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Psique: O autoengano é o mecanismo de defesa que nos coloca vulneráveis

Crédito: Metrópoles/iStock

Micro Photo of a Fly

Foi um dia desses que me bateu uma onda estranha. Por um momento, achei que tinha crescido subitamente. Estava no supermercado e me dei conta disso ao pegar uma embalagem de sabão, pareceu menor que o de sempre. Olhei para o carrinho e vi que a embalagem do biscoito também cabia mais confortavelmente em minha mão.

Eu não estava maior, só tinha sido levemente enganado pelos fabricantes. Vinte gramas a menos não fariam diferença. Aquele engano aparentemente inofensivo, bem semelhante aos que cometemos diariamente nas mentiras brandas ou nas omissões em nome de um bem-estar. Seja na relação com o outro, ou comigo mesmo.

De fato, a realidade é conduzida pelas nossas prioridades. O tempo inteiro. Buscamos encontrar uma maneira que julgamos mais adequada para interpretar nosso mundo. E isso sempre acaba por tapear as demais perspectivas daquela determinada situação.

Olhos de mosca
Não falo aqui do engano por maledicência, daquele que fazemos com um intuito claro de lesar ninguém. Refiro-me especialmente ao autoengano. Uma espécie de estratégia de sobrevivência, desenvolvida pelo ego, para manter-se minimamente confortável no comando da consciência. Para ele, seria uma tormenta se tivéssemos múltiplas impressões simultâneas da mesma questão.

Você sabe como as moscas enxergam? Seus grandes olhos têm, cada um, cerca de 4 mil facetas, que percebem tudo que está em redor. Veem até mesmo o que está atrás de si. Se, metaforicamente, tivéssemos uma capacidade semelhante de acessar o mundo que nos cerca, seria uma perturbação grande demais para ser tolerada.

O ego tende a buscar uma crença para aportar. Mesmo que ela se mostre limitada demais, ou até mesmo ilusória, será melhor do que lidar com a indeterminação, o imponderável, o intangível, o misterioso. A consciência precisa de âncoras para preservar-se desse desconforto.

Autoengano
E nisso damos pequenos truques para deixar a realidade mais palatável. Ouvimos, vemos e interpretamos a partir de uma certa conveniência. Restringimos nosso olhar para evitar o sofrimento. Não compreendemos, no entanto, que o autoengano tem efeito contraditório. É um mecanismo de defesa que nos coloca em vulnerabilidade. Afinal, as faces ignoradas da realidade tendem a aparecer em algum momento. Geralmente, quando não estamos preparados para elas.

Uma vez que não há como escapar dessa armadilha, resta-nos apenas vigiar contra essa visão seletiva. O outro poderá nos auxiliar bastante nesse processo. Ele nos lembrará sempre daquilo que estiver aquém da nossa capacidade de visão. Olhe especialmente para quem te incomoda, pois será aí que mais poderá aprender sobre si – assim ensinou o velho Jung.

Quando for possível conter o autoengano, faça sem hesitar. Cumpra seus compromissos. Escute as emoções que te atravessam e perceba como elas transformam seus pensamentos e atitudes. Preste atenção nas palavras que diz. Busque harmonizar o que acredita com o que diz e com o que faz. A ampliação da consciência parte desse exercício de atenção plena. Nenhuma verdade, por mais dolorosa que seja, pode ser pior que a ilusão.

Psique: Você não está blindado de sentir inveja, nem de ser invejado

Fonte: Metrópoles

inveja

Esse texto demorou dois meses para ficar pronto. Não queria construí-lo tomado pelos afetos. Ele é fruto da mais vil das emoções humanas: a inveja. As palavras brotam aqui por empatia, depois de me ver envolto numa vilania digna de novela. Por isso fui cauteloso – quis promover alguma reflexão, em vez de simplesmente expurgar o mal que me contaminava.

Invejar é querer destruir o bem que o outro alcançou, simplesmente por não ter capacidade de fazer o mesmo. Invejoso é quem, em vez de buscar frutificar algum talento, ambiciona o que ao outro pertence – seja para tomar para si, ou para destruir, impedindo que o outro usufrua das conquistas. Ou seja, tal atributo só se manifesta na incompetência, na incapacidade. É um estado de espírito pertinente ao perdedor.

Fica difícil acreditar que uma pessoa possa ser tão desgraçada, a ponto de não conseguir suportar a felicidade alheia: seja pelas realizações materiais ou emocionais, ou somente pela impressão de bem estar que o outro inspira desfrutar.

