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Psique: Pessoas verdadeiramente espiritualizadas não cultivam a hipocrisia

crédito: Metrópoles/iStock

Como analista junguiano, uma das principais demandas que escuto de meus clientes diz respeito à espiritualidade. Em diversas versões: incompreensão do conceito, vontade de desenvolver esse atributo, a confusão gerada pelos dogmas religiosos.

Como que instintivamente, acreditam que uma melhor elaboração do tema poderia conferir-lhes mais bem-estar. E estão plenos de razão. Encontrar-se espiritualmente é a finalidade para cada indivíduo, uma espécie de meta na existência. E isso não está necessariamente associado à religião.

Entendo uma pessoa espiritualizada como aquela que encontrou e aprimorou os valores e talentos que lhe fazem única. E que, fielmente entregue a isto, passou a empregar tais características a serviço do outro, em nome de um bem comum.

Em suma: espiritualidade é serviço. E, seguindo esse conceito, todos podem ser altamente espiritualizados exatamente com aquilo que são, com as facilidades que têm. Não há porque pensarmos que um dito “líder espiritual” é mais elevado que um chaveiro, por exemplo. Tudo dependerá daquilo que é entregue – seja um conselho, ou uma cópia de chave.

Inclusive, pensar assim mudou profundamente a forma como interpreto as religiões. Ainda as compreendo como um bom caminho para desenvolver a espiritualidade – uma vez que nos chamam à reflexão do lugar que ocupamos no mundo. Mas tenho buscado me libertar dos discursos, e focar nas atitudes.

Muitos que se proclamam espiritualizados são, em seu íntimo, clientes de Deus. Ou dele apropriam-se indevidamente. Buscam, pedem, reclamam, barganham. Mas pouco estão dispostos a verdadeiramente servir ao semelhante – seja com uma palavra, um silêncio, um gesto. Agem como acumuladores de milhas, e não como quem quer atender ao chamado de quem necessita.

Um ser espiritual reproduz o caráter transcendente do que entendemos por Deus: vai além do óbvio, compreende, excede à normalidade. Faz a diferença, positivamente. É capaz de transformar uma vida, de abrir frestas que ajudam a iluminar e arejar o sofrimento, a carência e a incerteza do outro.

E, para isso, não precisam de esforço, de ser quem não são. Espiritualizar-se não é criar uma personagem, é saber despir-se das que a vida já obriga a carregar. É um encontro de dois dispostos, seja lá qual for a circunstância.

Palavras não conduzem o espírito. O sentido que damos a elas, sim. O simples fazer não me aproxima do sublime, mas a intenção do feito pode ser transformador e reverberante. Pessoas verdadeiramente espiritualizadas não cultivam a hipocrisia. Contribuem somente com aquilo que têm a oferecer, sem deixar se levar por intenções abjetas.

A espiritualidade é uma busca grata por nos oferecer a noção de sentido: existo com um propósito, sou capaz de melhorar meu mundo único e exclusivamente por ser quem sou. Assim, o caminho que nos leva a esse estado nada mais é que o mesmo que nos leva para dentro.

Outras Ondas: Um ser de luz

Hoje escrevo diferente, mais em tom de homenagem do que de reflexão. Teve uma mulher na minha infância que me ensinou a amar sereias e seus contos de areia. Uma tal que me ensinou da doçura e da força, do drama e da alegria. Mulher exuberante, de rendas alvas e flores coloridas nos cabelos cor-de-fogo. Batom vermelho para emoldurar o sorriso franco, que abraça a quem vê. No próximo domingo, ela faria 70 anos – coincidentemente, a idade de minha mãe hoje. Essa mulher é Clara Nunes.

Minhas motivações para escrever sobre a guerreira vão além da admiração de fã. Clara foi uma mulher que muito conquistou para o Brasil, especialmente para as brasileiras. Clara era a imagem da beleza cabocla, nativa, destacada na mídia nacional. Sendo a primeira a vender mais de 1 milhão de discos de um mesmo álbum, atingiu o auge econômico e profissional num período onde a mulher ainda era sombreada pelo masculino. Era cantora-povão de voz requintada, e se orgulhava disso. Bateu Japão, europas e américas com sua arte. E se mantinha aos pés dos morros da Portela, da Serrinha, embebida em rodas-de-samba.

