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Psique: Estar bem não é uma obrigação. Compreender isso é amar

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julieta

Fui assistir na segunda-feira ao filme “Julieta” (na foto acima), de Almodóvar. Ele é sempre um prato cheio para quem gosta de explorar as questões do psiquismo. Mas desta vez a coisa não vem como sempre, com o surrealismo das “cores de Almodóvar”, como diria a Calcanhotto. Vem de forma sutil, comum. Vem de uma forma tão direta, tão imediata, tão real.

Não pesquisei para saber de onde partiu a inspiração da obra, nem de qual fragmento de história ela fala. Não foi necessário. A arte de Almodóvar fala daquilo que me chega todo dia à porta, algumas vezes por dia. Entram no meu consultório diversas Julietas, que, por diversos motivos, abandonaram-se.

Depressão, culpa, expectativas familiares, heranças malditas. Vidas transferidas em prioridades alheias. Silêncios, muitos silêncios. Temas que já apareceram por aqui, nesta coluna. Outras que ainda não se apresentaram, mas que chegarão no momento oportuno.

Quando é esse momento? Quando consigo penetrar neles, come-los, deixar-me invadir por eles. Daí eles me inquietam, perturbam, desassossegam. E daí nasce um texto.

Flexibilidade
Foi assim ao assistir Julieta. A meu ver, a história trata da compaixão. Da mais difícil das compaixões. A que precisamos ter com quem, por motivos de força maior, não nos partilhou sua realidade. Na maioria das vezes, para nos poupar daquilo que são, somos – das misérias que nos corroem.

Acreditamos, injustamente, que o outro deve ter a nossa medida. Ignoramos, de forma egoísta e cruel, as circunstâncias. Dizemo-nos acolhedores, mas só damos pouso àqueles que se deixam moldar a nosso gosto.

Assim como no mito grego de Procusto, que adaptava os hóspedes à sua cama de ferro: quando altos, cortava-lhes o excesso para que coubessem no móvel; quando menores, esticava-lhes o corpo até que a ocupassem inteira.

Somos mais rigorosos que a própria realidade (que já não é mole) e assoberbamos o outro com cobranças do que ele deveria ser. Sem antes percebermos o fardo de serem quem são. Muitas vezes, a crueza da vida é a única medida que encontramos para dar limite a esse olhar severo. “Agora eu sei o que você passou”, fala o nosso constrangimento. Às vezes redime. Em outras, é tarde demais.

A vida negada
Só experimentamos o verdadeiro amor quando, mesmo que com muita dificuldade, conseguimos ir além das nossas expectativas e suportamos o outro da forma como ele verdadeiramente é. Confundimos ausência com maldade: achamos que o outro não nos entrega o que julgamos sermos merecedores. Quando, de fato, ele não tem a dar. Nem para si próprio.

O histórico familiar de depressão que o filme apresenta poderia ser simplesmente explicado por fatores biológicos sucessivos, transmitidos por algum gene. Mas a hereditariedade melancólica de Julieta decorre do convívio com a ausência, com o medo do abandono, com a incapacidade de estabelecer uma relação simpática com o outro.

Mais uma vez, o epicentro da dor está na relação. A incapacidade de perceber o outro em suas necessidades. De respeitar-lhe o silêncio, percebendo o que é dito em cada respiração. De entender, no recolhimento do desejo, a necessidade de uma alma, que rompe espaços nas cascas rijas da moral para se fazer brotar. De pressupor que do lado de lá é tão difícil como é do lado de cá.

Psique: Nutrir uma imaginação tóxica é limitar as chances de uma vida melhor

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Man followed by ideas

Ah, a nossa cabecinha… A ela, tudo devemos. Nela, entretanto, encontramos nossa perdição. A capacidade de produzir realidades irreais é o grande trunfo do homem. Poderia ser o mote de compreensão para tudo aquilo que é intangível – como acontece no campo das artes. Mas, quase sempre, optamos pelo esporte: o esforço para mostrar a capacidade que temos de ir além daqueles que elegemos como oponentes.

