Produzi um artigo exclusivo para a 7ª edição da revista (Meia Um). O tema é a sombra do Brasil, que se projeta sobre a capital. ´
Ilustração: Francisco Bronze
Brasília e a sombra do Brasil
Hino autoproclama Brasília como a Capital da Esperança. Os rocks dos anos 80 a reduziram à capital da corrupção. A cidade é o centro das oportunidades para milhares de jovens que aqui aportam, atraídos pelas chances de altos salários e estabilidade dos empregos no setor público. Na cabeça de milhões, ela é um ente mágico, que projeta sobre os brasileiros uma série de expectativas e de frustrações. O poder que emana da capital é a base para todas as virtudes e os problemas de uma nação. No caso de Brasília, as notícias de falcatruas e descaso com o dinheiro público transformam-na em um gênio demoníaco. A cidade aparece como o reverso de um povo tão alegre, honesto e solidário.
A observação apurada que estabeleceu sobre a alma humana fez com que o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung percebesse a presença de um aspecto interessante no dinamismo da psique: uma sombra simbólica, formada por tudo que o ego, o centro da consciência, reprimiu ou nunca acolheu. São muitos os motivos para que um motivo se torne sombrio: a repressão, o recalque, o medo e a falta de energia para se tornar consciente.
Na prática, é como se tivéssemos uma casa ampla, com uma bonita fachada e bem mobiliada. No subsolo, longe do olhar dos visitantes, a casa esconde um grande porão. O local é perfeito para abrigar aqueles conteúdos não tão bonitos, nem tão louváveis ou pertinentes, como aqueles que gostamos de ostentar um andar acima. Mas não devemos confundir o porão com um depósito de coisas desagradáveis, somente. Lá também são guardados os elementos que são grandes demais para ocupar o piso térreo. Assim sendo, a sombra não se transforma em algo bom ou ruim, niilista. É o inconveniente, o avesso da alma: por mais esforço que se tenha para ignorá-lo, ele está presente.
A sombra acaba sendo enxergada a partir de projeções: os defeitos que nos compõem nos saltam aos olhos quando vistos como “defeitos dos outros”. Incomodam, perturbam e desencadeiam uma série de emoções inegáveis. Geram críticas ferrenhas, despertam o desejo de “correção”: tenta-se eliminar no outro aquilo que se quer eliminar em si próprio. Uma batalha em vão, que acaba por reforçar tais características.
Se pensarmos em cada nação, partido, religião etc. como um organismo único, podemos enxergar com nitidez uma sombra que se forma sob seus pés. Nela, encontram- se os preconceitos e dejetos negados pela coletividade daquele grupo, tudo aquilo que não é bom de ser reconhecido. Mas que, no fundo, também faz parte do histórico daquela gente. Instituições que combatem ferrenhamente a corrupção aninham ladinos em seu seio íntimo. Na necessidade de pregar a moral exacerbada, cometem-se crimes contra a vida e a dignidade humana. Combatem-se demônios exteriores para punir a própria vontade de exercer o mal. A insegurança sexual que se vive é combatida, a socos e pontapés, quando o que é bem resolvido com seu desejo se coloca à frente. Sombras falam pela intransigência.
Deus é brasileiro, mas parece que é o diabo quem habita a cabine de comando do País. Assumir-se brasiliense ainda é um exercício de coragem: seja para lidar com o fascínio daqueles que enxergam essa aura de poder pairando sobre a cidade, ou para lidar com o preconceito de quem a vê como um balcão de recrutamento de trambiqueiros engravatados.
Projetar os aspectos sombrios no outro é uma estratégia do ego para isolar a sombra fora do eu. Talvez por isso os brasileiros, de Norte a Sul, enviem para cá grossas remessas de seus porões a cada mandato: coronéis, palhaços, retrógrados, conservadores, aproveitadores, criminosos… Desembarcam aqui a mancheias, a cada mandato, para definir os rumos políticos. Comandam, assim, uma nação ignorante de sua própria sombra. Gente que tenta isolar, nos Três Poderes, os aspectos de si que desagradam e amedrontam. Brasília se transforma no cárcere para a sombra do Brasil – prisão luxuosa e farta, invejável para a maioria dos filhos da terra, que se intitulam “espertos” por natureza.
Brasília, enquanto capital, não tem a permissão de simplesmente ser mais uma cidade. Talvez pelo histórico recente, e crescente, de escândalos políticos aqui desencadeados. Talvez pela juventude da cidade, que ainda não a fez aflorar com uma identidade única, não institucional. Talvez por ambos, e por uma série de outros motivos que contaminam os porões da alma do brasileiro.
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