Eu tenho um amor guardado na gaveta. É um amor íntimo, seguro, inexorável. Um amor que não deu certo, um amor impossível, um amor bom demais para que a minha humanidade consiga suportar. Uma referência viva de tudo aquilo que reflete perfeição. Não fui preterido, não sofro por não poder vivê-lo, e não estou insatisfeito com os amores possíveis de hoje. Sou sincero e declaradamente correspondido nesse amor que soa como utópico. Vivemos esse sentimento como uma promessa de felicidade num futuro que nunca chega. E, no fundo, sabemos que esse futuro não chegará.
Esse amor foi parar na gaveta por ser valioso demais para ser vivido com a fugacidade que estamos habituados. As adversidades exigiram calma e tato para melhor cuidá-lo. O tempo seguiu seu curso, cada vida tomou seu rumo. E ele se manteve vivo, embrionário, como uma semente que espera pacientemente a hora de ser cultivada.
Como é pertinente a quem ama, não poupo preocupações, elogios e mimos ao meu amor. Ligo no aniversário e desejo realmente o melhor, como se o desejasse a mim mesmo. Não me importo com quem que, neste momento, dá o abraço que eu gostaria de dar. Esse tipo de cobrança perde morada quando se há um amor assim. O importante é ver que meu amor luta para ser feliz, crescer e ser alguém melhor. É entender que até mesmo a minha ausência reforça no ser amado aquilo que tanto admiro. Na falta de quem nos completa de forma tão mágica, aprendemos a nos moldar com mais plasticidade ao que soa como diferente. Perdemos em intransigência, ganhamos em adaptação. E esse ganho se reverte no mundo que nos cerca.
Na promessa do dia do encontro, que nunca vem, encantamo-nos com o que brota do peito: aquilo de mais doce, que jamais ousamos desafiar. Lascívia e respeito se misturam em amálgama perfeita, transformando medos em tolices. E daí refletimos que tolos somos nós, que nos deixamos envolver com sonhos que esbarram na realidade.
No nosso coração, a gaveta que guarda esse amor está duas acima daquela que guarda aqueles velhos amigos que a correria da vida engoliu. Assim como eles, pode passar longos períodos no esquecimento, a ponto de enganarmo-nos achando que eles já não estão mais ali. Mas basta um breve contato, ou até mesmo uma lembrança, para percebermos o quão importantes são a mim. E não podemos confundir as sensações que isso desperta como nostalgia – nostalgia é um pesar sobre aquilo que não volta mais, e, na verdade, amores e amigos de gaveta nunca deixaram de ser o que são. Esse é o gaveteiro dos grandes tesouros, o porta-joias que não se deterioram com o passar do tempo.
De que me serve um amor, se não consigo tirá-lo da gaveta, se ele não poderá se realizar? Avareza, masoquismo, reserva de mercado, auto-engano? Nada disso. Só quem sabe o valor de um verdadeiro amor entende o porquê de não querer desperdiçá-lo com o nosso despreparo para a vida. Afinal, essa é a certeza que ele traduz: um verdadeiro amor se basta em si.
“Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,
E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.”
(Eros e Psique, Fernando Pessoa, 1934)