entre analistas junguianos”, ressalta Tito Cavalcanti, da SBPA.

Depois de passar por outras duas abordagens psicoterápicas, a administradora Flávia Lopes, 38, encontrou na Psicologia Analítica a sua escolha para o autoconhecimento. A escolha não foi deliberada. “Conheci a terapia junguiana por acaso, num momento marcante de perdas. Hoje posso dizer que sou seguidora convicta”, brinca. O diferencial que a despertou a atenção foi o olhar global sobre o homem: as necessidades do corpo, da mente e da alma recebem a mesma atenção dentro do consultório. “Isso dá uma noção mais viva das próprias emoções, ensina a aproveitar o melhor momento em cada situação, leva a entender sobre meu ritmo e o ritmo do mundo”, sintetiza.

O encontro com o inconsciente, a partir da análise dos sonhos, aprofundou o encontro consigo mesma. “Percebi, em primeiro lugar, que os sonhos não nos deixam mentir. Eles denunciam nossa verdadeira essência diante dos conflitos, mesmo quando queremos ignorá-la”, explica. A familiaridade com a linguagem simbólica promoveu em Flávia uma maior integração com os valores do masculino e do feminino. “Aprendi inclusive a dar expressão ao meu lado ‘mulherzinha’, sem perder a determinação e a força para vencer os desafios da vida”, avalia.

Decifrando o enigma

A reedição da obra junguiana no Brasil é apontada como a mais importante das ações de homenagem aos cinquentenário da morte do psiquiatra. Pela primeira vez, os livros são traduzidos diretamente do alemão para o português em um trabalho de anos. O grande desafio está no alto nível de erudição de Jung: enquanto a leitura de Freud é de compreensão simples e direta, os escritos do suíço são rebuscados e não lineares. Um grande desafio para quem se propõe a estudá-lo. No entanto, o interesse pela obra se mostra crescente: seja pela procura de cursos de formação ou de literatura especializada.

O administrador Cleudir Santos, 51, sempre teve um interesse aguçado pelas questões religiosas, especialmente pelo catolicismo. Tanto que decidiu fazer uma formação paralela em teologia, onde teve os primeiros contatos com os conceitos de Psicologia Analítica. Na teoria, encontrou respostas para validar a própria fé. “Jung foi um grande teólogo, na medida em que estudou a fundo as ações da fé sobre a vida das pessoas a partir de diferentes religiões”, considera. A curiosidade e a identificação que sentiu o levaram a uma especialização na área.

Para Cleudir, Jung conseguiu sintetizar e explicar as experiências dos grandes místicos e santos a partir dos movimentos psíquicos. “Ele entendeu que todos eles (os místicos) viveram experiências intensas, que apontam para a presença de Deus dentro de nós, e não num mundo exterior”, entende. Essa consciência, ainda criticada por muitas instituições religiosas, aponta principalmente para a ligação individual que se estabelece entre o homem e a espiritualidade. “Descobrimos que o autoconhecimento é a função maior para o encontro com a divindade. Isso é capaz de nos libertar, mas também nos confere mais responsabilidade sobre o próprio caminho.”

O interesse de pessoas como Cleudir tem impulsionado o estudo da obra junguiana no país. No Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (IJEP), por exemplo, a cada semestre, cerca de 30 brasilienses ingressam no curso de especialização em Psicologia Analítica. Desse total, 40% não têm formação em psicologia, nem demonstram interesse em se tornarem analistas. Waldemar Magaldi Filho, fundador do IJEP, atribui essa procura à temática abordada por Jung, que se mantém atual. “Ele foi visionário, ao entender o homem e o planeta em um contexto maior e mais complexo, defendendo uma visão mais integral e autossustentável”, explica.

Para começar
Jung – O mapa da Alma, de Murray Stein (Ed. Cultrix): apresenta os conceitos junguianos de forma concisa e clara, essencial para quem quer se familiarizar com a teoria.

O homem e seus símbolos, de C.G. Jung (org.) (Ed. Nova Fronteira): um compilado de textos do suíço e seus principais colaboradores, com linguagem acessível.

Guia para a Obra Completa de C.G. Jung, de Robert H. Hopcke (Ed. Vozes): apresenta um resumo conceitual, com referências diretas para os textos originais.

