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Psique: A indiferença é a mais cruel das condenações

Crédito: Metrópoles/iStock


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Dois risquinhos azuis, que ocupam uma meia dúzia de pixels na tela do WhatsApp, são capazes de destroçar alguém frágil. Olhares que não se cruzam no elevador da repartição, e a sensação incômoda da invisibilidade que sucede o ocorrido. Alguém segura a porta para que o vizinho avance e é como se ela se mantivesse aberta por algum dispositivo artificial. E, por um instante, uma pergunta vem à cabeça de quem vivencia tais situações: será que ainda existo?

Se num primeiro momento soa esdrúxula, a questão ganha muita pertinência quando pensamos um pouco sobre ela. Parece cena de filme de gente que já morreu e ainda não sabe. Ou seja, que não pode mais ser percebido, considerado, valorado, qualificado.

Na indiferença, não é somente “matar” o outro na relação, o que asseguraria ao “morto” quem foi, a história que viveu. É a destituição dele do direito pleno de existir – seja como alguém adorável ou detestável. É incorpora-lo na massa estéril de mundo, excluí-lo do rol da humanidade. A mais terrível e cruel das formas de tratamento.

Anular o futuro
É claro que, quantitativamente, somos muito mais ignorados do que percebidos na trajetória da vida. Não somos tão magnéticos assim. Também não se trata de acreditar que conseguiremos tratar todos com paridade, destinando-lhes o carinho, o apreço e a atenção devidos. A ração para alimentar ilusões românticas está cada vez mais cara.

A indiferença à qual me refiro é aquela realizada, deliberada, que contém um grau de perversão em seu núcleo. Escolher ignorar o outro é anular suas potências e, assim, retirar-lhe qualquer possibilidade de futuro – seja ela qual for.

A neurociência atestou a gravidade desse comportamento. Bebês tratados com indiferença terão prejuízos no desenvolvimento, se comparados a crianças acompanhadas por cuidadores que as olham nos olhos. O dano é tão profundo que chega a alterar estruturas cerebrais referentes ao desenvolvimento intelectual e à capacidade de assimilar emoções.

Em adultos, o que vemos são fendas profundas na capacidade de autopercepção e também da qualificação dos recursos internos que dispomos para lidar com a vida. Quem é tratado com indiferença tem uma baixa crença na capacidade de vencer obstáculos e de estabelecer relações saudáveis. Como reação, podem se tornar subservientes, violentos ou perseguir uma falsa autossuficiência – comportamentos que podem ser a chave de inúmeros quadros patológicos.

Silêncio matador
Temos uma dificuldade de lidar com o silêncio. Calar-se diante do outro é perturbador por natureza. Nunca nos acostumamos com esse vazio entre os corpos, que rapidamente será preenchido com sussurros, falas e gritos vindos das nossas vozes interiores.

No ambiente virtual, feito de corpos afetivamente precários, a indiferença se torna um gesto corriqueiro, legitimado e instrumentalizado pelos próprios meios. Excluir, deletar, banir, bloquear são simples botões. O que provocam, não. Matamos pessoas quando as condenamos à inacessibilidade. Muitas vezes, por vingancinhas bobas.

E, enquanto nos distanciamos das possibilidades de interação, também nos colocamos no isolamento. Distanciamo-nos do mundo plural e divergente, quando nos permitimos à partilha somente com aqueles que julgamos importantes – quem faz eco para nossas vaidades, realça nossa identidade ou oferece referências do que validamos como sucesso.

Quando o silêncio vem dessa morte metafórica da indiferença, a angústia é avassaladora. Não se encontram motivos, nem se sabe de fato se a morte já se consolidou. É a imagem da porta entreaberta: não sabemos o que poderá sair dali, quando isso ocorrerá e quais consequências terão.

Os mais nobres valores da dignidade não são experimentados quando somos bem tratados, mas quando sabemos reconhecer um semelhante no outro, apesar dos contrastes que apresenta diante daquilo que somos. Diferenciar-lhe e reconhece-lo é trazer, para si, a grandeza de ser humano.

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