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Psique: Amar não deveria ser um problema. Mas esse afeto é tão complexo…

crédito: Metrópoles/iStock

Esta é a centésima edição de Psique. E, para comemorar, resolvi falar de amor. Dele derivam os grandes dilemas humanos e também partem as grandes soluções — aquilo capaz de transformar nossa realidade.

Amar não deveria ser um problema, mas esse é um afeto tão complexo, e tão subjetivo, que acabamos por confundi-lo com diversas outras coisas. E dessa confusão derivam os grandes sofrimentos humanos. Lido com eles diariamente em meu consultório.

Pessoas confundem amor com possessividade. Com a anulação em nome do outro. Com a indisposição para enfrentar uma nova realidade. Com o comodismo. Com a necessidade de reviver as marcas do passado. Com o medo de magoar. Entre outros incontáveis equívocos.

Tudo isso ocorre porque nem sempre conhecemos de fato o amor. Somente imaginamos, tomando por base a referência de sua antítese: o desamor. Chamamos de amor o contrário daquilo que queremos evitar: o abandono, a incompreensão, a insegurança, a incompletude.

Fazemos isso sem compreender que, de fato, tudo que tememos já está em nós, faz parte da nossa condição humana.

Tudo isso é atenuado de alguma forma, interpretamos como uma atitude amorosa. Nem sempre é. São incontáveis as razões que levam duas ou mais pessoas a se aproximarem. Vão da confluência de propósitos aos interesses mais escusos.

O amor real se define pelo compromisso desinteressado e generoso, o que é profundo e difícil de ser exercido. Nas palavras de Jung:

“O amor custa caro e nunca deveríamos tentar torná-lo barato. Nossas más qualidades, nosso egoísmo, nossa covardia, nossa esperteza mundana, nossa ambição, tudo isso quer persuadir-nos a não levar a sério o amor. Mas o amor só nos recompensará se o levarmos a sério”.

Quem consegue chegar a esse lugar, mesmo que por um instante e uma vez na vida, saberá diferenciar com mais tranquilidade a natureza das relações. Saberá que algo pode valer a pena, mas não necessariamente terá de chamar de amor. Ganha-se a lealdade consigo mesmo.

 

Da mesma forma, aprende-se que amor é para sempre. Ele se transforma, converte-se numa outra qualidade de amor – mas nunca deixará de sê-lo como é. Quando é verdadeiro, o amor é gregário, e não competitivo; é compreensivo, e não inseguro.

Amar é uma forma de contemplarmos o que há de mais profundo em nossa alma. Coisas que vão além das heranças familiares, ou daquilo que o mundo julga como importante. Quando amamos, acessamos o sagrado em nós.

Por esse motivo, envolvemos os seres que amamos com tanta importância. A eles, buscamos oferecer o melhor lugar para que se sentem. Acolhemos da melhor forma, para que ali permaneçam. Sabemos que, por meio deles, podemos experimentar, mesmo que por instantes, a impressão de sermos inteiros.

Babel: Quando amar é demais

Concedi uma entrevista sobre o amor compulsivo ou patológico à Revista Babel, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Eis o texto.  

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Duas mulheres falam sobre sua dependência em relacionamentos destrutivos

Por Beatriz Amendola

“Eu atravessava a cidade para encontrá-lo. A gente transava no carro, para logo depois ele me largar em alguma estação do metrô e ir embora. Eu ia embora chorando todas as vezes, querendo que ele conversasse comigo. Ficava no carro enrolando, esperando que ele me quisesse por mais tempo. E ele continuava me dizendo que tinha que ir, que eu devia ir. Isso me destruía completamente. Não me sentia nada além de um corpo”. O relato pode parecer inspirado em um romance da ficção, mas o faz-de-conta não é tão inventado assim quando se trata de relacionamentos amorosos que trilharam um caminho bem diferente do tão desejado “felizes para sempre“ e passaram a se sustentar na dependência emocional.

Luciana*, a protagonista do relato acima, é uma entre tantas pessoas no mundo que viram seus namoros e casamentos – aparentemente perfeitos – entrarem numa espiral permeada por insatisfação, indiferença e até humilhação, mas que não desistiram por se verem demasiadamente ligadas ao parceiro. São histórias que contradizem ao máximo o famoso verso de Camões, que chegou a dizer que o amor “é ferida que dói e não se sente“. O amor dói sim – mas quando ele vira um inferno essa dor  passível de ser ignorada.