O livro dos mistérios

A maior preciosidade da teoria junguiana só veio a público há três anos, com a publicação de O Livro Vermelho – Liber Novus: um compêndio de ilustrações e textos elaborados em manuscrito caligráfico, no estilo dos pergaminhos medievais. O livro foi escrito entre 1914 e 1930, e retrata fortes experiências psíquicas vividas por Jung durante três anos: sonhos, visões e premonições, que o incomodaram tanto a ponto de decidir suspender as conferências e compromissos médicos. O primeiro, que motivou o registro, é excessivamente perturbador: em 1913, ele viu toda a Europa coberta por sangue e cadáveres.

“Jung julgou estar psiquicamente perturbado. Quando, no ano seguinte, estourou a primeira grande guerra, com seu incontável número de mortos e sofrimento para milhões, percebeu o caráter antecipatório de sua visão”, explica Walter Boechat, revisor da tradução do livro para o português, membro-fundador e ex-presidente da Associação Junguiana Brasileira (AJB). O psiquiatra encontrou no relato minucioso e nas pinturas a melhor forma de amenizar tais imagens, além de atribuir-lhes um sentido.

O conteúdo controverso o levou a decidir por uma publicação póstuma do livro — desejo que foi mantido pela família até o ano de 2000. Em sua autobiografia, ele aponta o Livro Vermelho como o cerne para toda a Psicologia Analítica. No Brasil, o livro foi publicado pela Editora Vozes, seguindo as mesmas dimensões e a qualidade de impressão anglo-americana.

De polêmica e controvérsia

Curiosidade, coragem e humildade. Tais atributos são primordiais para definir a postura de Jung diante de temas polêmicos, até então não contemplados pela academia. Entre eles, a necessidade de nutrir valores espirituais para a realização do indivíduo — talvez o maior ponto de divergência entre ele e Freud, o grande motivo do rompimento entre eles. Jung defendia que a espécie do homem contemporâneo pode ser definida como Homo religiosus — traz a necessidade da crença em um princípio unificador e totalizante, como um traço genético da fé. A maior prova disso seria a manifestação religiosa como um bem inerente a todas as culturas, independentemente do local ou do tempo. Esse conceito o levou a ser interpretado erroneamente como um místico.

Joyce Werres, diretora de ensino do Instituto Junguiano do Rio Grande do Sul (IJRS), avalia que um dos grandes méritos do psiquiatra foi buscar informações em fontes não óbvias na época. Entre elas, as filosofias orientais, mitologias, religiões e a alquimia medieval. Estudou a fundo oráculos como o I Ching, o tarô e a astrologia. Era amigo de físicos como Albert Einstein e com eles percebeu uma grande similaridade entre as leis físicas e o dinamismo psíquico. “Jung explorou todos os caminhos capazes de atribuir sentido ao homem, pois esse é o diferencial de sua psicologia. Com sua grande erudição, agregou informações importantes para explicar o funcionamento da psique, sem os reducionismos que dominavam a ciência da época”, explica.

Esse aspecto faz com que a conceituação dos principais termos junguianos seja tão complicada. O próprio Jung dizia que muitos de seus conceitos não estavam concluídos. É o caso da sincronicidade: ele só se decidiu a publicar suas ideias aos 75 anos, quase 30 anos depois de usar o termo pela primeira vez em um discurso. Tais controvérsias são o tema do congresso “O lado mal dito de Jung”, a ser realizado em setembro pelo IJRS. Os avanços científicos também ofereceram uma compreensão maior de teorias estruturadas naquela época, e contestadas pela academia ortodoxa. Hoje, a sincronicidade é apontada como uma possibilidade plausível graças aos avanços na física quântica, que comprovam a relatividade do tempo.

No entanto, os junguianos estão atentos ao mau uso das terminologias criadas pelo psiquiatra suíço. Principalmente para evitar que a teoria se transforme em alguma espécie de dogma. “Ler sobre astrologia, I Ching e alquimia na obra de Jung pode levar à falsa crença de que ele defendia o misticismo, e não a psicologia. Esse é um erro de quem olha a produção com superficialidade”, defende Tito Cavalcanti, membro-analista e ex-presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica.

