Um grande paradoxo se estende para a existência humana: encontramos nas relações estabelecidas com o outro a melhor forma de nos reconhecermos como únicos e de sermos fiéis ao que somos. No contato que estabelecemos com o mundo exterior, percebemos as virtudes e limitações – uma alquimia de fórmula exclusiva, que rege cada ser.
No entanto, em grande parte das situações, estabelecemos relações fundamentadas numa verdade limitada: fixamo-nos em papeis preestabelecidos, nos quais nos sentimos seguros, por inspirarem uma maior aceitação do outro. Em nome da possibilidade do vínculo, abrimos mão de uma pluralidade. Colocamo-nos disponíveis a viver personagens e convenções, sem perceber que eles – mais cedo ou mais tarde – se transformarão na nossa maior condenação: tornamo-nos escravos de uma parte de nós mesmos.
Em geral, esses papeis têm origem em uma verdade: de fato, eles constituem uma parte nossa. Costumam partir de virtudes, que oferecem bons resultados, orientam boas decisões. Inspiram a sensação de sermos reconhecidos e desejados. E é aí que o perigo se esconde. A insuficiência das relações fugidias, em profusão no mundo contemporâneo, desperta um afã na possibilidade de um vínculo mais aprofundado. Topamos hipertrofiar um personagem bem quisto para crescer em aceitação no grupo: ele é colocado para trabalhar com prontidão, disponibilidade e eficácia. Fazemos o necessário para tornamo-nos inesquecíveis, indispensáveis – não pelo que somos de fato, mas pelo que podemos oferecer ao outro. E, assim, geramos expectativas e demandas na sociedade, na família e entre amigos.
Aos poucos, o artifício ganha força e passa a dominar as relações. Dificulta e chega a impedir vínculos de outra natureza. Mesmo percebendo o mal que isso nos gera, sentimos uma grande dificuldade de romper com a dinâmica estabelecida: tememos a possibilidade de perder o alimento afetivo, a atenção arrebatada do outro. Ficamos submissos, escravizados. É um vício.
Manter a atenção sobre esse conflito é altamente angustiante. Muitas vezes, torna-se mais ameno dissimular a questão sob o argumento das convicções. “Sou assim, é a minha natureza.” Minimizamos o prejuízo com argumentos infundados, como se devêssemos satisfação ao outro por nossas escolhas. Sim, até nessa atitude a finalidade está projetada do lado de fora, distante da alma.
Sendo esse vínculo alicerçado em expectativas, mais cedo ou mais tarde o indivíduo se sentirá no direito de cobrar pelos “serviços prestados”. E, na grande maioria dos casos, o interlocutor não se sentirá devedor. De fato, não o é: foi a sua pronta disponibilidade que levou o outro a usar seus talentos de forma abusiva. A relação traduz a sua natureza objetal, onde o sujeito não é reconhecido pelo que é e sim pelo que pode propiciar. A falta de recíproca leva à frustração, à sensação de tempo e energia perdidos. É grande o risco de que os vínculos anteriores sejam substituídos por outros, ainda mais perniciosos. Ancoram mágoa, ressentimento, rancor e outras toxinas emocionais. Muitos deprimem ao perceberem o erro cometido: em nome do outro, perdeu-se de si.
Ao construirmos numa imagem uma pedra de porto, mantemos distância da maior das virtudes: a capacidade de transformação. A vida é movimento. Estancar-se é limitar em si a capacidade de reinvenção, de enfrentamento às adversidades – ou seja, de crescer na diversidade e na adversidade. “Viver é muito perigoso (…) O mais difícil não um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra”, Guimarães Rosa.