Desiludida após um relacionamento fracassado, Luciana não resistiu ao charme do colega de trabalho comprometido com outra mulher. “Pela primeira vez, decidi que ficaria com alguém que namorava, sem sequer me importar com sentimentos alheios. Afinal parecia que ninguém se importava com os meus. Então, fiquei com o João*, mesmo ele namorando“. Mas sua intenção de apenas aproveitar o momento foi além disso – e ela caiu nos encantos do rapaz infiel que lhe dispensava o afeto e carinho pelos quais ela tanto esperava.

“Nunca na minha vida tive aquela atenção, sequer dos meus pais… e estava lá alguém que parecia me dar tudo que nunca tive… como deixar aquilo? Parecia tão injusto comigo. Quantas mulheres não se envolviam com homens casados e tinham relações de anos? Era o que eu pensava naquela época. Mas Deus foi injusto comigo, me fazendo ficar com alguém que meu deu tudo e que eu teria que abandonar. E não, eu não abandonaria a ‘melhor coisa que me aconteceu’. Eu estava completamente iludida”, disse Luciana.

A ilusão pelo “bom-moço“, essa figura tão mística que está presente na cabeça das mulheres desde cedo, não fez dela sua única vítima. Apaixonada por um amigo de seus primos, Maria* viu nele o homem de seus sonhos. “Aparentemente parecia perfeito: bonito, inteligente, carismático, dentista com consultório próprio, solteiro”. O namoro veio rápido, um mês depois.

Os problemas, porém, começaram a aparecer quando ele passou a alimentar sua insegurança com comparações entre ela e sua ex-namorada e isso a levou a adotar atitudes apenas para a satisfação dele. “Ele dizia que ela era incrível na cama, tinha experiências bissexuais… isso já despertou uma insegurança enorme em mim e comecei a me sujeitar a várias práticas sexuais para agradá-lo, como sexo anal frequente e até asfixia”, conta.

O parceiro ainda passou a mostrar uma faceta que se revelou dominadora e agressiva, o que forçou Maria a entrar em um ciclo de tensão constante: “Ele tinha acessos de fúria e eu não podia discordar dele em nada, ficava oprimida. Qualquer besteira era motivo para ele gritar comigo, dizer que queria terminar, que não gostava de mulher enchendo o saco e que tinha uma monte de outras mulheres atrás dele. Bem cruel, eu diria. De um estado amoroso se transformava num monstro agressivo. Nessas situações eu me humilhava, pedia desculpas, chorava muito e depois ele sempre se arrependia, pedia desculpas. Era emocionalmente muito desgastante”.

Marcados por agressividade, descaso e indiferença, os relacionamentos das duas mulheres se encaixam na categoria de relacionamentos destrutivos, que possuem um conceito mais amplo do que a violência física a qual costumam ser associados frequentemente. Além dos possíveis danos físicos, esse tipo de envolvimento pode causar prejuízos morais e psíquicos que variam de pessoa para pessoa, uma vez que a dor e a humilhação são sentimentos extremamente subjetivos. “Uma palavra, ou até mesmo uma negligência, pode levar a um comprometimento semelhante a uma agressão física, a depender da fragilidade de quem a recebe”, explica o psicoterapeuta e analista João Rafael Torres

No caso de Maria e Luciana, as relações, que duraram mais de um ano,  deixaram marcas profundas na vida e na alma de cada uma. Tomada pela insegurança e pelo medo, Maria parou de comer. Perdeu quase dez quilos. Obcecada e com depressão, começou a tomar tranquilizantes e, pelas faltas frequentes no trabalho, acabou demitida. Reuniu forças e pediu um tempo para o namorado. Pouco depois, entretanto, os dois combinaram de passar um ano novo juntos. E ele desmarcou de última hora. “Surtei“, diz ela, que reagiu se entregando ao vício em álcool e drogas nos meses seguintes.

Luciana soube do término do relacionamento pela namorada de João* – com quem, aquela altura, ele havia tido um filho e exibia felicidade nas redes sociais. A “oficial“ lhe enviou um email, onde contava que sabia do caso e colocava um ponto final na história. Do amante, porém, não ouviu uma palavra sobre isso, ainda que ele ligasse para conversar periodicamente. Mesmo sem se encontrar com ele, Luciana esperou dois anos que ele largasse a família para viver com ela – o que nunca aconteceu.

As consequências nefastas para a segurança e a própria imagem, ainda nos estágios iniciais dos relacionamentos, não foi suficiente para afastar Luciana e Maria dos – ao menos no sentido mais literal da palavra – companheiros. O misto de insegurança e traumas passados tornou o processo de desvinculação mais complicado do que poderia ser. Iludida pela ideia de ter encontrado “o homem de sua vida“, Maria ainda foi afligida pela ideia de não conseguir um casamento depois.  “Estava realmente apaixonada e achava que ele era o meu príncipe encantado. Como eu já estava com mais de 30 anos , na minha cabeça achei que fosse minha última chance de casar, pois já sofria muita pressão social por parte de amigos e família.”

