Self

Outras Ondas* – O que eu mereço

Uma das grandes críticas do mundo atual é a ausência de valores voltados à coletividade. Vivemos, dizem, em uma civilização pautada no egoísmo, repleta de valores predatórios. No entanto, a cada dia me deparo com pessoas que, por temerem a associação com esses papéis, sofrem justamente pela debilidade do EU. Na ânsia por dar certo nos papéis sociais, esquece-se de destinar o saudável espaço para os momentos de promoção de valores relativos à individualidade. Deixa-se confundir pelo eu-profissional, o eu-mãe, o eu-marido – e uma série de outros eus fragmentários.

Em psicologia analítica, cremos que esse EU se personifica no ego, o eixo que ocupa o centro da consciência. Ele é um complexo, ou seja, um emaranhado de imagens e sentimentos que se forma à medida que o indivíduo experimenta o mundo que o cerca. O ego funciona como o personagem central da história, o responsável pela execução das tarefas designadas pela totalidade psíquica, a quem chamamos self. Jung descreveu a formação do ego como ilhas de consciência que emergem do oceano do inconsciente. Ao se aglutinarem, essas ilhotas constituem a imagem que temos de nós mesmos – seja ela na dimensão corporal, psíquica ou espiritual.

A formação do ego se inicia desde o momento inicial da vida. Porém, ela tem um salto importante quando a criança para de se referenciar como “O Pedrinho” ou “A Carol” e se autointitula “eu”. Nesse momento, ela toma a consciência de que mora no “arquipélago” da consciência, e não mais no inconsciente indiferenciado. Os pais percebem isso claramente: em geral, vem acompanhado por uma fase questionadora, cheia de birras e tiranias, lá pelos 2 anos de idade. O ego ganha um novo upgrade na adolescência (com as mesmas birras e tiranias), onde há uma afirmação de traços da personalidade a partir do desprendimento ou identificação com as características herdadas dos pais. O eixo da consciência se completa por volta dos 21 anos, quando o sujeito se diferencia dos demais a partir de traços únicos de personalidade.

Porém, muitos se esquecem de continuar fortalecendo esse eixo. Deixam de lado elementos que lhe são favoráveis, diria imprescindíveis, para aguentar as adversidades que o mundo impõe. O Eu se transforma num resolvedor de problemas do cotidiano – e valida-se tanto nesse papel, a ponto de esquecer-se de aproveitar as recompensas diante dos feitos heróicos que realiza. A vida competitiva faz com que não haja sossego: a paz ficará para o futuro, quando tudo estiver organizado. Mas e que dia saberemos que o tal futuro chegou? Chegaremos ao dia mágico destinado a descansar e aproveitar a vida?

Nessa roda viva, o eu-herói se encarrega dos próprios problemas, dos problemas dos semelhantes e dos problemas da humanidade. Não defendo aqui a individualidade exacerbada, absolutamente. Mas é preciso saber reconhecer que um soldado ferido pode onerar, e até mesmo prejudicar o andamento de uma guerra. O reconhecimento das próprias feridas tem sido um problema constante. A tendência do mundo é de cobrar que se faça mais, e mais, e mais. Não há mais razoabilidade para admitir-se infalível. No íntimo, o eu-heróico se queixa de ser humanamente imperfeito.

O tempo para refazer-se das batalhas diárias se transforma em frivolidade. Transfere-se os méritos a outros; lidar com troféus torna-se um enfado. É como se fosse proibido ser feliz: deve-se “correr atrás”, pois o tempo passa rápido e é inadmissível deixá-lo escapar entre os dedos. Mal percebem que, quanto mais obstinado se estiver com esse propósito, sobra menos tempo para viver.

O ego é o veículo nessa jornada. E, como tal, merece passar por revisões constantes para que possa se manter funcionando plenamente. Entre os itens a conferir, estão o comprometimento com as atividades que me conferem prazer e descontração, além do respeito com o corpo – que nem sempre diz sim a todos os embates que o herói resolve abraçar. Estar ciente desses fatores é lidar, sem culpa ou constrangimentos, com as maravilhas que o mundo propicia.

