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Meia Um: A casa vermelha

 

Dentro de nós existe uma rua. Nela, nada lembra conjuntos habitacionais, planos urbanísticos ou qualquer coisa que os valha. Cada casa é de um jeito, moldada a partir das necessidades e condições de cada morador. Tem casa de fachada monumental, ostensiva. Tem taperinha, onde vive a espontaneidade. O sobrado alto é usado como torre de controle. Na casa grande, as portas estão sempre abertas para acolher os amigos. A rua é grande, sinuosa, tão populosa quanto é a nossa alma. Logo na entrada, temos uma casa vermelha. Resplandece, como os ipês no auge da seca. Essa é a casa do desejo.

Lá dentro, tudo parece imprescindível. Há sempre uma parede lisa, pedindo um quadro; um cômodo vazio, que exige mobília. A demanda é a lei nesse lar. Nem tudo que se deseja é necessário, é verdade. Mas a falta consome, mobiliza, inquieta. Até quando tudo parece preenchido, vem um estranho desejo de desejar. Quanto mais observamos a casa vermelha, mais ela cresce. Invade, empurra as demais, tomando-lhes o lugar para existir.

A sensação de falta é condição natural ao homem. Marcamos nossa progressão a partir daquilo que adquirimos, do que conseguimos suprir – seja na dimensão material, psíquica, social ou espiritual. O contentamento, entretanto, não chega. O desejo está associado a nossa capacidade de reflexão sobre a própria vida. Estabelecemos, com ele, parâmetros de uma suposta felicidade, que virá a partir de diversos fatores. Queremos ser bem-sucedidos, ou seja, atestar que conseguimos suprir faltas: relacionamentos, estabilidade profissional, conta bancária, saúde, autoimagem… uma lista composta por um sem-número de fatores.

A base de diversas filosofias orientais é uma máxima: a insaciedade é a porta para que adentremos o sofrimento. Uma vez dentro da casa vermelha, o exercício de percorrêla se transforma num martírio. Surge sempre um novo aspecto a ser explorado. Ela é sedutora demais para ser abandonada. O mundo nos diz que é nela que reside a felicidade. Demoramos, inclusive, a perceber o dano que ela nos gera, até que nos decidamos por abandoná-la. Mas, mesmo de fora, ela permanece convidativa, provocante. Impossível encará-la sem que afetos sejam mobilizados.

A falta de algo, ou a incapacidade circunstancial para adquiri-lo, desperta em nós um sentimento distorcido de impotência. Mas, afinal, a impotência é o antônimo de potência ou de prepotência? Seríamos mesmo capazes de conquistar tudo que está na casa dos desejos? Um dos desafios da existência é aprender a distinguir a necessidade da vontade e do desejo. Ou seja, separar aquilo que é verdadeiramente imprescindível para que prossigamos. E elencar as motivações que nos fazem buscar isto ou aquilo. Em geral, a aura de realização que cremos encontrar naquilo que buscamos não se encerra em si: queremos um bom emprego para suplementar um déficit relacional, cremos que um bom casamento repararia as feridas da família de origem, um corpo atraente para disfarçar a baixa autoestima… Ou seja, o desejo deturpa as necessidades reais – age nocivamente, como paliativos que levam a crer que a doença foi curada.

Em suma, verdadeiramente necessitamos de muito pouco para viver – isto é, quando comparado com tudo aquilo que supomos ser primordial, mas que, após cinco minutos de observação mais apurada, percebemos que pode esperar. Sim, na maioria das vezes, adiamos os desejos, como quem não quer ficar órfão deles. Tolice. Desejos são tão profusos como a nossa vontade de sobreviver.

A depressão, apontada como doença do século, pode ser classificada como uma patologia do desejo: da ausência dele, para ser mais preciso. Parece incongruente num primeiro olhar. A questão é que a ausência de desejo não é sinônimo de saciedade. A depressão vem como um vazio, uma dissociação do sentido existencial. Nesse quadro, o desejo se faz necessário como instrumento de cura. Mas não os desejos vazios, que nada traduziam da alma – afinal, é geralmente isso que desperta a doença.

A “boa falta” é aquela que nos leva a compreender que lidamos com um cronômetro em contagem regressiva, escondido na casa escura da incerteza – nunca sabemos quanto tempo nos resta, mas não conseguimos ignorar que ele continua gotejando a vida que se esvai. Para alguns, tal imagem nutre apenas uma angústia. Em outros, propicia o resultado: querem buscar um legado, uma afirmação do que foram enquanto indivíduos, únicos, exclusivos. Geralmente, esses últimos têm como resultado a dita felicidade. Não aquela lida nos parâmetros estatísticos, e sim a que se mede a partir da realização pessoal. Esse é o desejo bem-vindo, que gera bons frutos.

