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Jornal Santuário: Você tem fome de que?

O Jornal Santuário de Aparecida me convidou para elaborar um artigo sobre compulsões alimentares. Está publicado na edição deste mês.

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Você tem fome de que?

Todo sintoma que se manifesta no corpo simboliza algo que a alma reclama. Ou seja, não há mal físico que não tenha sido originado na  psique. Quando se observa algum distúrbio alimentar, essa relação fica ainda mais evidente: a silhueta se transforma para apontar algo que está em desacordo.

Na compulsão alimentar, costuma-se fazer associações simbólicas com o “apetite” desmedido que ali se apresenta. Os versos dos Titãs podem nos ajudar nessa hora. Você tem sede de quê? Você tem fome de quê? Quais são as carências que esse corpo manifesta? Ou seria uma busca por sabores que gratifiquem a vida? A gente não quer só comer, a gente quer prazer pra aliviar a dor.  Qual vazio está sendo compensado durante o comer? De qual problema se quer escapar? A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte.

Em geral, comedores compulsivos preferem alimentos de baixo valor nutricional, ricos em sabor, calorias e gorduras. Substâncias essas que deleitam o paladar e desencadeiam uma sensação de entorpecimento, mas que, como consequência, atraem para si o sobrepeso. O acúmulo de gordura, escudo natural contra as adversidades em eras primitivas, ganha na contemporaneidade uma nova configuração: é causa de menosprezo e rechaço. “Quem se ama não faz isso consigo mesmo”, diz o julgamento de muitos, impiedoso e indiferenciado.

Já vi pessoas que comiam compulsivamente pela falta ou excesso de vaidade; para se sentir forte ou na fantasia de se fortalecer contra um problema que acusa sua impotência. Em todos, percebi um traço comum: a dificuldade de enfrentar adversidades. O grande desafio no tratamento é o de ir além da patologia. Como ensina Jung, temos de enxergar o doente que está por trás da doença: um ser único, individualizado, com uma história que desembocou naquele momento, em que ele admite o problema e decide buscar ajuda.

 

Outras Ondas* – Somos todos complexados?

O complexo é um dos conceitos mais banalizados da Psicologia Analítica . A maioria das pessoas, no entanto, assume o termo de uma forma generalista, correlacionando-o à repetição de um padrão de comportamento. Mal sabem que a força de um complexo vai bem além disso. Na verdade, ele é uma estrutura indispensável para a manutenção psíquica.

Na denominação junguiana, os complexos são estruturas pertencentes ao inconsciente pessoal. Ele é formado por ideias e imagens que experimentamos ao longo da vida. Esses elementos são amalgamados por afetos, por emoções vivas. Os complexos se expandem na medida em que abarcam novas imagens ou ideias ligadas à mesma temática (representações, pensamentos, fantasias, impressões, lembranças, referências etc.). Ficam mais fortes quando ganham doses extras de carga afetiva, a partir de novas experiências. Assim, vão “engordando” com o passar do tempo. São como organismos vivos, dinâmicos e com autonomia.

O centro de cada complexo é arquetípico, ou seja, relaciona-se ao resultado de todas as experiências da humanidade no que diz respeito a um determinado tema. A melhor forma de compreender é a partir do exemplo. Tomo o complexo materno. Ao nascer, todo o contato que o bebê tiver com a mãe será registrado no inconsciente: as palavras, os gestos, os toques etc. Os afetos (bons e maus) transmitidos por essa mãe serão a “cola”, que transformará todas essas experiências em uma estrutura única, o complexo. Esse sistema vai crescer de acordo com o desenvolvimento do próprio indivíduo, e do contato que ele tiver com aquilo que estiver associado à palavra “mãe”. Além das experiências pessoais com a genitora, acrescente aí as demais referências que se adquire ao longo da vida sobre o tema maternidade: o que experimentamos pela observação das mães dos outros, as mães que vemos na televisão ou em um livro, as imagens das “mães divinas” (como Maria, por exemplo)… Tudo isso formará o complexo materno.