O que ele quis dizer

Sincronicidade: O termo foi criado por Jung para definir as ditas coincidências significativas: eventos que aparentemente não correlacionados pelas leis de causa-efeito, mas que, ao se realizarem, denunciam uma intensa ligação entre si. Oferecem um novo sentido a pelo menos um dos envolvidos. Os eventos sincronísticos são interpretados por Jung como uma manifestação direta da sabedoria inata do inconsciente.

Arquétipos: São ideias conceituais ou padrões de percepção e compreensão psíquica de determinado tema, formados pelo resultado de toda a experiência humana sobre aquele mesmo tema. Por exemplo: o arquétipo da mãe contém todos os atributos comuns à maternidade (o cuidado, a mama, a proteção etc. — traços semelhantes em todas as mães, independentemente da cultura ou do período histórico em que estejam inseridas). Os arquétipos são herdados por todos os humanos. Não tem forma e só pode ser percebido a partir das imagens arquetípicas, que se formam a partir das experiências vividas por cada indivíduo. Não são negativos ou positivos. Dão origem às mitologias.

Inconsciente coletivo: É o nível mais profundo do inconsciente formado pelos arquétipos e pelos instintos, é o resultado de toda a experiência humana, compartilhado por todos que pertencem à raça humana. O acesso ao seu conteúdo, no entanto, é mais limitado: geralmente é percebido nas cisões psicóticas, em experiências de êxtase, oráculos e em alguns sonhos.

Complexos: É formado por uma ideia arquetípica, em torno da qual se concentram imagens resultantes de experiências ligadas a este tema. Essas imagens são amalgamadas por afetos, as emoções ativadas. Cresce como uma bola de neve. Na medida em que se desenvolve, o complexo ganha força e autonomia, interferindo diretamente na consciência.

Self ou Si-mesmo: É o princípio unificador, regulador e organizador, e, ao mesmo tempo, a representação da psique. É a sabedoria inata, a expressão da individualidade. Jung o chamou de “o deus em nós”. O Self não é Deus em si (um conceito religioso), e sim a imagem divina que carregamos e moldamos durante o nosso desenvolvimento. É o que nos norteia para o caminho de realização de nossa existência — a chamada individuação.

Da loucura à arteterapia

A ideia parece inconcebível: um paciente psicótico em surto, completamente alheio da realidade e do autocontrole, toma nas mãos tinta e pincéis e, com eles, produz imagens de grande força e expressividade. Verdadeiras obras de arte. Na medida em que avança com o trabalho, o comportamento se apazigua e surge a possibilidade de uma reinserção social nos parâmetros ditos normais. Essa história foi vivida por centenas de pacientes do Hospital Psiquiátrico D. Pedro II, do Rio de Janeiro. Tudo por iniciativa da médica alagoana Nise da Silveira, a grande responsável pela inserção da psicologia junguiana no Brasil e também por impulsionar a reforma manicomial no país.

Nise sempre foi vista como uma pessoa revolucionária — não é à toa que ficou dois anos presa no período da ditadura militar. Essa experiência foi decisiva para que ela desenvolvesse um novo olhar sobre a loucura: negava-se à aplicação de eletrochoques ou a reclusão individual dos doentes, por exemplo. Em substituição, oferecia-lhes instrumentos para que pudessem expressar a criatividade. “Ela via que a expressão artística despotencializava as emoções que tanto aflingiam os doentes. Eles conseguiam dar forma e cores ao que sentiam”, explica Gladys Schincariol, que foi estagiária de Nise em 1974 e hoje é a atual coordenadora do Museu de Imagens do Inconsciente. O acervo, que passa de 350 mil obras, é formado pela produção dos pacientes.

A amizade de Nise e Jung se iniciou em 1954, quando ela soube do interesse do suíço pela simbologia das mandalas. Escreveu ao colega, dizendo que vários de seus pacientes produziam, espontaneamente, imagens circulares como os desenhos orientais estudados por ele. Jung a chamou a expor os estudos que desenvolvia no Segundo Congresso Internacional de Psiquiatria e, desde então, ficaram amigos e parceiros de trabalho.

