Self

Outras Ondas – A boa loucura

“Não se curem além da conta. Gente curada demais é gente chata. Todo mundo tem um pouco de loucura. Vou lhes fazer um pedido: vivam a imaginação, pois ela é a nossa realidade mais profunda. Felizmente, nunca convivi com pessoas muito ajuizadas”. As palavras da psiquiatra Nise da Silveira têm repercutido bastante nas redes sociais. Em tom de alerta e alento, validam a admissão das nossas loucuras corriqueiras, abafam a vontade de ser normal em excesso.

Uma coisa tem me despertado a atenção no exercício clínico: a quantidade de diagnósticos prefabricados, que validam a existência de pessoas que me procuram. Sob a justificativa de desmistificação da psiquiatria, se espalham nas prateleiras das livrarias títulos que elucidam os transtornos psíquicos – daqueles clássicos, como a histeria, aos vanguardistas, como dos transtornos disso ou daquilo. Num mundo onde todos buscam justificativas para o sofrimento e a frustração (naturais à trajetória, vale ressaltar), logo esses livros se transformam em best sellers. E seus autores, em celebridades.

Informação e conhecimento não ocupam espaço, é fato, mas interferem no que somos. Quem já teve aulas de psicopatologia sabe o quão desesperador pode ser reconhecer em si diversos sintomas das mais aterrorizantes formas de loucura. Potencialmente, temos todas elas guardadas. Mas em poucos (estima-se que em aproximadamente uma a cada dez pessoas), o sintoma se deflagrará verdadeiramente como uma psicose. Resumindo: tenhamos calma, tenhamos prudência.

Minha escolha pela escola junguiana deriva, principalmente, de uma crença fundamentada pelo psiquiatra suíço: não devemos nos ater às doenças, e sim aos doentes. Até porque isso seria injusto demais com o ser humano: coisificá-lo como o hospedeiro para um mal alienígena e independente, de forma simplista. Jung nos ensina a olhar através do sintoma, para saber o que ele representa, como chegou, quem o trouxe e, principalmente, para que ele está ali. A doença, em si, não é um problema e, como tal, seria um erro querer bani-la sumariamente. Ela é a estratégia de crescimento, encontrada por alguma instância psíquica. Uma vez compreendido o seu sentido, o sintoma cessa.

Nise da Silveira percebeu isso muito bem, ao despontar a reforma psiquiátrica brasileira. Percebeu que não adiantava combater a esquizofrenia de seus internos, mas sim dar voz às vozes que atormentavam seus doentes. Fez isso a partir da arte. E de pessoas tidas como incapazes, conseguiu extrair um rico conjunto de telas e esculturas, que hoje compõem o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente. As obras não traduzem a dor de uma alma atormentada, e sim os tormentos da alma de todos nós. Mostram que, no fundo, somos todos muito semelhantes: uns, no entanto, têm exacerbadas a fragilidade, a imperfeição e a sensibilidade que compõem o ser humano.

Concordo com Nise e me sobe um arrepio quando me vejo diante daqueles que caçam soluções imediatas para suas loucuras. Muitas vezes, é a partir delas que temos a fresta para perceber o potencial de humanidade que mais traduz tal indivíduo. Quando perdemos a “insanidade cotidiana”, somos recompensados com a impessoalidade, os gostos robóticos e padronizados – belo presente, não? Os gregos encontraram em Dioniso a personificação divina da insanidade. Ele é o deus do êxtase e da mania, ou seja, dos desejos imperativos que a mente instala sobre o homem.  Mas que também traduz a vontade dos outros deuses, a partir da inspiração. Nas palavras de Platão, em Fredo: “As maiores bênçãos nos chegam através da loucura, quando é enviada como uma dádiva dos deuses”.

John A. Stanford completa, dizendo que o efeito de Dioniso (ou seja, da loucura) sobre os homens não era o de produzir efeitos extravagantes ou a destrutividade, e sim a verdade: “uma verdade tão profunda que não pode ser alcançada pelo intelecto, mas que pode ser conhecida pelo espírito vivo”, distante de repressões ou de oposições entre o certo e o errado, permitindo ao  espírito humano a liberdade “para ser seu mais verdadeiro eu” (em Destino, amor e êxtase – Ed. Paulus).

Em vez de combater a loucura, ou de tentar limita-la a rótulos psicopatológicos, podemos tomar-lhe proveito. O próprio Jung conduziu grande parte dos seus escritos após presenciar, ou vivenciar, experiências dignas de diagnóstico. Mas soube dar uma borda ao conteúdo vindo do inconsciente, transformando-o em subsídio para a criação de uma teoria que revolucionou a psicologia. O problema não é experimentar a loucura, é não saber o que fazer com ela.

 

nivas gallo