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Meia Um: Novos tempos, velhos dias

 

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 É estranha a surpresa que muitos demonstram ter ao se deparar com o fim do ano. Tentam crer que, num piscar de olhos, o tempo correu. Daí vêm Papai Noel, champanhe, flores no mar. Renovação de votos, demonstração dos carinhos contidos, planos a definir. Ah, os planos. Deles não há quem fuja. O período de encerramento inspira um quê de feitiço, de transformação instantânea da vida. Dezembro chega e se dá a largada na busca pelo balcão de recall da sorte. E quanto mais se envereda por esse caminho, maior a proximidade com o autoengano.

Acompanho de perto essa movimentação, no meu ofício de tarólogo e psicoterapeuta. Vejo pessoas em busca de soluções surpreendentes para questões que se arrastam anos a fio. Nessa peleja, sofrem exponencialmente os perfeccionistas e os ansiosos. Dedicados, vão querer quitar todos os débitos de vida adquiridos para começar o novo período zerado. Ou, preferencialmente, já no lucro. O bom futuro, feliz e livre do sofrimento, é a vontade de todos. No entanto, para garanti-lo, é necessário crescer o empenho no bem-viver do presente. Não é possível ignorar a realidade das coisas: o encadeamento dos fatos é o que nos conduz de u m lugar a outro.

A cada fim de ano, empilhamos uma série de procedimentos e posturas a reformar. Os mais sistemáticos fazem questão de encadeá-los em listas, devidamente esquecidas no fundo de alguma gaveta. Há também quem, nesse período, aproveite para revisitar os propósitos do ano passado. Muitos deles despertam um riso interno. Quanto foi caminhado até a concretização dos planos? Se algo não deu certo, de quem é a culpa? Os embargos foram resultados de ações de terceiros, de conspirações estelares ou de um baixo empenho diante do que foi almejado?

Nas mídias, estatísticas mostram que as histórias de superação dominam a preferência do público em geral nesse período. Todos querem conhecer alguém vindo de uma condição de vulnerabilidade, que, posteriormente, reverteu tal situação ao aproveitar a boa chance. Tais relatos são edificantes, é verdade. Podem inspirar ao embate, encorajar para a resolução dos problemas. Mas podem também servir a uma simplória compensação: “Eu sou feliz com a sua felicidade”. Ou, pior, despertar um sentimento de menor valia diante das próprias vulnerabilidades: “Quem me dera ter a mesma capacidade, assim resolveria minha vida”.

 Iludidos em nossos sonhos, à espera de soluções mágicas, adentramos na via régia da frustração. Ela tem, em sua marginal, a estrada da culpa. Mais cedo ou mais tarde, elas se encontrarão numa pista única. Viver bem, dentro das expectativas que planejamos, é resultado da responsabilidade. Quem não assume o posto de capitão da nau seguirá, mesmo que não queira, os desígnios alheios. O caminho de quem assume o papel de líder de si mesmo é estreito, desconfortável. Espelha o peso dos nossos atos, palavras e pensamentos – ou mesmo a ausência do fazer, do dizer e do refletir.

 Desejar é um impulso inerente ao humano. O problema está na escolha do que se quer: deve ser condizente com o meu tamanho, nem para maior, nem para menor. O exercício da decisão é, antes de qualquer coisa, fruto do autoconhecimento. Quem desconhece suas verdadeiras potencialidades e expectativas corre um grande risco de sonhar o sonho do outro, e de arcar com as consequências disso. Destituir-se da ilusão, e da culpabilidade, é um valor dos líderes natos. Daquelas pessoas que atraem a inveja pela “sorte” que têm.

 Nesse movimento, a passagem do ano soa como uma boa oportunidade de avaliação e não de prospecção.  A tal felicidade passa pela revisão de valores e pelo questionamento destes. Sem medo, pois há 50% de chance de que eles sejam corroborados sem prejuízo para o que é sonhado. Mas é preciso ser honesto consigo e com o que deseja. Afinal, os valores só existem no olho de quem olha – pergunte a um faminto se prefere um Monet a um banquete e entenderá a premissa.

 A tal felicidade é um estado efêmero, geralmente percebido quando se perde. Mas é com a atenção plena que cada um descobre o que pode aproximá-la de si. Nessa busca, esqueça de confiar na generosidade do tempo – ele é, na verdade, um deus impiedoso com quem o negligencia. E, infelizmente, tendemos à negligência. Para quem ainda me pede uma mandinga para o próximo dia 31, com o intuito de que todos os desejos se realizem a um passo, costumo prescrever: encare-se no espelho e diga “muito prazer”.