Nas diretrizes da Psicologia Analítica, o inconsciente registra todas as impressões que tem do mundo a partir de imagens. Até mesmo quem nunca enxergou carrega em si a capacidade de abstração imagética. Parte desse conteúdo nos é revelado diariamente, a partir dos sonhos. Juntos, Nise e Jung perceberam que a expressão artística espontânea favorece a organização dos elementos psíquicos, promovendo a cura — bases para a arteterapia. “O alívio não surge somente nos psicóticos, mas também naqueles indivíduos que têm dificuldades para enfrentar seus dramas e conflitos pessoais”, completa Gladys.

Corpo e mente: separados, mas juntos
A visão integral de Jung para o homem correlaciona diretamente a psique e o corpo, e não como entes separados que coexistem. Ele entendeu os distúrbios físicos e psíquicos como formas de expressão de uma dinâmica distorcida da psique. Percebeu também um intenso paralelo entre esses dinamismos e as grandes questões da alma humana, manifestas nas diferentes mitologias. Contestou assim a ideia de Nietsche: os deuses não estão mortos, eles se transformaram em sintomas. Essa é a base da psicossomática, que investiga a íntima relação entre mente e corpo.

Sonhos, fonte de sabedoria

Jung acreditava que os sonhos funcionavam como fotografias do dinamismo psíquico. As imagens neles contidas teriam uma função não só compensatória, como acreditava Freud, mas também serviriam para educar, orientar e até mesmo revelar lampejos de futuro — os ditos sonhos premonitórios, capazes de romper as fronteiras do tempo e do espaço. O olhar sobre o sonho, ensina, nunca deve ser restritivo: não cabe uma interpretação direta, como as sugeridas nos “dicionários dos sonhos”. O conteúdo deve ser sempre contextualizado a partir das referências pessoais do indivíduo que sonha. Abaixo, algumas dicas para que você tire proveito dos recados que o inconsciente oferece a cada noite.

— Construa um “sonhário”: Jung dizia que o simples registro diário dos sonhos já constitui um exercício terapêutico. Na medida em que anotamos as imagens, peripécias, sensações e emoções experimentadas no mundo onírico, conseguimos “organizar” os movimentos psíquicos. Compre um caderno que deverá ser dedicado exclusivamente aos sonhos e transforme o registro dos mesmos em um hábito diário.

– Descreva sempre um sonho no momento presente, como quem relata algo real. Comece pelos lugares, seguindo pelo contexto e pelo papel que você assume. Em seguida, relate as emoções vivenciadas, a evolução da cena e o desfecho. A preguiça deve ficar de lado: anote todos os detalhes que lembrar.

— A linguagem do inconsciente é sempre alegórica, simbólica. Assim sendo, todos os elementos presentes num sonho (dos personagens aos objetos) não devem ter interpretação literal — tudo faz parte de você e fala de você.

— Ao terminar o relato, tente fazer um exercício livre de associações entre aquilo que vê e as relações que se estabelecem com a vida. Jung chamou esse exercício de amplificação. Por exemplo: ao sonhar com uma colega de trabalho com quem não se tem muito contato, observe quais as principais características que ela transmite. O mesmo vale para os objetos: resgate a história relacionada a eles. Amplificar é buscar sentido diante das imagens que aparecem.

— Não tente encerrar o conteúdo de um sonho, atribuindo um significado único. Quanto mais múltiplo for o sentido, mais valia terá. Se achar interessante, escreva o resultado da amplificação abaixo do sonho.

— Em geral, todos os sonhos da mesma noite têm uma temática comum e, depois de serem analisados individualmente, deverão ser observados como um conjunto conciso. O mesmo vale para aqueles tidos durante um período específico da vida (durante uma viagem, ao fim de uma relação etc.). Dessa forma, o sentido que eles oferecem torna-se mais claro.

— Você quer começar, mas simplesmente não consegue lembrar do que sonhou? Não se aflija. Encare como um exercício. Na medida em que começamos a dedicar tempo para os sonhos, eles tendem a ficar mais limpos, vívidos e vivos na memória.