Já Luciana encontrou em João o reflexo da própria história de sua família. “[Ele era] o homem inacessível, como meu pai. Sempre tendo mais de uma mulher. E hoje, percebo que, se ele abandonasse a família, seria a prova maior de amor. Meu pai fez isso, abandonou a família dele pra ficar com minha mãe. Eu ficava porque era tão bom ter atenção… e era algo que sempre lutei muito pra ter na minha família, e estava alguém lá, carente como eu, que no começo supria isso, e cada vez que eu ia embora, ele vinha e me dava toda aquela atenção, todo aquele carinho que eu não tive”.

Vindos do presente ou do passado mais distante, os medos e inseguranças exacerbados contribuem para que a situação, mesmo que infeliz e com possíveis violências psicológicas, se cristalize, de acordo com a psicanalista Belinda Mandelbaum, coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Para ela, a manutenção desse quadro está associada a padrões que vêm desde a infância e se repetem continuamente.

João Rafael Torres corrobora essa análise, afirmando que o histórico familiar, particularmente, é imprescindível para construir a baixa autoestima que levará uma pessoa a se atrelar a um relacionamento destrutivo. “É nas relações parentais que aprendemos o “modelo” de relação a seguir. Por exemplo: a filha de uma mulher que tenha se submetido ao masculino tenderá a buscar homens que repitam o mesmo padrão de comportamento; ou poderão caminhar ao outro extremo, assumindo o papel da “mulher forte”, que se impõe sobre o masculino – ou seja, buscará homens vulneráveis, e a dinâmica abusiva será mantida“.

A autoestima, essa percepção que cada um tem de suas características e de seus valores, é um conceito chave para se compreender a dependência em relacionamentos ruins. Com uma dificuldade em reconhecer suas próprias virtudes, a pessoa passa a buscá-las no parceiro, o que fará com que a relação seja supervalorizada. Soma-se a isso o fato de a insistência do companheiro ser vista por ela como um sinal de valorização, a grande realização de quem sofre com problemas de autoestima. “Obviamente, é uma gratificação torpe, pois acrescenta poucos valores a cada um dos envolvidos“, completa João Rafael.

Um namoro ou casamento de caráter destrutivo pode fazer  muito para agravar o quadro, pois deixa a pessoa ainda mais vulnerável a suas inseguranças, de acordo com Belinda. “Há relatos de pessoas que sofrem essa violência sistemática e acabam incorporando o discurso e se sentindo sem valor. O companheiro pode fazer muito no sentido de melhorar a auto estima ou prejudicar”.

O adicional da violência, porém, não é um fator que só aparece em casos particulares. Belinda explica que ela é um componente que está nos fundos de qualquer relacionamento, uma vez que o amor e a atração também convivem com sentimentos de raiva, ódio e frustração. “A diferença de como a situação se desenvolve vai depender da dinâmica do casal. Tudo depende de como o casal lida com esses sentimentos. Se eles conversam, se há uma expectativa de que eles devam sempre concordar em tudo, se um precisa culpabilizar o outro”, explica.

A relação de Luciana com  João acabou tomando esse rumo quando as brigas se tornaram frequentes e ele parou de atender suas ligações para evitar discussões. Com a pouca conversa e os contatos esparsos, ela confessou que sua autoestima foi abaixo: “eu ficava louca e ligava, ligava, ligava… umas 30 vezes. Me sentia impotente e não podia ligar pra casa dele, pois sabia que com isso ele me abandonaria de vez. Então chorava e, após um tempo, entrei em depressão. Me sentia humilhada, um corpo, um símbolo sexual, uma vagabunda, uma destruidora de lares, uma mulher sem moral. Era uma briga constante comigo, me senti mais baixa do que nunca”.

O relacionamento atribulado com o ex egocêntrico – que chegou a decidir o futuro do namoro em um jogo de paciência – também detonou o bem estar de Maria consigo mesma. “Estava surtada, com as ideias embaralhadas, com um desespero profundo. Achei que fosse morrer de tanta dor, não via luz no fim do túnel  Era como se ele fosse o último homem na face da terra e eu fosse ficar sozinha, me sentindo um lixo, para sempre”.

