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Psique: Esquecemos o maior valor da infância: a descoberta sem julgamentos

crédito: Metrópoles/iStock

Já virou um jargão gasto esse negócio de criança interior. Fala-se muito que dela precisamos cuidar, para que sanemos feridas do passado. O conteúdo tem razão. A forma, nem sempre.

Para começar, pela forma como ela é enxergada. Falamos dela na terceira pessoa, como quem olha de cima para baixo. Forçamos uma certa intimidade, para disfarçar nosso desejo de impessoalidade.

Na infância, estamos conhecendo o mundo. As impressões lá adquiridas vão servir de referência para todo o novo que acessarmos ao longo da vida. Descobrir é um exercício cumulativo, no qual o que veio antes influenciará o que vem depois.

O problema é que tudo que aprendemos, desde a primeira respiração, é associado a conceitos e crenças. Vindos de adultos, que agem a partir de preconceitos – angariados por experiências próprias ou por heranças que lhes foram transmitidas.

E é assim que a criança se fere: pelo medo do desconhecido, pela incerteza dos papeis a desempenhar, pela insegurança frente aos próprios recursos. Assim como qualquer ser vivo, não nascemos para o fracasso.

No entanto, deixamo-nos contaminar demais por esse falso poder oferecido pela consciência, e, em nome de uma preservação do confortável e seguro, embotamos o grande sanativo infantil: a criatividade.

Percebemos a tal criança ferida no discurso monótono e tedioso dos incapazes de fantasiar, e de crer nas próprias fantasias. A chaga que carregamos em nossa criança interior é a incapacidade de brincar.

Levamos muito a sério aquilo não tem tanta importância: opiniões alheias, modismos, certezas. E esquecemos o maior valor da infância: a descoberta sem julgamentos. Brincar alivia o peso da vida.

Brotam daí todas as intolerâncias, todo o desrespeito. Pois não conseguimos enxergar na diferença um caminho alternativo; seguimos apenas o caminho já pavimentado, por parecer mais seguro. E morre assim dentro de nós a capacidade de escuta da alma – da própria e da do outro.

A cura da criança ferida depende de uma entrega confiante, fora dos parâmetros normóticos. É não taxar o sentir como ridículo, arriscar a metáfora como forma de explicar o mundo. Trocar a dita realidade pelo “faz de conta” – assim como acontecem nas fábulas e histórias infantis.

E isso não é devaneio de um analista romântico. É a compreensão de que, no mundo interior, as coisas obedecem um desenho muito particular, e bem pouco lógico. Nossa realidade psíquica é feita de imagens e emoções, e não de conceitos rígidos. Querer enquadrá-la numa realidade cartesiana é envelhecer antes do tempo. Sem amadurecer.

Daí viramos arremedos, adultos caricatos, em busca de referências do que é adequado. Agimos como crianças chatas, que querem imitar adultos mas não sabem brincar com seus semelhantes. E que não se sentem confortáveis quando a vida pede espontaneidade.

Crianças são divinais justamente por encontrarem na simplicidade das coisas respostas para grandes mistérios da vida. Cobrem os olhos para fazer sumir os grandes monstros. Partem para outra quando um plano não dá certo. Transformam-se em qualquer coisa, sem temer uma irreversibilidade do desejo. Veem mágica em cada gesto, em cada palavra, em cada troca.

Outras Ondas – Como os nossos pais (2)


Ao escrever sobre pais e filhos na última semana, percebi o quanto nos sentimos despreparados para questionar as questões parentais. Recebi um apoio especial das mães, que se assumiram inseguras na lida com o legado familiar, com o trato da cria. Mas também recebi cobranças de filhos, que sofrem com a dificuldade de desvinculação dos papeis herdados – e principalmente das expectativas projetadas. Sou filho, mas não sou pai. E, por essa razão, esse novo texto ganha um tom mais desafiador, pela exposição que ele proporciona. Agora, falo sobre aquilo que sei – não pelo que li, investiguei ou presenciei, mas também pelo que vivo.