— A observação continuada dos sonhos, acompanhada por um psicoterapeuta ou analista, é um poderoso instrumento de cura e de desenvolvimento pessoal. O processo promove o autoconhecimento a partir dos elementos vindos do inconsciente.

Outras Ondas* – Qual será a minha loucura?

Ninguém mais fica triste num luto, todos se deprimem. Crianças não são mais travessas, elas têm distúrbios neurológicos que as transformam em hiperativas. A falta de interesse por uma disciplina enfadonha, associada à baixa persistência para compreendê-la, transforma o adolescente em uma vítima de transtornos de déficit de atenção. Afetos não servem mais como agregadores de experiência de vida humana: são doenças que merecem tratamento. A insanidade seria a nova majestade do mundo?

O verso “de perto ninguém é normal”, popularizado por Caetano Veloso em Vaca profana, ganha novas atribuições no mundo contemporâneo: a tal normalidade, vista antes como um desejo comum, torna-se pequena demais para se viver. Todos têm ou precisam ter um distúrbio qualquer, uma intolerância qualquer, um comprometimentozinho que seja. Cada vez mais se recorre aos rótulos patológicos na corrida desenfreada para justificar as limitações pertinentes ao humano, inconcebíveis num mundo que prima perigosamente pela perfeição. E junto com tais rótulos, vêm de maré os milagrosos fármacos – dotados do poder excepcional de transformar a todos em pessoas normais, adequadas ou livres do sofrimento de viver.

C. G. Jung ensina em suas obras que o grande exercício do terapeuta é de enxergar o doente em vez da doença. Assim sendo, pouco importa a nomeclatura científica usada para definir o quadro de sofrimento que o indivíduo apresenta. O que vale é a sua história e a sua capacidade de se adaptar a ela. Atualmente, inclusive, até mesmo os profissionais chegados aos rótulos sofrem com a síndrome da desatualização: a cada dia, surgem novas patologias, que desbancam as anteriores pela especificidade que conseguem alcançar. Caçam um dos tais rótulos que se enquadre nas queixas. E muitas vezes se esquecem de investigar as origens do conflito, as limitações subjetivas que ele impõe e, principalmente, os benefícios que ele traz para o doente e para quem o cerca.

No olhar junguiano, cada doença tem uma função específica por estar ali. Elas são a expressão de uma psique que não consegue, por motivos diversos, adaptar as inclinações do mundo interior com o que encontram no mundo externo. O sintoma surge como a manifestação da tensão que se forma. É a voz da psique denunciando o que não percebemos, ou (na maioria das vezes) não queremos perceber. Nesses parâmetros, a medicação desenfreada para normalizar que se vê perturbado não passa de um disfarce diante das evidências. Ao cessar o efeito, o conflito se retoma com ainda mais vigor.

Isso não significa dizer que a evolução dos fármacos não devolva a plenitude de atividades para muitos que se encontram em crise. O complicador está na profusão do uso dos mesmos como o método mais eficiente de tratamento e cura, dispensando o autoconhecimento. Para chegar a ele, é necessário lidar com uma difícil lição: o enfrentamento dos problemas – complicado demais por nos levar a reconhecer o nosso papel diante da dependência efetiva diante daquilo que nos faz mal, dos ciclos de sabotagem que estabelecemos para mantê-lo, do olhar intransigente com o qual fitamos as necessárias mudanças íntimas.

Bem mais fácil é atribuir dores e frustrações a enzimas cerebrais descompensadas. Não somos preguiçosos diante dos desafios impostos pela vida, somos doentes – vítimas, dignas de piedade e de novas chances para repetir os mesmos erros. Despejar a culpa nos distúrbios, déficts e depressões é um exercício cômodo de quem busca ignorar que as emoções alteram a fisiologia do cérebro na mesma proporção que acontece ao contrário. Para perceber a verdade dessa premissa, faça a experiência: busque uma memória desagradável e veja como o seu corpo reage instantaneamente.