Após as experiências, tanto ela quanto Luciana ainda se consideram em recuperação, ainda que haja uma diferença de seis anos entre o fim de seus namoros. Ambas encontraram conforto nas reuniões do grupo Mulheres Que Amam Demais Anônimas (MADA), onde as mulheres que já passaram por situações de relacionamento destrutivo se ajudam compartilhando suas histórias. “Tenho tido grandes progressos em relação às minhas atitudes perante os relacionamentos e tenho certeza que jamais me sujeitarei a uma situação emocional  como essa novamente. No início, é difícil modificar os padrões de pensamentos e atitudes, mas depois de um tempo mudamos realmente”, conta Maria, que já frequenta o grupo há sete anos.

Não há uma fórmula única para se recuperar das marcas deixadas por relacionamentos destrutivos. Segundo João Rafael, porém, o autoconhecimento e o fortalecimento dos próprios valores é uma das chaves para evitar a mesma armadilha no futuro. “Potenciais abusadores estarão sempre disponíveis para encontrar novas vítimas. Mas só será vulnerável a essa investida quem não exerce o respeito por si mesmo”.


*Os nomes foram trocados para preservar a identidade das entrevistadas

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Outras Ondas – Receita contra dor de amar

Amor se mata à míngua. Não dê comida, vitaminas, água limpa para beber. Não acredite, não ligue, não procure. Não dê sinal. Não faça nada, sequer pense em quem ama, para evitar evocações pelo pensamento. Não escute as músicas, não revisite os lugares, não trate dos assuntos que compartilhavam. Esqueça o perfume, o cheiro do corpo, os raios da menina dos olhos, o tom da voz, a graça do sorriso, a firmeza das mãos no caminhar pela praça.

Aos poucos, vai ver que o fervilhar interno do contentamento das boas lembranças será consumido, meio que às dentadas. O sal amargo do choro preso na garganta surge como efeito colateral. Incomoda nos primeiros dias, como o arranhar ardido de uma faringite. Mas é só engolir incessantemente e logo cessará. Só torça para não descer para o peito, para não comprometer as artérias. Nem para os rins – lá as lágrimas se cristalizam. Pode ficar sério. O estômago pode ajudar a digerir, mas nem todo mundo tem estômago para isso.

Descontamine-se do amor pela assepsia da negação. Assim você se liberta. Não vai sofrer, não vai chorar, não vai desejar, não vai esperar, nem sentir saudade. Não ansiará o reencontro, o calor de mais um beijo, a delícia das peles nuas que se entrelaçam em plena entrega. Defenda-se desses cúmplices da infelicidade que, um dia, certamente surpreenderá.

Até lá, viva com o que a vida der. Ela costuma ser generosa em suas esmolas. Duas ou três cores para escolher, dois ou três sabores para desfrutar, dois ou três caminhos para decidir. Faça o possível para ver que isso já é vida o suficiente. Creia nos riscos da vastidão.

Para isso, é necessário que se esqueça o bom daquilo que viveu ao conviver. Silencie as vozes por ele acordadas, as sensações experimentadas, as emoções evocadas em toda a sua intensidade. E, com isso, despeça-se também da alma que o amor fez crescer em si.

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Eu já conheço essa dor, não tem nada de inédito. De onde veio, como funciona, o que limita, em que posição dói mais. Sei que dificilmente respeitará um dia, uma hora ou um lugar para aparecer. Nisso ela pode surpreender: parecerá sempre mais aguda em seus sintomas, nos levando a crer que, dessa vez, é o caso é mais grave.

Tentarei aliviá-la com movimento da língua, pela fala e pelo beijo, mesmo sabendo que esse esforço será em vão essa dor só se despede ao se esvaziar. E, até lá, goteja um mel do bom que não voltará, junto a um amargo seco, o pior dos vermutes: a dor do querer e não poder ter. Tudo vem em pingos lentos, como os dos remédios fortes quando correm para as veias quando somos acometidos pelos piores males. Sê para não vazar os canais, para não extravasar as mágoas antigas. Machuque, mas não mutile.

Dor de amor é uma coisa muito séria. Já duvidei de seu poder letal, e quase perdi a aposta. Hoje, respeito-a como respeito a morte. E não é por medo: é por tudo que ela pode vir a fazer de bom e de ruim. Essas linhas são preenchidas com o resultado dela – assim como ela ajuda a me preencher a alma. Tenho de ser e sou grato à dor do amor – como também o sou a quem a ela presta homenagens, em seus versos, melodias e imagens. Ela tem o poder de fazer da gente ainda mais gente, ela é quem nos apresenta a verdade do que somos. 

nivas gallo