Nisso, falas ganham interpretações. Silêncios também. Desconfiamos, argumentamos, brigamos e fazemos as pazes – tudo isso somente ali, solitariamente, da santa cabecinha. Assim construímos mitos entre nossos semelhantes, engrandecendo-os. E condenamos os que surgem como opositores. Criamos, criamos muito. E não nos damos conta do peso das nossas fantasias.

Silêncio gritante
Elas não estão ali por acaso. Quando associamos uma determinada crença a um determinado contexto, e dali tecemos prospecções, buscamos dar algum sentido àquilo que nos surpreende. Temos uma dificuldade imensa de suportar o que não tem explicação – para atenuar essa angústia, fabricamos pressupostos, alegações, justificativas.

O mais absurdo é que, muitas vezes, produzimos mais provas para a condenação que para a absolvição. De nós mesmos, inclusive. As vozes da imaginação podem ser tiranas, impiedosas. Levam-nos aos nossos mais brutais cenários, os filmes de terror que mais tememos vivenciar.

E assim, para evitar o sofrimento, antevemos finalizações. Apressamo-nos diante do destino, que quase nunca se efetiva da forma imaginada. Vou jogar isso fora antes que nos gere problemas, pensamos. E assim nos livramos das oportunidades que tanto ansiamos, antes mesmo que elas gerem efeitos, positivos ou negativos.

Ou seja, tornamo-nos ao mesmo tempo o bebê no berço e a fada ingrata, que o amaldiçoa. Garimpamos ricos fatos que validem essas histórias. E esquivamos da pergunta, toda vez que ela se apresenta: você gostaria realmente que tudo isso fosse diferente?

Costumes nocivos
Nossa imaginação tem uma terrível aliada: o comodismo, uma preguiça para desconstruir realidades. Nossa pauta tende a acompanhar o já vivenciado, visualizado, temido. Estamos acostumados com nossas dores, e tememos que as próximas doam mais, ou doam de forma diferente. Tudo isso nos acovarda, e assim evitamos ter por medo de perder – eis o contrassenso: como perder o que já não temos?

De fato, só nos temos a nós próprios nesta vida. E isso, para muitos, é muito pouco. Imaginamos francamente redutos exteriores de felicidade. Sabemos bem dos nossos inimigos, declarados e inconfessos. Superestimamos o poder que têm sobre nós, enquanto nos vemos fracos e indefesos.

O mau pensamento age como veneno de aranha. Se não for inoculado em tempo hábil, corrói de dentro para fora. O mundo só sinalizará uma destruição já concretizada, e só poderá agir com aqueles que aceitam antídotos.

Há, porém, aquele que aprendeu a viver intoxicado, cujo sangue depende do veneno para circular. Mas que, devido à própria peçonha, esteriliza outras peçonhas. Seria injusto querer livrá-lo da única forma que encontraram de defesa.

Psique: Quando o problema vira hábito

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City Lights series. Design composed of technological fractal textures as a metaphor on the subject of science, technology, design and imagination

Às vezes a vida parece querer nos castigar. Fazemos o possível para evitar uma determinada situação que já nos gerou incômodo, sofrimento. E, quando viramos a esquina, deparamo-nos novamente com a mesma coisa. Parece até que só trocaram o cenário e os atores, mas o drama e os personagens são os mesmos. Antes de maldizer destino, tente entender o que se passa em você.

“Até você se tornar consciente, o inconsciente irá dirigir sua vida e você vai chamá-lo de destino.” A sentença, proferida por Jung, nos auxilia a entender a dinâmica desse mecanismo. Tudo que se repete em nossa história tem algo de importante para nos dizer – especialmente sobre nossa natureza mais íntima.

Vale saber como as coisas funcionam na nossa psique. Em geral, tentamos assimilar aquilo o que vivenciamos, como uma experiência completa. Ou seja, buscamos associar a cena, o ocorrido, às emoções por eles evocadas, e, ao final, encontrar um sentido que valide o conjunto.