Pautar a cura no enfrentamento desenvolve um dos principais atributos para o desenvolvimento da psique: a resiliência. Essa é a qualidade do bambu: ao ser direcionado pelo vento em diferentes direções, ele desenvolve mais nós e torna-se mais forte, resistente e, ao mesmo tempo, flexível. Resiste assim às intempéries vindouras. Conosco, ocorre da mesma forma: fortalecemo-nos na medida em que nos percebemos capazes de vencer um problema com nosso próprio esforço, sem nenhum tipo de ferramenta que burle as regras do viver. O que não mata, fortalece – já diziam os antigos. Um atleta livre de aditivos artificiais percebe muito mais sabor na vitória, se comparado com aquele que venceu sob a tensão de ser pego no exame antidopping. Isso porque o primeiro conheceu, verdadeiramente, os seus limites e as possibilidades de superá-los.

Correio Braziliense – Revista: Ninguém é normal na Terra do Nunca…

Em novembro de 2011, escrevi uma reportagem sobre o livro O lobo mau no divã para a Revista do Correio. A publicação relaciona, de forma divertida, personagens de histórias infantis com transtornos e inadequações psíquicos. O tema despertou recentemente a atenção da equipe da emissora universitária de televisão MixTV. Fui convidado para uma entrevista sobre a influência de tais personagens sobre a formação da psique das crianças. O programa vai ao ar no dia 4, às 7h30 (NET, canal 22 (DF), 13 (SP) e 15 (RJ)). Por enquanto, reproduzo parte da reportagem publicada no Correio Braziliense.

Ninguém é normal na Terra do Nunca…

Quarta-feira à tarde, consultório psiquiátrico, sala de espera lotada. Enquanto Peter Pan tenta roubar a atenção de todos os presentes, o Homem de Lata permanece inerte em frente à televisão, como quem olha e não vê. Em outro canto, a madrasta da Branca de Neve mastiga chicletes incessantemente e, vez por outra, dá uma olhadela num espelhinho para conferir a maquiagem. A porta se abre e o Burrinho Ió deixa o consultório todo satisfeito, com a sonhada alta. Depois que passou a tomar um remedinho por dia, melhorou a relação com o Ursinho Pooh, Tigrão e companhia. Já pode administrar os problemas sem auxílio terapêutico.

Esse não é mais um conto de fadas, mas poderia ser. O vislumbre de analisar os personagens infantis à luz da psicologia não é novo. Mas, pela primeira vez, foi divulgado um relatório completo sobre as patologias de vários deles. Em O lobo mau no divã (Ed. Best Seller), a pesquisadora Laura James conta, com bom humor, como a psicoterapia pode ser útil para sanar os distúrbios psicológicos e psiquiátricos de vários deles. E, surpreenda-se: em alguns casos, os atributos que elevam alguns ao patamar de “o bonzinho da história” são, na verdade, resultado de uma neurose. Veja qual o mal que acomete alguns deles.

CINDERELA
Diagnóstico: Necessidade de aprovação social
Agradar a todos que a cercam, indo contra os próprios sentimentos, fez com que ela tivesse um comportamento doentio. A patologia começou após a morte da mãe – ela aceitou a madrasta e as irmãs de criação para não desapontar o pai. A reação dele, de não se opor aos maus-tratos impostos à filha pela segunda mulher, marcaram a forma de Cinderela se relacionar com o mundo. Ela passou a ter uma percepção fragmentada de si mesma. A fragilidade emocional pode ser percebida pelo fato de ela ter aceitado se casar com o único rapaz com quem se relacionou, após dois encontros (no baile e na devolução do sapato perdido na festa). A psicoterapia pode ajudar a reforçar a auto-estima e a abandonar as relações de dependência.


LOBO MAU
Diagnóstico: Psicopatia
A inabilidade em seguir regras, combinada com a falta de empatia, pode levá-lo a arroubos de fúria. A vida instintiva é seu ponto de apoio para cometer crimes: fundamenta-se em dieta carnívora para justificar assassinatos, falsidade ideológica e estelionato. Costuma estabelecer uma relação de confiança com as vítimas. Foi com perguntas aparentemente tolas que o lobo descobriu o itinerário de Chapeuzinho, uma de suas vítimas. O sentimento de superioridade e a falta de remorsos também fazem parte da patologia. Sugere-se ainda uma tendência de distúrbios sexuais, especialmente pedofilia. A internação em uma prisão psiquiátrica seria uma medida razoável, em prol da sociedade.

