Self

Outras Ondas* – Com que roupa eu vou?

O brasileiro tem na alegria uma das suas marcas diante do mundo. Grande parte desse estigma é resultado do carnaval. A festa é profana, mas tem intensa conotação religiosa: é o momento de cometer excessos, pois em seguida é preciso enfrentar a reclusão e o sacrifício, que antecedem a Páscoa. A felicidade se manifesta na expressão do corpo. É época de acumular os pecados que serão expurgados durante as privações da Quaresma.

Até mesmo quem não é cristão se aproveita, e muito, do carnaval. Cada um escolhe uma fantasia para poder expressar os conteúdos internos mais inconfessos. Nesse período, machão se traveste de mulher, franzino encarna gladiador, Sandy vira devassa. Preconceitos se rebaixam. Nos trajes, a criatividade expressa o que a alma inveja, ao menos por um dia.

O uso das fantasias remota à arte do teatro antigo. Nele, as vestes e as máscaras davam ao ator a potência especial da interpretação: em um instante, a personalidade dava espaço a um ente desconhecido, com voz e pensamentos próprios, capaz de surpreender os demais pela naturalidade e autenticidade dos gestos. No período clássico, tais máscaras eram denominadas com o termo latino “persona”.

Jung aproveitou o termo para designar o instrumento psíquico que usamos para confrontar o mundo. Ela não representa o que somos em essência, mas sim a forma como queremos ser vistos. Tem, assim, uma dupla função: de interação com os outros e, ao mesmo tempo, uma defesa desses mesmos outros. Podemos ter tantas personas quantos forem os papeis sociais que precisamos desempenhar: uma para a família, outra profissional, uma no contexto religioso, outra na reunião de condomínio… Uma pessoa com personalidade bem estruturada sabe encontrar a hora certa de usá-las, variá-las e substituí-las. Outros podem ter um apego demasiado a uma determinada persona. Cristaliza-se assim como um personagem predominante, uma espécie de caricatura de si mesmo.

O exercício de amadurecimento da personalidade pode ser comparado a um descarte dessas máscaras ao longo da vida, ou, ao menos, de uma semelhança maior entre elas e a verdadeira essência do EU – é como se, com o passar do tempo, elas se tornassem cada vez mais transparentes.

No carnaval, o exercício das fantasias é de abandonar as personas mais usuais e dar espaço àquelas que são utópicas. Porém, olhando de perto, é sempre possível encontrar uma relação entre a essência do indivíduo e a fantasia que escolhe para usar. Nelas, encontra-se a permissão necessária para reconhecer e revelar o avesso. Também é a chance de assumir o improvável que se admira, o que se encontra distante demais das possibilidades reais. E assim se espalham milhares de super-heróis e personalidades memoráveis pelo salão. A fantasia também é instrumento de sátira, de escárnio àqueles que criticamos – são as ditas fantasias de protesto. Se optar por uma dessas, pergunte-se também: para que assumir um papel que tanto repudio? O que isso tem a dizer de mim? Oportunidade mais saudável não há para revelar-se o que carregamos por dentro.

Ao fim do reinado de Momo, somos chamados a rasgar a fantasia e guardar os guizos no coração, como diz a marchinha de Lamartine Babo. A realidade se reestabelece e cada indivíduo é chamado a retomar às velhas máscaras, às personas corriqueiras. Porém, com o entusiasmo de saber que é possível transformar-se em outro (ou outros) – algo que inspira às mudanças que queremos processar ao longo do ano. O carnaval nos treina a diversidade do ser.

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! (…)
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que eu vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pregada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho
Já tinha envelhecido.

(Cit. Tabacaria, Álvaro de Campos, 1928)

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