Somos todos traumatizados
Mas nem sempre é possível. Alguns acontecimentos são mais intensos que a nossa capacidade de processá-los na consciência – mobilizam uma carga emocional maior do que conseguimos suportar. Daí, em vez de reunir todo o conteúdo numa experiência, as emoções e imagens que transbordam se acomodam em diferentes partes do inconsciente, de forma dissociada. É o que chamamos de trauma.

No entanto, a psique tenderá a querer sanar essa dissociação. Ela buscará novas vivências, com agentes e emoções semelhantes aos da original, para promover uma unificação desse conteúdo.

A cada repetição, temos uma oportunidade de ressignificar, dar um novo sentido àquilo que não foi devidamente elaborado num primeiro momento. É chato, mas é o mal necessário para cessar o incômodo gerado pelo trauma. As peças precisam ganhar encaixe para sossegarmos.

Repetimos para aprender
Não é tão grave como parece – na verdade, é mais comum do que se pode imaginar. Lidamos com essa dinâmica inúmeras vezes ao longo da vida. E, com ela, desenvolvemos nossa capacidade de lidar com as adversidades.

Um bom exemplo é o que se dá com as crianças, quando elegem a historinha da vez. Repetem mil vezes, sem cansar. Sabem todas as falas, emburram quando tentamos tapeá-las pulando um trecho. Eis que num dia qualquer, elas simplesmente desgostam e partem para a próxima.

Crescemos, e substituímos os contos pelas relações. Ou seja, perdemos a capacidade de aprender pelo simbólico para encarnarmos, na realidade concreta, os dramas que não conseguimos superar. E repetimos, exaustivamente, até que uma das repetições seja a última: quando alcançamos um novo sentido, vira-se a página.

E o que fazer para passar à próxima lição? Entenda, em primeiro lugar, que compreender não é corrigir. Os caminhos percorridos jamais se apagarão. Superar um tema traumático é deixá-lo virar passado – se ainda se repete, ele nunca saiu do presente.

Depois, exercite um olhar diferente, perceba a mesma questão por outras perspectivas. Perdoe-se, afinal não é justo se punir por não ter conseguido fazer diferente. Isso seria comprar um problema extra para administrar. E agradeça: o que parece ser uma condenação é o seu caminho para libertar-se.

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Psique: Não foi isso que eu quis dizer

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desentendimento

Temos 26 letras para compor palavras. A última versão do mais popular dicionário brasileiro lista cerca de 500 mil palavras em língua portuguesa. Hoje, estima-se que esse número passe de 600 mil. Temos emoticons, que sintetizam em imagens simples um bocado das coisas que queremos dizer. Tudo isso fora o olhar, a entonação, a pausa, os sinais de pontuação. Não faltam recursos de expressão, e ainda optamos pela saída mais perigosa: o subentendido.

Em geral, a boca se cala para não magoar. Acha que, ao falar, gerará no outro a resposta do afastamento, da tristeza, do sofrimento. Teme perder o bem-estar que, muitas vezes, já não tem. Ou então não diz para não se expor. Não quer comprometer-se com a realidade que se apresenta. Não quer ter de responder pelas repercussões que ressoarão a partir daí.

Enquanto a boca se fecha, uma porta nefasta se abre. Dela, escapam três males. O primeiro é a maledicência. Quando o outro não se pronuncia, muitas vezes nos vemos no direito de definir por ele. E daí damos a nossa versão da história. Sustentamos como se fosse absoluta – por mais que me atenda, não temos esse direito. E, com isso, propagamos uma onda negativa, errada, que não esclarece. Justamente o contrário: turva ainda mais o conflito, dificulta a solução.

Omissão e abuso
Quando o silêncio é nosso, a porta se abre novamente. Damos espaço para a malícia, municiamos o outro com a capacidade de intervir, maleficamente, sobre nós. Omitir é viabilizar o abuso, a intromissão, a permissividade. Fazer isso é mostrar que não gostamos de quem somos, ou que não estamos convictos das nossas escolhas.