Apesar da pele alva, abraçou com fervor as tradições afrobrasileiras: o jongo, as cores, a religiosidade. Sem nenhuma vergonha de cantar seus orixás, sem nenhum pudor para a inclusão – a luta por um olhar igualitário, numa realidade ainda segregacionista. Depois de Clara, patroas se interessaram pelas macumbas das empregadas domésticas. Foi a partir dela que a fé popular dos pretos passou a ser motivo de orgulho, e não de vergonha ou repressão. Caymmi cantou para Mãe Menininha e ficou cult. Mas foi Clara quem colocou Ogum, Iansã, caboclos e pretos-velhos nas paradas de sucesso, no verdadeiro domínio popular.

Fora da claridade dos holofotes, Clara era uma pessoa atribulada. Na biografia escrita por Vagner Fernandes, entendemos o grande drama que a fez ser alguém tão dedicado à fé. Clara achava que tinha mais a dar ao mundo, queria ser mãe. Flertava com o destino para que ele lhe retirasse a desgraça da infertilidade. Não conseguiu, apesar de apelar para os recursos deste e do outro mundo. Manteve-se obstinada e calada diante de tamanha dor. Dela, certamente, tirou subsídio para interpretações viscerais, para cantar o amor sofrido pela falta.

E na dor do amor, naquelas músicas de AM, é que os nossos sentimentos mais profundos se descortinam. Cantando, revelamos as paixões que nos dominam, os desenganos mais incompreensíveis, a esperança dos amores tranquilos. A alegria dos reencontros, a força das palavras. A música popular brasileira é eficientíssima nessa função de nos traduzir. E Clara foi médium para muitos dos nossos afetos.

Quando criança, aprendi a chantagear com Clara: a cada troca dos dentes de leite, tinha como prêmio de consolação a oportunidade de ouvir um LP de seus maiores sucessos, guardado por minha mãe para momentos oportunos. Sinto saudade de uma pessoa que mal conheci: ela foi cantar em outras bandas cedo demais – me permito ser egoísta, acho que ela poderia ter me esperado crescer para assisti-la pessoalmente.

Clara era mulher de pé no chão, ligada à terra. Sem deslumbres de internacionalismos, despretenciosa e sólida. Lembrada pelo refino de sua simplicidade, coisa que faz falta nos dias de hoje. Sua imagem reproduzia o arquétipo do Brasil: plural, eclético, misturado, livre, improvisador, doce, enfático.

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Dedico esse post à amiga Mariene de Castro, orgulho de irmã. Força e encanto, como Clara. Em seu mais recente álbum, a baiana homenageou a mineira, regravando Um ser de luz, a canção que embalou o adeus da guerreira.

Outras Ondas* – Crianças divinas

O corpo é pequenino para uma alma tão grande. Os comportamentos refinados, as opiniões contundentes e maduras, e o olhar curioso e inquieto chegam a destoar da aparência infantil. Tudo forte demais, intenso demais – difícil até para a compreensão dos pais e demais adultos. Essa é a realidade de um número cada vez maior de meninos e meninas espalhados por aí. São as chamadas crianças índigo – gente miúda que parece estar à frente de seu tempo.

O termo foi criado em meados da década de 80 pela sensitiva e parapsicóloga americana Nancy Ann Tappe, e ganhou popularidade nos últimos anos graças à adesão do conceito por doutrinadores espiritualistas. Nancy escolheu o índigo para denominá-los pois, segundo ela, essa é a cor que emana da aura dos meninos. Uma cor até então rara, mas que vem se tornando bastante popular. Ela sugere que será deles o futuro: a nova geração, encarregada pela manutenção do planeta, maltratado pela ação do homem.

Tais crianças seriam, na verdade, a encarnação de espíritos evoluídos, vindos de outras dimensões com esse propósito salvador. Chegam aos milhões todos os anos: ela acredita que 95% dos nascidos nos últimos 20 anos têm o índigo refletido na aura. Alguns foram pioneiros e já estariam em ação: o presidente americano Barack Obama seria o mais célebre dos índigos reconhecidos por Nancy. Eles também seriam responsáveis pela criação das redes sociais que tanto marcam esse início de século 21.

O legado dos índigo está sempre associado ao desenvolvimento de grandes propósitos. São grandes facilitadores de processos, exploram tudo com criatividade e simplicidade, trazem no discurso uma franqueza desconcertante. Podem ser classificados como hiperativos ou rebeldes. A intensidade os define, o que faz com que nem sempre sejam recebidos com facilidade pelos demais. Podem apresentar dificuldades comportamentais, quando não sentem nos demais a afinidade com seus propósitos. Muitas vezes, preferem brincar sozinhos ou com adultos – sem muita paciência com os meninos da mesma idade. Além disso, questionam dogmas e regras que não lhe parecem naturais – são reis daquelas perguntinhas capazes de desconstruir a imagem de superioridade forjada pelos adultos em eventos sociais. São sui generis.