Outras Ondas* – Um Cristo entre nós

Milhões de pessoas mundo afora comemoram hoje a ressurreição de Jesus, a ascensão do Cristo. A imagem do redentor, aquele que nos oferece a chance de transformação em prol da vida, perde espaço para os apelos comerciais da data para muitos. Outros enxergam a Páscoa com alívio – ou fim do martírio da Paixão. Mas não se atentam para lições preciosas enviadas por Jesus nos últimos momentos terrenos.

Jesus aparece calmo e sereno, uma figura bastante diferente daquela que havia padecido três dias antes na cruz. Superava a dor da incerteza, já não duvidava mais da proeza de Deus, nem tinha mais uma atitude de revolta contra Ele. A ressurreição era o indício que faltava para que se completasse o caráter messiânico na figura do homem.

Esse é o grande mistério que envolve a história de Jesus. Ele, que já conhecia a função divina a partir dos milagres que realizou, precisava enfrentar o peso do Calvário, a sina enunciada há séculos por profetas como Isaías. Só ao conviver com as incertezas provocadas pela dor física, ao entender os limites do corpo, ele experimentaria (e despertaria) a compaixão diante dos demais. Jesus se faz, assim, Deus e irmão da humanidade.

Ao ressuscitar, Jesus não se desprende instantaneamente ao corpo mortal que assumiu. O faz como um instrumento de convencimento de seus seguidores para a grande verdade: não devemos ignorar o plano físico para elevarmos o espírito – um depende do outro para que possa se realizar. Mesmo após a ressurreição, Jesus sente fome e alimenta-se de peixe e mel, como narrado em Lucas. Alimentos sagrados, símbolos da vida e da ternura.

A escolha de Maria Magdalena como a primeira testemunha de sua condição divina também é indecifrável. Textos apócrifos indicam que ela seria, na verdade, esposa de Jesus. Outros interpretam que a ligação dos dois estava associada à fidelidade extremada desenvolvida por ela em relação ao Mestre – a quem oferece uma das mais bonitas lições de humildade, ao lavar-lhe os pés e enxugar-lhes com os cabelos. Ela, que absorvera grande parte dos ensinamentos ao acompanhar Jesus nas pregações, foi a eleita para levar aos demais a notícia da confirmação da santidade.

No entanto, o olhar de fascínio diante da maravilha da ressurreição que certamente Magdalena transmitia não foi suficiente para despertar a credulidade entre os discípulos. Jesus precisou recorrer novamente ao corpo para poder dobrar o pragmatismo dos próprios seguidores. A cada aparição, lidou com a fé titubeante dos companheiros. Eles não conseguem reconhecê-lo de imediato, mas o fazem somente depois de ouvirem, ditas pelo “estranho”, as palavras já enunciadas pelo Mestre, ou ao vê-lo repetir gestos emblemáticos, como a divisão do pão tal qual fizera na última ceia.

Tais passagens das aparições apontam para uma das grandes lições do cristianismo. Ao transfigurar-se, Jesus nos ensina a reconhecê-lo a partir dos propósitos e atitudes, e não pela imagem física. Esse é o grande desafio dos verdadeiros seguidores do Cristo: perceber que as injustiças por ele rechaçadas continuam em vigor no mundo contemporâneo e perceber que as lições por ele deixadas precisam ser praticadas – e não simplesmente reproduzidas oralmente, sem uma vivência visceral e verdadeira. Este é, certamente, a forma mais genuína de cultuá-lo.

O legado deixado por Jesus transcende qualquer consideração religiosa e serve de inspiração para um comportamento digno e fiel. Jesus ensinou a santidade da retidão em prol da consciência, deu aos irmãos homens a chance de remissão dos pecados a partir da ética e da atenção diante dos atos praticados. A imagem do homem sangrando na cruz muito diz sobre a vida do nazareno, porém não é a sua melhor definição. Consigo enxergá-lo de forma muito mais plena na imagem daquele que experimentou e reconheceu a existência e os limites do corpo, mas soube manter-se firme no propósito do desenvolvimento. Afinal, o sacrifício só é válido quando responde a uma finalidade nobre. Jesus foi um ser em prol da vida, abundante em justiça e felicidade.

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