Escolhi o exemplo de propósito, já que o complexo materno é universal, experimentado invariavelmente por todos – até mesmo entre aqueles que nunca conheceram a própria mãe. Nesses casos, o complexo materno será formado a partir da pessoa que exercer os papeis da maternagem: a alimentação, o cuidado, a docilidade, a proteção… Assim, pode ser constituído a partir das experiências com a avó, com a vizinha, com a cuidadora do berçário, ou até mesmo com o pai, se ele desempenhar essas funções.

O nosso complexo mais importante é o ego, o centro da consciência. Ele é o mediador, o ponto de referência entre o mundo interior e exterior, onde se referenciam os traços da personalidade, o corpo e o nome. Começa a ser constituído na infância, quando a criança descobre o “eu”: o uso dessa palavra sinaliza os primeiros indícios de diferenciação, quando começa a se moldar um indivíduo único.

Pela capacidade de autonomia que têm, Jung comparou os complexos a pequenas psiques individuais, ou personalidades secundárias ou parciais. São como gênios, capazes de interferir no ego. Se pudéssemos enxergar o inconsciente pessoal, veríamos os complexos distribuídos como que em uma rede. Apesar de serem organismos individuais, eles tocam uns aos outros, mantendo uma interação constante entre si.

O ego surge como o complexo estrutural da consciência, responsável pela manutenção da unidade do indivíduo. As neuroses surgem quando um outro complexo interfere diretamente nele, provocando-lhe uma limitação de ação. Sempre que tomamos uma atitude estranha demais ao nosso padrão comum, como se num processo automático, estamos sobre esse domínio. É comum, inclusive, nos questionarmos: “não sei como fui capaz disso.” Ou dizermos: “era como se algo tivesse tomado conta de mim”. O complexo é capaz de nos influenciar e interferir nas decisões, mesmo fora da nossa vontade consciente. É praticamente um “encosto”.

Quantos complexos cada pessoa pode ter? A resposta é impossível de ser dada. Percebemos a atuação de alguns a partir do processo de análise, entendemos parte da interação entre eles. Mas nunca temos o conhecimento pleno de todos. Esse entendimento é importante para que não nos tornemos reféns dos complexos – na medida em que conhecemos o mecanismo de ação deles, temos uma possibilidade maior de impedir que atuem. Isso se dá a partir da ampliação da consciência: fortalecemos o ego para que se torne menos suscetível à interferência dos demais complexos.

Costumo dizer que eles são como bombas-relógio instaladas na nossa psique: ao identificarmos o mecanismo de ação, fica mais fácil desarmá-la. Para evitar os danos de uma explosão, o desafio é desarmar o aparato logo que ouvir o primeiro “tic-tac”. Nem sempre é fácil, é verdade. Por isso, quanto mais informações tivermos sobre a bomba, mais fácil será mantê-la sob controle.

Jung dizia que não temos complexos, e, sim, que eles nos têm. O tema é vasto e, como não poderia deixar de ser, bastante complexo. Por esse motivo, voltarei a falar sobre ele em breve.

Outras Ondas* – A magia do Cisne Negro

Não faltam boas referências na mídia sobre o filme O Cisne Negro. Principalmente à atuação impecável de Natalie Portman, favorita ao Oscar de melhor atriz. No entanto, não me coloco aqui no papel de crítico de cinema, e sim de alguém que elogia e analisa a rica simbologia presente no filme. O dilema e o enfrentamento de Nina (Natalie) são indiscutivelmente uma das melhores referências que se pode ter sobre questões do complexo materno, a temática que apresento aqui.

Nina é uma bailarina de 28 anos que, apesar da idade, tem referências distorcidas da própria vida. Ela é extremamente sensível, mas também indefesa e infantilizada. Vive reclusa com a mãe, tendo na dança o trabalho e a única distração. Tem como meta a perfeição e, na tentativa de alcançá-la, mantém uma imagem extremamente polida e autocrítica. Tais características são estimuladas por essa mãe: uma bailarina frustrada, que deposita sobre a filha a responsabilidade de ter-lhe impedido o desenvolvimento na dança. Sua mãe não tem sequer um nome ou atributo que a diferencie do mundo: dialoga com rostos anônimos que pinta, numa tentativa de definir uma identidade.