O respeito à individualidade, que deveria ser um pressuposto a todos, torna-se indispensável para a compreensão dos índigo. É consenso entre os que creem na existência dessa geração que é preciso dar atenção especial às demandas apresentadas por essas crianças. Ouvi-las para entender o que se passa em seu íntimo. O médium Divaldo Pereira Franco, autor de A Nova Geração: A visão Espírita sobre as crianças índigo e cristal (Ed. Leal) salienta que as aptidões naturais das crianças índigo precisam ter o amparo dos adultos, e não a repressão, para que elas se tornem indivíduos propensos a contribuir com a humanidade.

Independentemente de qualquer classificação espiritual, é notório que as crianças de hoje são bem diferentes das gerações que as antecederam. Acompanham, simplesmente, um mundo acelerado por tantas transformações, construídas e ansiadas por nós próprios. A adequação para esse novo padrão de comportamento exige esforço: da escola, da sociedade e principalmente dos pais. Cabe a todos nós buscar formas de atualização (no discurso e na prática) para lidar com aqueles que nos sucederão. Sem esquecer que, antes de tudo, é preciso compreendê-los.

* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

Outras Ondas* – Uma vida além da vida


O cinema nacional quebrou, recentemente, mais um recorde. O filme Nosso Lar, inspirado na obra homônima de Chico Xavier, ultrapassou a marca de um milhão de espectadores nos cinco primeiros dias de exibição. Todos interessados em conhecer uma versão do que seria a vida após a morte, de acordo com a crença espírita. Para construir tal realidade, o roteirista e diretor Wagner de Assis não poupou recursos nem tecnologia: a obra também tem o marco de ser a produção mais cara da história nas películas brasileiras, com orçamento estimado em R$ 20 milhões. É o Avatar à brasileira.

Mas certamente não é a tecnologia o que mais atrai tanta gente desejosa de conhecer o Nosso Lar. Nem também a convicção no espiritismo: três de cinco amigos que assistiram o filme seguem outra orientação religiosa. Na verdade, o que os conduziu à escolha foi a curiosidade sobre o que estaria além da morte – uma das questões existenciais do homem.

O Brasil, país de maior adesão ao kardecismo, também é rei na miscigenação das crenças. Propicia, por exemplo, que um católico tome um passe vez por outra, sem que isso traga um conflito sobre a própria fé. Chico escreveu a obra em 1944 e, até hoje, ela é a mais vendida entre seus livros. Nela, a continuidade do espírito é marcada por situações que conhecemos bem: trabalho, filas nos meios de transporte, alimento para o corpo (astral, no caso), regras, disciplina, modernos centros de comunicação, doenças e tratamentos médicos… Algo bem distante da plácida e romântica ideia de vida eterna!

É essa a realidade complexa que o médico André Luiz encontra ao adentrar na cidade espiritual. Relatos que, na crença, ele transmitiu a Chico por meio da psicografia – a escrita mediúnica, prática dos espíritas. A continuidade do espírito após a morte do corpo é a base para todas as religiões. Nelas, encontramos respostas para nossas inquietações mais profundas, damos sentido à vida – e assim o é desde a formação das civilizações. Para o psiquiatra suíço C.G. Jung, fundador da Psicologia Analítica, a crença nos espíritos é reforçada sempre que há uma distorção dos valores humanos. “A percepção de uma realidade espiritual arranca-o constantemente dos laços que o prendem a um mundo puramente sensível e material, e lhe incute a certeza de uma realidade espiritual cujas leis ele deve observar tão cuidadosamente e com tanto temor quanto as leis da natureza física circundante”, ensina em A natureza da psique (Ed. Vozes).

Partindo dessa óptica, a corrida aos cinemas ultrapassa a curiosidade. Ela evidencia a eterna busca, a necessidade de resgate da espiritualidade – independentemente de conceitos religiosos. Nosso Lar e as demais obras que falam da vida além-túmulo não nos levam a refletir sobre a morte. É justamente o contrário: buscamos, com elas, uma justificativa para viver. Algo que nos conforte e valide os esforços cotidianos de sermos pessoas melhores.

* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

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