POOH e TIGRÃO
Diagnóstico: Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (TDAH). Tipo predominantemente desatento
Pooh tem uma extrema dificuldade em prestar atenção nos detalhes e em refletir sobre os fatos que o cercam. Como é natural da patologia, mantém um centro de atenção – no caso, a comida. Consciente da tendência à distração, chega a tomar nota dos acontecimentos e afazeres. Mas nem isso é capaz de organizar seus pensamentos. O transtorno que apresenta se opõe ao verificado no amigo Tigrão, que também tem TDAH, mas atende ao tipo predominantemente hiperativoimpulsivo. Ambos poderiam ser beneficiados com uma combinação de medicação e terapia comportamental. O principal ganho seria na realização de atividades cotidianas e uma melhora da auto-estima.

RAINHA MÁ
Diagnóstico: Transtorno de Personalidade Limítrofe (TPL), com traços de narcisismo
Atraente e envaidecida disso, a madrasta começou a apresentar problemas de relacionamento com a enteada, despertando arrogância e frieza. O quadro agravou os impulsos obsessivos que já faziam parte do histórico da Rainha – como se observar no espelho. O medo inconsciente da rejeição desperta atitudes furiosas e paranóicas. O abuso do poder sobre o caçador contratado para matar Branca de Neve é uma manifestação narcisística. Ela ainda desenvolveu uma dissociação de personalidade, manifestada pela obsessão por matar a enteada, fazendo com que os objetivos de vida sejam alterados drasticamente e de forma inconseqüente. Recomenda-se terapia comportamental continuada.

PETER PAN
Diagnóstico:
Narcisismo patológico e traços de personalidade autodestrutivos. Possível transtorno alimentar

O comportamento de Peter Pan é marcado pelos modos exagerados e pela ausência de empatia com os demais, que trata com indiferença e arrogância. O medo de responsabilidades e a insistência em conviver com fadas são sinais de um sentimento de inadequação à própria realidade – possivelmente resultado da ausência de vínculos familiares. Como todo narcisista, é no fundo extremamente frágil e inseguro, o que o torna sensível a críticas. A vulnerabilidade também se manifesta nas escolhas extremadas, no estilo oito ou 80. Os distúrbios alimentares podem ter duas causas aparentes: disputa pela atenção e medo de crescer ou envelhecer.

HOMEM DE LATA
Diagnóstico
: Transtorno de personalidade esquizóide
A morte precoce dos pais e as seqüentes violências sofridas depois disso transformaram o Homem de Lata em uma pessoa incapaz de estabelecer vínculos afetivos, preferindo a solidão. O transtorno se enraizou quando ele passou a usar uma armadura para esconder o resultado das agressões. A inabilidade de interagir, típica do transtorno, não é sinal de ausência de sentimentos, e sim de uma dificuldade de vivenciá-los por insegurança. A situação é notoriamente desconfortável e chega a ser somatizada no corpo com articulações travadas e na ausência de um coração. Buscar ajuda com o Mágico de Oz oferece um prognóstico interessante, embora seja mais recomendável o auxílio de um psiquiatra.

BURRINHO
Diagnóstico: Transtorno distímico (disforia)
O aspecto cabisbaixo do burrinho, com atitudes constantes de humilhação, pode ser influenciado por uma série de fatores. A começar pela dieta adotada: a alfafa, que compõe a base de sua alimentação, é pobre em vitaminas, minerais e ácidos graxos, essenciais para manter a saúde física e mental. Morar afastado dos amigos também pode ter contribuído para um complexo de inferioridade. Mas a perda do rabo ainda na infância se configura como centro do quadro patológico. Como sintoma do transtorno, Ió se nega a pedir ajuda. Como tratamento, a fluoxetina seria uma boa alternativa, combinada com psicoterapia. Por se tratar de um mal de influência social, seria recomendada uma terapia em grupo.