Todo filho nasce com um script predefinido. Mesmo entre aqueles que se propõem ser os mais liberais dos pais, os mais respeitosos às opiniões do novo ser que surge. Gostos, aspirações, um futuro brilhante: tudo sob a óptica dos pais, da família, da sociedade. Essa influência desponta na consciência da gravidez, e não se encerra enquanto há vida – e, se há uma crença na continuação do espírito pós-morte, nem mesmo do lado de lá estaremos livres de atribuições, como zelar pelos que ficam. O problema é quando, passado algum tempo de vida, percebe-se que o papel definido para aquele novo indivíduo não casa com sua alma.

O tempo ensina que é melhor mesmo que tais expectativas não correspondam. Filhos que seguem fielmente à idealização dos pais sofrem de um mal crônico: não se sentem integrados, acham a vida esvaziada de propósitos, enxergam-se como personagens secundários da própria história. Lutam de uma forma desleal contra uma verdade que só existe na mente dos pais. E, em geral, são corroídos por uma dificuldade imensa para manter a tal aprovação adquirida à custa da negação da própria vida. Quando reagem de forma diferente do programado, sentem-se errados, culpados, ressentidos, ingratos. Nos lares regidos por essa lei, em geral aprende-se desde cedo que a melhor forma de honrar todos os sacrifícios vivenciados pelos pais é acatando-lhes as opiniões, minimizando qualquer possibilidade de atritos.

A questão é que muitos dos pais que transmitem à cria essa opinião buscam reparar as frustrações da própria vida não-vivida. Eles também foram filhos e, provavelmente, sentiram-se impedidos de ganhar formas próprias – optaram ou foram tangidos a seguir o velho modelo, no qual hierarquia se confunde com opressão. Nesse molde, a culpa e a vitimização se transformam em um vínculo inoxidável: ganchos que impedem o desenvolvimento natural da individualidade dos filhos. Inconscientemente dizem: a liberdade que eu não tive, vocês também não terão. A inveja é dissimulada perversamente pelo excesso de zelo, ou por uma sabedoria infinita – mas pouco tangível pelos fatos, ilógica para o contexto.

Muitos, condicionados pelas “melhores intenções”, se esforçam para impor aos filhos uma série de “oportunidades” que lhe foram negadas. Mas pouco escutam sobre as verdadeiras demandas que brotam da descendência: atenção, para substituir o dinheiro; afeto, em vez de cursos e intercâmbios; respeito, no lugar de limites preconceituosos. Tudo seria mais fácil se percebessem que o melhor legado que podem deixar aos filhos é a vida bem-vivida que conseguiram ter.

Aos filhos, resta a difícil tarefa de ressignificar a relação parental. Prefiro essa reelaboração ao “matar” freudiano, a meu ver uma tarefa impossível: o espaço ocupado pelos pais na psique é privilegiado demais para que simplesmente “percam a vida”, ou seja, o poder de nos influenciar. No entanto, as imagos materna e paterna podem se transformar na medida em que nos aproximemos da nossa essência, a partir do autoconhecimento. Percebemos as razões que os motivam a ser dessa ou daquela forma.

Mais seguros do que somos, conseguimos manter uma distância segura das idealizações que nos são projetadas. Não precisamos mais de uma identificação com elas para que nos sintamos validados no mundo. Nem mesmo para transmitir o respeito e o amor que sentimos pelos pais. Num primeiro momento, eles podem torcer o nariz, ao perceber no que nos transformamos. Mas internamente terão a sensação de dever cumprido: a prole está preparada para lutar pela própria felicidade.