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Meia Um: Brasília e a sombra do Brasil

Produzi um artigo exclusivo para a 7ª edição da revista (Meia Um). O tema é a sombra do Brasil, que se projeta sobre a capital. ´

Ilustração: Francisco Bronze
Brasília e a sombra do Brasil
Hino autoproclama Brasília como a Capital da Esperança. Os rocks dos anos 80 a reduziram à capital da corrupção. A cidade é o centro das oportunidades para milhares de jovens que aqui aportam, atraídos pelas chances de altos salários e estabilidade dos empregos no setor público. Na cabeça de milhões, ela é um ente mágico, que projeta sobre os brasileiros uma série de expectativas e de frustrações. O poder que emana da capital é a base para todas as virtudes e os problemas de uma nação. No caso de Brasília, as notícias de falcatruas e descaso com o dinheiro público transformam-na em um gênio demoníaco. A cidade aparece como o reverso de um povo tão alegre, honesto e solidário.
A observação apurada que estabeleceu sobre a alma humana fez com que o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung percebesse a presença de um aspecto interessante no dinamismo da psique: uma sombra simbólica, formada por tudo que o ego, o centro da consciência, reprimiu ou nunca acolheu. São muitos os motivos para que um motivo se torne sombrio: a repressão, o recalque, o medo e a falta de energia para se tornar consciente.
Na prática, é como se tivéssemos uma casa ampla, com uma bonita fachada e bem mobiliada. No subsolo, longe do olhar dos visitantes, a casa esconde um grande porão. O local é perfeito para abrigar aqueles conteúdos não tão bonitos, nem tão louváveis ou pertinentes, como aqueles que gostamos de ostentar um andar acima. Mas não devemos confundir o porão com um depósito de coisas desagradáveis, somente. Lá também são guardados os elementos que são grandes demais para ocupar o piso térreo. Assim sendo, a sombra não se transforma em algo bom ou ruim, niilista. É o inconveniente, o avesso da alma: por mais esforço que se tenha para ignorá-lo, ele está presente.
A sombra acaba sendo enxergada a partir de projeções: os defeitos que nos compõem nos saltam aos olhos quando vistos como “defeitos dos outros”. Incomodam, perturbam e desencadeiam uma série de emoções inegáveis. Geram críticas ferrenhas, despertam o desejo de “correção”: tenta-se eliminar no outro aquilo que se quer eliminar em si próprio. Uma batalha em vão, que acaba por reforçar tais características.
Se pensarmos em cada nação, partido, religião etc. como um organismo único, podemos enxergar com nitidez uma sombra que se forma sob seus pés. Nela, encontram- se os preconceitos e dejetos negados pela coletividade daquele grupo, tudo aquilo que não é bom de ser reconhecido. Mas que, no fundo, também faz parte do histórico daquela gente. Instituições que combatem ferrenhamente a corrupção aninham ladinos em seu seio íntimo. Na necessidade de pregar a moral exacerbada, cometem-se crimes contra a vida e a dignidade humana. Combatem-se demônios exteriores para punir a própria vontade de exercer o mal. A insegurança sexual que se vive é combatida, a socos e pontapés, quando o que é bem resolvido com seu desejo se coloca à frente. Sombras falam pela intransigência.
Deus é brasileiro, mas parece que é o diabo quem habita a cabine de comando do País. Assumir-se brasiliense ainda é um exercício de coragem: seja para lidar com o fascínio daqueles que enxergam essa aura de poder pairando sobre a cidade, ou para lidar com o preconceito de quem a vê como um balcão de recrutamento de trambiqueiros engravatados.
Projetar os aspectos sombrios no outro é uma estratégia do ego para isolar a sombra fora do eu. Talvez por isso os brasileiros, de Norte a Sul, enviem para cá grossas remessas de seus porões a cada mandato: coronéis, palhaços, retrógrados, conservadores, aproveitadores, criminosos… Desembarcam aqui a mancheias, a cada mandato, para definir os rumos políticos. Comandam, assim, uma nação ignorante de sua própria sombra. Gente que tenta isolar, nos Três Poderes, os aspectos de si que desagradam e amedrontam. Brasília se transforma no cárcere para a sombra do Brasil – prisão luxuosa e farta, invejável para a maioria dos filhos da terra, que se intitulam “espertos” por natureza.
Brasília, enquanto capital, não tem a permissão de simplesmente ser mais uma cidade. Talvez pelo histórico recente, e crescente, de escândalos políticos aqui desencadeados. Talvez pela juventude da cidade, que ainda não a fez aflorar com uma identidade única, não institucional. Talvez por ambos, e por uma série de outros motivos que contaminam os porões da alma do brasileiro.

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