A fonte do mal
O veneno da inveja alcança diferentes gradações, que vão do desdém às ações práticas com o intuito de destruir o outro. Seja declarada ou velada, ela é o fel que envenena o mundo. Certamente, é a principal ferramenta do mal – a força personificada da destruição, da desarticulação, da imposição. Não é por acaso que a inveja de Lúcifer é tida como a gênese do mal, na mística judaico-cristã. Como os demais afetos, ela segue além do tempo, das culturas e da vontade dos homens.

E, mesmo sendo reconhecida por todo o seu poder nocivo, não conseguimos banir do nosso repertório. Há duas razões básicas para que seja assim. Primeiro, porque somos seres limitados – e inconformados com nossas limitações. Temos uma natureza descontente.

Isso nos inspira a querer completar, a qualquer custo, as lacunas que identificamos em nós mesmos. Banir o exemplo de sucesso é a estratégia que o invejoso encontra para minimizar próprio fracasso.

Querer o que não é meu
Além disso, somos conduzidos por uma competitividade latente, instintiva. E isso faz com que o bem alcançado pelo outro se transforme em algo desejável. A grama do vizinho só é mais verde porque, a uma certa distância, não percebemos as pragas que a infestam.

Fazemos da felicidade do outro uma inspiração para a nossa, sem sabermos ao certo o que cobiçamos. São tendências francamente humanas. Assim sendo, nem adianta assumir aquele discurso de “sou invejado, apesar de não invejar nada de ninguém”. É confortável acreditarmos numa superioridade, mas não se engane: você não está blindado de sentir inveja, nem de ser invejado.
É até mais interessante sermos honestos com o olhar que temos sobre as posses do outro. Se invejar é inevitável, nossa atenção deve se ater sobre a forma como lidaremos com tal sentimento – nisso, o caráter determinará a atitude, e separará aqueles que cultivam o mal e os que tentam neutralizá-lo.

Sal grosso emocional
Só não percamos da mente que, cada vez que a inveja nos atravessa, cegamo-nos diante daquilo que nos sobra, para elencar aquilo que nos faz falta. Isso é tacanho e injusto, consigo e com o outro. A inveja é o maior atraso que você pode atrair para sua vida – ela impede que o seu melhor possa fluir.

E, ao perceber o olhão gordo do outro sobre você, nada de se apavorar. Para neutralizá-la, uma receita mais barata que sal grosso: concentre seus talentos, aprimore-os, afaste o fator sorte da sua receita de sucesso – não deixe uma fresta na porta para que o mal invada. Ria, em vez de se deixar abater. Como ensinou Wilde, viver bem é a melhor vingança. E também o melhor antídoto para o veneno do outro.

Psique: “O bonzinho se dá mal” – generosidade e manipulação

Fonte: Metrópoles

Three red hearts, one broken and stitched, on blue

Você tenta levar sua vida direitinho. Busca ser cordial e ter empatia com o semelhante. Trata o outro bem, pois acha que é assim que qualquer criatura merece ser tratada. Com quem gosta mais, vai além. Se lhe sobra, compartilha. Quando vê o erro, o instinto de proteção passa na frente e você tenta alertar. Se cabem dois, por que ir sozinho? Isso te alegra, então eu fico contente.

A você, tudo isso parece ser natural, orgânico. E daí você se engana. De forma egoísta, acha que tem o direito de retirar do outro o direito de ser quem ele é. Quer recíproca, similaridade, espelhamento de atitudes. Vê injustiça na troca, acha que faz mais e recebe menos. “Trouxa, agora está aí cultivando mágoas. Da próxima vez, farei diferente”. E não reflete sobre tudo o que se passou.

Ser verdadeiramente generoso é uma virtude que contempla um pequeno punhado de pessoas. Em geral, emprestamos em vez de doar. E não fazemos isso por uma debilidade de caráter: a vida se mantém a partir de trocas, tudo só existe em relação.

Pague o que me deve
Quando tentamos oferecer algo gratuitamente, inconscientemente esperamos alguma contrapartida: reconhecimento, carinho, atenção, prestígio, escuta, aprovação. Às vezes, buscamos apenas sermos percebidos e validados naquilo que somos, mas não cremos ser. É bem comum.

Nisso, tornam-se admiráveis os que ajudam desconhecidos, sem se importarem com os problemas dos que estão próximos – a quem poderão cobrar pela generosidade? O mesmo vale para os mercenários: aqueles que sabem dar preço às coisas mais impalpáveis, que encontram equivalência entre dois valores tão díspares, mas deixam as intenções às claras. Só nos sentimos enganados quando não deixamos às claras o preço das nossas atitudes.

A generosidade é uma das formas mais primitivas de manipulação desenvolvidas pelo ser humano. Vem do berço. Mais precisamente, do colo. A nossa primeira referência de doação vem da mãe, ou de quem exerceu esse papel. O bebê, indefeso e incapaz, estará submetido à oferta que provém dessa fonte.

