Self

Outras Ondas* – Qual será a minha loucura?

Ninguém mais fica triste num luto, todos se deprimem. Crianças não são mais travessas, elas têm distúrbios neurológicos que as transformam em hiperativas. A falta de interesse por uma disciplina enfadonha, associada à baixa persistência para compreendê-la, transforma o adolescente em uma vítima de transtornos de déficit de atenção. Afetos não servem mais como agregadores de experiência de vida humana: são doenças que merecem tratamento. A insanidade seria a nova majestade do mundo?

O verso “de perto ninguém é normal”, popularizado por Caetano Veloso em Vaca profana, ganha novas atribuições no mundo contemporâneo: a tal normalidade, vista antes como um desejo comum, torna-se pequena demais para se viver. Todos têm ou precisam ter um distúrbio qualquer, uma intolerância qualquer, um comprometimentozinho que seja. Cada vez mais se recorre aos rótulos patológicos na corrida desenfreada para justificar as limitações pertinentes ao humano, inconcebíveis num mundo que prima perigosamente pela perfeição. E junto com tais rótulos, vêm de maré os milagrosos fármacos – dotados do poder excepcional de transformar a todos em pessoas normais, adequadas ou livres do sofrimento de viver.

C. G. Jung ensina em suas obras que o grande exercício do terapeuta é de enxergar o doente em vez da doença. Assim sendo, pouco importa a nomeclatura científica usada para definir o quadro de sofrimento que o indivíduo apresenta. O que vale é a sua história e a sua capacidade de se adaptar a ela. Atualmente, inclusive, até mesmo os profissionais chegados aos rótulos sofrem com a síndrome da desatualização: a cada dia, surgem novas patologias, que desbancam as anteriores pela especificidade que conseguem alcançar. Caçam um dos tais rótulos que se enquadre nas queixas. E muitas vezes se esquecem de investigar as origens do conflito, as limitações subjetivas que ele impõe e, principalmente, os benefícios que ele traz para o doente e para quem o cerca.

No olhar junguiano, cada doença tem uma função específica por estar ali. Elas são a expressão de uma psique que não consegue, por motivos diversos, adaptar as inclinações do mundo interior com o que encontram no mundo externo. O sintoma surge como a manifestação da tensão que se forma. É a voz da psique denunciando o que não percebemos, ou (na maioria das vezes) não queremos perceber. Nesses parâmetros, a medicação desenfreada para normalizar que se vê perturbado não passa de um disfarce diante das evidências. Ao cessar o efeito, o conflito se retoma com ainda mais vigor.

Isso não significa dizer que a evolução dos fármacos não devolva a plenitude de atividades para muitos que se encontram em crise. O complicador está na profusão do uso dos mesmos como o método mais eficiente de tratamento e cura, dispensando o autoconhecimento. Para chegar a ele, é necessário lidar com uma difícil lição: o enfrentamento dos problemas – complicado demais por nos levar a reconhecer o nosso papel diante da dependência efetiva diante daquilo que nos faz mal, dos ciclos de sabotagem que estabelecemos para mantê-lo, do olhar intransigente com o qual fitamos as necessárias mudanças íntimas.

Bem mais fácil é atribuir dores e frustrações a enzimas cerebrais descompensadas. Não somos preguiçosos diante dos desafios impostos pela vida, somos doentes – vítimas, dignas de piedade e de novas chances para repetir os mesmos erros. Despejar a culpa nos distúrbios, déficts e depressões é um exercício cômodo de quem busca ignorar que as emoções alteram a fisiologia do cérebro na mesma proporção que acontece ao contrário. Para perceber a verdade dessa premissa, faça a experiência: busque uma memória desagradável e veja como o seu corpo reage instantaneamente.

Pautar a cura no enfrentamento desenvolve um dos principais atributos para o desenvolvimento da psique: a resiliência. Essa é a qualidade do bambu: ao ser direcionado pelo vento em diferentes direções, ele desenvolve mais nós e torna-se mais forte, resistente e, ao mesmo tempo, flexível. Resiste assim às intempéries vindouras. Conosco, ocorre da mesma forma: fortalecemo-nos na medida em que nos percebemos capazes de vencer um problema com nosso próprio esforço, sem nenhum tipo de ferramenta que burle as regras do viver. O que não mata, fortalece – já diziam os antigos. Um atleta livre de aditivos artificiais percebe muito mais sabor na vitória, se comparado com aquele que venceu sob a tensão de ser pego no exame antidopping. Isso porque o primeiro conheceu, verdadeiramente, os seus limites e as possibilidades de superá-los.

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