ALICE
Diagnóstico: Não apresenta distúrbios – alta médica
Fruto de uma família bem ajustada, a menina Alice consegue manter a sanidade mesmo quando inserida em um mundo surreal, repleto de indivíduos desajustados. Permanece calma até mesmo sob influência de substâncias que alteraram sua percepção. É otimista sem exageros e responsável (preocupa-se com quem alimentará sua gata Dinah enquanto estiver no País das Maravilhas). Diante das adversidades, não se entrega ao desespero e busca um caminho de recuperação. A moral da menina, apesar da pouca idade, também é forte: ela institui um veredito antes da condenação do Valete de Copas. Pela lucidez e firmeza de personalidade, é dispensada do tratamento.

Outras Ondas* – O ser e o estar

Nossa vida é feita de papeis que devemos cumprir. Aprendemos a pertencer a um gênero, a sermos bons filhos, a desenvolver uma profissão, a nutrir uma religião, a transmitir valores aos descendentes… Tornamo-nos uma mescla de personagens, dispostos a atender expectativas que a vida nos deposita. Em geral, promovemos essa variação de papeis com maestria: assumimos a máscara mais condizente com cada situação, como era a prática nos teatros antigos. E quando não conseguimos ser hábeis o suficiente para alternar entre as máscaras?

A identificação excessiva com uma determinada função social sempre nos leva a uma visão distorcida da realidade. Confundimo-nos com o personagem, só conseguimos enxergar a realidade a partir dos olhos dele. Nutrimos expectativas referentes a esse papel, cremos que ele é a nossa única forma de realização e felicidade. Restringimos nosso papel diante do mundo: nos tornamos especialistas, em vez de plurais.

Em geral, a máscara que se cristaliza diante da face é aquela que julgamos oferecer a maior recompensa pelo reconhecimento: a melhor mãe do mundo, o médico mais respeitado, a fiel mais devota, o mais descolado dos amigos… Se questionados por outrem, não hesitamos em dizer: somos os mais felizes justamente por termos tais títulos, seguimos incansáveis.

No entanto, para que tal máscara se mantenha impecavelmente lustrada, dispomo-nos a um sacrifício de outros fatores da vida. A mãe deixa de ser mulher, o médico se distancia da realidade, o fiel ignora as delícias mundanas, o descolado precisa ter sempre as tiradas mais libertárias, mesmo no dia em que as adversidades da vida extinguem o bom humor. Em alguns momentos, cada um desses títulos nos transforma em alguém especial, venerável. Se vividos vinte e quatro horas por dia, o motivo de orgulho transforma-se num fardo. O desejo íntimo é de um refúgio, de férias de si mesmo.

Sempre que um papel social se sobressai ao extremo, que somos reconhecidos por um atributo e não pelo que verdadeiramente somos, precisamos refletir. Qual a autoimagem que tenho? Quais são os propósitos que alimento fora dessa instância onde reino? Muitos temem esse exercício, justamente por não quererem encarar que a alma está empobrecida. Condicionar nossa felicidade e bem estar a uma única fonte é bastante arriscado. Se não formos infalíveis, encontraremos a frustração na esquina e vamos sucumbir. Uma dica: ninguém é infalível, por melhor e mais dedicado que seja.

O primeiro passo para promover o tal enriquecimento interior é reconhecer que o custo-benefício que o papel tão bem cultivado já não atende às nossas expectativas existenciais. Somos mais que isso. Não é um exercício fácil, afinal já estamos muito bem condicionados a responder diante disso. E também, na medida em que alimentamos tal imagem, despertamos expectativas nos outros. Mesmo que seja somente para que aliviemos suas angústias, facilitando-lhes a vida e limitando-lhes a chance de crescer com as adversidades da vida – uma postura um tanto egoísta, vamos combinar. É uma questão de escolha: a quem preferimos frustrar, os outros ou nós mesmos?

Descobrir-se diferente não é renegar os títulos que tanto nos promoveram o desenvolvimento. Não é preciso agir com ingratidão. A ideia é cultivar o respeito aos anseios, ao desejo de expansão. Os títulos que forem realmente seus vão permanecer, pode acreditar. Os que não ficarem… Bem, aquilo não era você.

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Também é importante perceber que nem todas as máscaras que nutrimos são positivas ou construtivas. Muitas vezes, nos atrelamos papeis como o “injustiçado”, o “desqualificado”, o “menos capaz”. Até mesmo nessa associação com a vítima encontramos uma gratificação. Mas isso é tema para outra conversa.

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