Self

Outras Ondas* – A vida é curta

A comunidade científica se agitou na última semana por uma notícia polêmica: a afirmação de que, em poucas décadas, a vida humana pode ter questionado o seu caráter de finitude. As limitações provocadas pelo passar dos anos estariam sob o completo domínio dos médicos, que seriam capazes de “curar” a velhice – advento citado nesses termos, convém ressaltar. Nossos descendentes viveriam por séculos, tal qual vemos em algumas ficções. A premissa, vinda de um dos principais pesquisadores sobre genética e longevidade, empolga uma parcela da população e coloca uma outra parte para pensar: o que faríamos com uma vida tão longa?

Esse questionamento pode soar como um quê niilista, ou de descrença diante das inúmeras beneficies do mundo. Não, não defendo a morte antecipada. Mas defendo a qualidade de vida, o cultivo do bem-viver. Também não me sinto como alguém gabaritado para oferecer receitas prontas dessa vida em abundância e harmonia – também aconselho a desconfiar de quem se diga capaz de fazê-lo. Mas sinto que é importante questionar os hábitos e valores cultivados na contemporaneidade. E se for para continuar assim… muito obrigado, mas abro mão de viver por séculos nesse mundo que temos disponível.

O homem se esforça para manter-se vivo pelo máximo de tempo possível. Quais os propósitos incutidos nessa proposta de longevidade? De que serviria tanta vida? O questionamento é pertinente, já que nos encontramos em um mundo dominado pela depressão – apontado pela Organização Mundial de Saúde como a grande peste que assola o século 21. E o que é a depressão? É a falta de perspectivas pelo futuro. É a ausência de propósitos, de sentido para se envolver (e se desenvolver) nos desafios diários. Quando nos deprimimos, a vida perde a graça, o colorido. A alma escapa. Viver um ano a mais, num cenário como esse, já é difícil. Soa como condenação e, aqueles que não suportam o peso dessa realidade, acabam pondo fim na própria existência. E o que seria viver 100 anos a mais? Neste mundo cinzento? Não, obrigado.

Seria válido viver até os mil anos em um mundo que tivesse valores mais intensos. Num mundo que não enxergue o ser humano como um corpo que se degenera por um infortúnio da natureza. Para viver dez anos a mais, que seja, o homem precisa aprender a importância do respeito. A si próprio, prioritariamente. Aos outros, à natureza, às sutilidades do ser. Os homens de mil homens só achariam que uma vida tão longeva vale a pena se entendessem a proposta simples da sabedoria universal que os rege – em vez de tentar tomar-lhe o posto de eternidade. É preciso lembrar que a vida eterna se retrata nos mitos e lendas como um poder ambíguo: oferece a chance de ampliar os horizontes do conhecimento, mas também surge como uma maldição de quem não tem o “descanso” final.

O desejo de tornar-se não-perecível talvez seja uma tentativa de reparação diante dos erros cometidos nos últimos séculos. Seriam eles reversíveis? Não creio em um passado reparável, e sim na força transformadora da responsabilidade assumida. Ou será que queremos ter mais tempo para consumir mais, degradar mais, explorar mais? É necessário nutrir um olhar pragmático para a questão: qual seria a Terra que abrigaria esses seres? O que comeriam, como matariam a sede? Qual a educação esses homens ofereceriam aos filhos? O que deixariam como legado, depois de uma existência tão extensa?

Evitar a morte nada mais é que um truque para disfarçar a pobreza interior que, infelizmente, fazemos questão de ignorar. Tudo seria diferente se, em vez de burlarmos o inevitável, tratássemos de validar a existência com atributos memoráveis. Uma vida se valida em gestos e convicções. Temos, ao longo da história, diversos personagens que precisaram de uns poucos 20 ou 30 anos para se firmarem como personalidades transformadoras. Seja pela coragem, pela ternura, pela solidariedade, ou por uma gama de outras heranças louváveis que transmitiram aos demais. Viver pouco ou viver muito são conceitos relativos, como também é o tempo.

É uma pena que a comunidade científica se preocupe tanto para entender cada vez mais do envelhecimento das células, mas não dê muito crédito para o amadurecimento da alma. A ciência pode esticar nossa vida até que ela se esgarce. Nós, no entanto, não sabemos o que fazer com ela.

nivas gallo