Outras Ondas – Como os nossos pais (1)

A culpa é da mãe. E do pai. O exercício analítico é tentador nesse aspecto. Basta adentrar no campo das memórias de um indivíduo para que esses personagens não tardem a aparecer, com grande capacidade de influência sobre comportamentos, crenças e fantasias. Há casas com pai demais, há casas com pai de menos. Há mães-Medéias, que devoram a cria em nome do ciúme e da vingança. Noutras, Virgens-Marias se sacrificam diariamente para garantir a felicidade dos filhos – e, quase sempre, expõem no futuro as chagas do sacrifício, sem nenhuma piedade.

De certo, as figuras parentais (ou a ausência delas) são peças imprescindíveis para o desenvolvimento da personalidade de um indivíduo. Podem influenciar positiva ou negativamente, despertando assim o impulso de identificação ou de negação. A mãe nos ensina a capacidade de estabelecermos vínculos e relacionamentos. O pai, por sua vez, fortalece a nossa postura de autossuficiência diante do mundo. Quando desempenham seus papeis de forma equilibrada, nos proporcionam a chave do bom senso: saber manter-se como referencial diante da vida (egocentrismo), sem que percamos a impessoalidade diante de nosso semelhante.

No entanto, pais e mães são resultados de outros pais e outras mães, em sucessão. Infelizmente, para esse ofício não há um manual, nem uma prova de habilidades específicas, que garanta o exercício da atividade de forma segura, minimizando as possibilidades de erro. Na contestadora fase da adolescência, os filhos costumam ter um pensamento que os rege: quando eu tiver meus filhos, farei tudo diferente. Carregam esse lema consigo numa boa, até que ouvem o primeiro choro do bebê. Daí entendem que a insegurança é uma atribuição inerente à paternidade e à maternidade. E ficam em busca da hora certa de repreender, de ser conivente, de admitir as próprias falhas, de vencer o cansaço pelo dever de demonstrar o tal amor incondicional…

Quando estamos dirigindo, é natural que façamos trajetos já conhecidos quando nos vemos em uma situação de vulnerabilidade ou pressão. Não seria diferente quando o assunto é lidar com os filhos. No consultório, já ouvi de muitas mulheres aflitas: “era como se minha mãe estivesse falando pela minha boca”. Confessam isso como se tivessem sido mediunizadas por algum demônio. Busco dar-lhes o conforto da aceitação: você repetiu os dizeres da sua mãe pois, com ela, aprendeu que essa seria a forma mais pertinente para o viver bem. E o que é viver bem? Afastar o sofrimento de si e de quem amamos. E como fazer isso? Infelizmente, isso é impossível de conceituar. Não há fórmulas preconcebidas, é tudo uma questão de tentativas recorrentes, que oscilam entre acerto e erro.

 No entanto, não estimulo uma crença de sina familiar, que se propaga por gerações a fio. Creio na transformação, na melhora, no depuro. Mas sei, e não escondo de ninguém, o quanto isso é difícil de ser praticado. A mudança de um paradigma herdado é algo que nos custa o enfrentamento dessa família. A convicção só desponta com o amadurecimento, e, para chegar lá, o primeiro passo é a aceitação da falibilidade: você será importante, mas não cabe a si toda a responsabilidade pelo sucesso dos seus filhos.

 Para diminuir a cobrança da perfeição, um bom exercício é de voltar a se enxergar como filha(o): ver o que mudou com o tempo na relação parental, quais condenações foram atenuadas, como certas palavras e gestos dos pais interferiram no que você é. Distribua desculpas: ao pai, à mãe, a você. Cada um exerceu aquilo que, por força das circunstâncias ou dos limites da visão, parecia ser o melhor. Ou, no mínimo, o possível para o momento.

(continua)

Outras Ondas* – Deus para baixinhos 2: guerra santa

Se para alguns casais a dúvida é saber se devem ou não inserir os filhos num contexto religioso, para outros o problema é o excesso de Deus. Como nortear a educação quando os cônjuges seguem tradições religiosas diferentes? O que fazer para que cada um possa manter sua crença, sem gerar nos pequenos um desconforto?