E aí aprendemos o que é chantagem emocional, que mais tarde se traduzirá no duelo entre o “só eu sei o que fiz por você” versus “você poderia ser melhor para mim”. Quem sai vencedor? A culpa. Justo ela, uma das emoções mais tóxicas que povoam nossa alma.

Abusadores e abusados
O comportamento de abuso é fruto desse eixo desestrutural, seja para o abusador ou para o abusado. Há, inclusive, uma espécie de alternância entre esses papeis. Quando o dito generoso se vê menosprezado pelo outro, diz: isso é um absurdo, depois de tudo que eu fiz. Mas não percebe o quanto esse fazer é, em si, uma atitude abusiva. Afinal, quem é você para determinar que o outro não tem condições de se expor a erros e riscos, se é a partir deles que nos desenvolvemos?

Isso não é uma ode ao egoísmo ou à ganância. Mas a partilha saudável é aquela que se dá em acordo, de forma pura. Se não consegue, melhor não ser generoso, para também não ser hipócrita. Ou, pior: emitir faturas para guarda-las na gaveta, à espera da melhor oportunidade de apresentá-la aquele que julgar devedor. Não esqueçamos: são as boas intenções que lotam o inferno.

Psique: Está na hora da arrumação – a moda da faxina

Crédito: Metrópoles

Colorful buttons in the white wooden box

Quando um livro encabeça a lista dos mais vendidos, com certeza ele revela um traço da sociedade naquele determinado momento. É o que acontece agora com “A mágica da arrumação”, de Marie Kondo. Aparece por todos os lados: mãos, prateleiras, reportagens, conversas, prescrições. A tradução: estamos bastante desorganizados.

Basicamente, o método KonMari se fundamenta em dois pilares: descarte e organização. Temas que vão além da bagunça de armários e gavetas, convenhamos. A vida está repleta de coisas e relações empoeiradas, esquecidas em algum lugar, sem nenhuma função. Mas que, juramos de pés juntos, que precisaremos um dia. E, quanto mais acumulamos, maior a chance de nos perdermos diante daquilo que é verdadeiramente necessário.

O nível de dificuldade de viver está diretamente proporcional ao número de compromissos que eu contrair para o meu dia. Essa é uma conclusão óbvia, não precisamos de nenhuma japonesa para nos ensinar isso. No entanto, estamos inseridos num modelo existencial que nos cobra agendas lotadas (a de compromisso, a de relações).

Prateleiras cheias
Curiosamente, a queixa mais comum que escuto se resume em dois termos: “cansaço” e “falta de tempo”. E não duvido disso. Afinal, nossas prateleiras psíquicas estão entulhadas de eventos pouco gratificantes, que mais nos lembram das nossas faltas do que das nossas glórias. É como se comprássemos um brinquedo novo. Mas que, para funcionar, precisa de um determinado acessório. Mas que o encaixe dependesse de outro acessório. E outro. E assim sucessivamente, numa exigência sem fim.

Uma vida saudável depende de pluralidade. Na nutrição, na natureza das relações, na função das atividades. Mas isso não significa apenas em preencher espaços vazios com o que estiver na moda, ou com “itens de promoção”. A vastidão do mundo nos proporciona a possibilidade de nos ocuparmos com coisas que nos traduzam e contemplem enquanto seres únicos. Ou seja, que traduzam aquilo que verdadeiramente somos, em predileções, crenças e tendências.

Nisso, Marie Kondo acerta em cheio. Segundo ela, a triagem dos objetos que nos cercam deverá se dar usando um critério único: fique apenas com aquilo que te traz alegria. Seja imediata, seja secundária. Descarte tudo que não trouxer contentamento. O mesmo vale para aquilo que “um dia pode ser útil” ou que “parece que é bom ter”. Se, até agora, isso não transformou o seu caminho, não o fará no futuro. O que já cumpriu a missão original, pode seguir adiante.

A casa simbólica
Administramos duas casas, nas quais moramos – uma externa, de concreto e pertences, outra interna, de imagens e sentimentos. Ambas se refletem, mutuamente. Por esse motivo, em alguns momentos, o processo de organização torna-se um exercício difícil, e não somente trabalhoso. Envolve questões profundas, das quais nem sempre nos damos conta.

Organizar, arrumar, faxinar, descartar. Fazer um inventário do que guardamos, agruparmos por afinidades. Percebermos o que carece de manutenção. O que poderá ser ajeitado para facilitar. Tudo isso expande os ensinamentos de Marie Kondo para o território simbólico, onde residem nossas emoções. E assim tudo ganha seu lugar. A vida fica mais arejada, clara, prática.

 

nivas gallo