A relação entre ambas é simbiótica. Nina se esconde na superproteção materna, e, em contrapartida, se submete ao abuso e a tirania. Nem se pode dizer que a filha tenha uma intimidade devassada: ela sequer tem direito a uma intimidade, ao viver em um quarto sem fechaduras. A mãe a despe sem pudores, vigia o seu sono, define planos a seguir. Nina, por sua vez, tem uma autoimagem distorcida, que se manifesta em sintomas. Tem uma urticária compulsiva (incômodo e negação à pele, canal de contato físico com os demais e também de estimulação erógena) e também apresenta rumores de distúrbios alimentares. Ambos são usados por essa mãe, como forma de impor o controle a partir da imagem de cuidado. Ela é o Cisne Branco, asséptico e imaculado, que nada nos lagos formados pelas lágrimas da mãe – assim como é no conto que deu origem ao balé O lago dos cisnes, que embasa a história.

Submetida a esse mundo, Nina desempenha um papel limitado diante da vida. Encontra expressão unicamente na dança e, sabiamente, é a partir da expressão artística que surge uma possibilidade de remissão desse quadro doentio. O diretor da companhia onde dança desperta Nina à necessidade de desenvolver atributos até então negligenciados, quando a convida a desempenhar um papel que é o seu avesso. Os homens tem um papel preponderante no desenvolvimento da mulher: é o que Jung chamou de animus, a parcela masculina que as habitam. O mesmo ocorre com eles, que contam com a anima como oposto complementar na psique. A conexão com esses elementos é feito a partir da projeção: enxergamos animus e anima nos homens e mulheres com quem convivemos.

No caso de Nina, o animus se manifesta no diretor, que assume o papel de herói (a captura da família e a leva para conhecer um novo mundo) e também de professor (oferece lições para seu desenvolvimento). Ele inicia essa jornada despertando-lhe a sexualidade, inerente ao papel do Cisne Negro e negada até então pela protagonista. Ele estimula a autoerotização (com a masturbação, o uso de maquiagem) e também a inspiração nas colegas de companhia, que traziam a dança de forma visceral e espontânea, a detrimento da técnica.

Nessas colegas, Nina vê projetada a própria sombra: tudo aquilo que não quer ou não se permite ser, mas que, nesse momento, é imprescindível para o desenvolvimento. Na medida em que ela se encoraja a encarar essa sombra, na tentativa de admiti-la e integrá-la, o corpo metaforicamente passa por uma mutação e incorpora os caracteres do Cisne Negro. O enfrentamento provoca dor e estranhamento: ela enxerga o próprio rosto em situações até então improváveis. Fica inevitável a ela reconhecer-se transgressora, forte e independente. Agora, pode confrontar a mãe devoradora e libertar-se dela.

O apogeu de Nina se dá na estreia do balé. Num confronto contra a própria imagem, ela crê ter destruído a sombra projetada no exterior. Mas agora o Cisne Negro a habita, reina em si, enquanto o Cisne Branco torna-se incômodo, artificial. No entanto, de tão intenso, o papel sombrio conquista o público. Ela está realizada e, ao avistar a plateia, só consegue enxergar a imagem da mãe, feliz e vibrante. Entende então que, desde o princípio, tudo o que ela lhe desejara era a felicidade, a realização e a plenitude que não conseguiu vivenciar. Nina consegue integrar em si o Cisne Branco e o Cisne Negro. Está confiante o suficiente para saltar rumo ao desconhecido. Só, então, percebe o sentido da perfeição.

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“Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa.
Põe o quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago
a lua toda
brilha, porque alta vive.”
(Ricardo Reis (Fernando Pessoa), 1933)

nivas gallo