Em primeiro lugar, esse fato não deve ser encarado como um problema. É justamente o contrário. Esse pode ser um ótimo caminho para ensinar à criança os valores da diversidade. No entanto, para ter êxito, ele dependerá da dedicação e do respeito mútuo entre os pais. Cada um precisará manter uma atitude de fé nas próprias crenças, mas também tolerar aquilo que o outro acredita. Podem, inclusive, propor um revezamento nas visitas entre os templos, como forma de ensinar ao filho os valores de cada religião.

É importante ressaltar que o ato de apresentar a criança a Deus deve ir além de uma competição religiosa: a grande finalidade para este encontro é despertar valores éticos e existenciais, que as religiões naturalmente ensinam. Para a criança, deve resultar a lição de que o mais importante é ter fé, e que as religiões são diferentes “escolas” onde esse exercício pode ser praticado. Deus será apresentado como um ser único, mas que se manifesta em diferentes lugares, com diferentes nomes e formas de culto.

Como nem sempre a civilidade é suficiente para manter um acordo como esse, os pais devem manter a atenção para um diálogo coerente, jamais pautado pela competição ou pela depreciação da crença alheia. Uma boa saída é não trazer a temática de forma ostensiva aos pequenos – “Deus” demais também pode fazer mal. Deixe que as crianças possam se interessar pela crença do pai ou da mãe de forma natural, espontânea. Se isso ocorrer, o outro cônjuge deve respeitar essa decisão com maturidade. O embasamento ético e a fé soam mais importantes que qualquer dogma religioso. O proselitismo não é uma boa prática, principalmente no ambiente familiar, na educação dos filhos.

Sem o devido equilíbrio, o discurso poderá desencadear prejuízos psíquicos para a criança. Obviamente, isso dependerá da proporção que o tema tem para a família. O ato de depreciar a crença do companheiro ou companheira, por exemplo, poderá gerar uma alienação de valores parentais – com interferências não somente na escolha religiosa, mas em todo o referencial materno-paterno que o filho carregará para o resto da vida. Na consciência pouco desenvolvida da criança, ela pode interpretar que o pai “faz coisas erradas” ou cultua algo que “não é de Deus”. Isso fica ainda mais grave quando as religiões em questão estabelecem em seus cultos, um discurso de rivalidade diante das demais. Dar à criança valores religiosos é bem diferente de querer condicioná-las a seguir uma religião de forma fanática ou comprometedora.

É mais raro, mas também pode acontecer de a criança se encantar por uma religião alheia à seguida pelo pai ou pela mãe. Em geral, isso se dá por uma questão de afinidade por alguém que adote tal prática religiosa. Tal questão não deve ser tratada como um problema. Tudo deverá ser resolvido a partir do diálogo franco. Se a nova religião trouxer incômodo aos pais, isso deverá ser tratado com respeito, e não com excesso de autoridade. Rechaçar a ideia simplesmente, sem apresentar uma argumentação coerente pode sugerir uma postura de insegurança diante daquilo que acredita. Mais válido é buscar conhecer essa nova religião com livros, visitas a templos etc. E principalmente buscar entender as motivações que despertaram a curiosidade da criança para determinada crença. Assim, os filhos poderão ter informações para saber se aquele apreço inicial corresponde à realidade do culto.

O tema não deve ser tratado como um tabu pelo casal. O acordo comum deverá prevalecer. A lógica diz que, para manter a harmonia, o casal precisa afastar a intransigência diante das diferenças que cada um carrega. Seja ela religiosa, política, ideológica… O diálogo direto deve substituir a insinuação. É importante discutir como o respeito às diferenças será transmitido aos filhos no cotidiano, em gestos práticos. Nessas horas, o mais espiritualizado (não necessariamente o mais religioso) costuma ceder, por entender que a prática nos templos é apenas uma parte do processo de evolução. O dogma deve ser transcendido pelo amor, pela fé e pelo respeito – valores universais que traduzem a verdadeira espiritualidade.

nivas gallo