Por último, o mais comum e mais perturbador dos males: o mal-entendido. Um berra em grego, e ignora que o outro só fala latim. O desentendimento aparece quando não se sabe conciliar as linguagens individuais, mesmo que se concorde com o teor do que é discutido. “Não era isso que eu queria dizer.” Só falamos isso quando, na verdade, fomos econômicos demais na nossa tentativa de transmitir ao outro o que se passa na mente e no coração.

Daí cada um interpreta o silêncio a partir do seu repertório de vida. E, geralmente, nessas horas são as cicatrizes que conduzem as sinapses: as memórias das dores, as decepções sofridas, as ausências com as quais se conviveu. Não usamos a venda da justiça para a situação. Olhamos com os velhos olhos, que estão viciados em enxergar de uma determinada forma.

Silêncio de ouro
Por essa razão, devemos lembrar sempre que somos parcialmente responsáveis pelo que dizemos, mas jamais teremos certeza sobre o que o outro entenderá. Falo em responsabilidade parcial pois, na dinâmica psíquica, a consciência é sempre menor diante das forças que emanam do inconsciente. Mas não vale usar esse argumento para tentar desdizer, ou justificar o silêncio: é nosso dever manter a gerência dos nossos atos.

Toda comunicação depende de argumentos, e argumentar é uma arte que se inicia com a escuta. Não adianta querer impor a sua verdade se não souber cerrar os lábios enquanto a do outro se apresenta. Esse, sim, é o silêncio de ouro. Escutar é o que nos pluraliza os idiomas emocionais, que serão úteis conversas mais difíceis. Aí fica fácil entender o provérbio que diz que a verdade cabe em qualquer lugar. E cabe mesmo. Por mais dura que seja, ela envenena menos que qualquer ilusão.

Psique: As maldições do futuro

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Abstract interplay of clock symbols and graphic elements on the subject of time, technology, past, present and future.

O mundo se organiza de forma horizontal, invariavelmente estamos submetidos a escalas e hierarquias. Mas se tem algo justo de verdade, que nos iguala a todos, essa coisa é o tempo. Não há queixa que o acelere, nem desejo que o faça passar mais devagar. Estamos todos submetidos à implacável lei dos ponteiros.

A vida ocorre a partir de um ritmo próprio. Assim como na natureza, tudo segue um fluxo contínuo – não há saltos para marcar a transposição do tempo, tudo se dá em processo. No entanto, para dar conta do ordenamento dos acontecimentos, o homem convencionou uma divisão entre passado, presente e futuro. E é justamente a consciência de um futuro que complica as coisas.

Sempre que olhamos para frente, chamamos para perto duas companhias malditas: medo e ansiedade. O primeiro é um mal necessário à sobrevivência. Quando tememos algo que se aproxima, o que fazemos internamente é uma avaliação dos nossos recursos, para sabermos se estamos aptos para enfrentar ou fugir. Isso é instintivo, nos acompanha desde os nossos ancestrais mais remotos.

No entanto, a maior parte dos nossos medos vai além da proteção natural do instinto. Fala dos fantasmas que criamos para nos atormentar: tendemos a enxergar a vida mais complicada do que de fato é, pois nos acostumamos a medir nossa capacidade por baixo. Sempre que subestimo minha capacidade de transpor problemas, construo pontes longas e sinuosas para percorrer curtas distâncias. Medo paralisa, faz hesitar, adia decisões.

Outros, ao fantasiar sobre os fatos que se aproximam, acabam dominados por uma mescla de emoções, que compõem a ansiedade: impaciência, aflição, insegurança, precipitação. Assumem um estado de predisposição para reagir, mesmo que o momento não permita nenhum tipo de atitude.

E é justamente por isso que o quadro é tão sofrido: enquanto o objeto que deflagra o medo é delimitado, pontual, a ansiedade é difusa. Ela é como um carro de corrida com o acelerador pressionado, em frente ao ponto de partida, só que sem saber qual trajeto deve percorrer. A energia desprendida afeta intensamente a psique e o corpo. Essa é a porta para o estresse e, consequentemente, para o adoecimento.

Só sofremos tanto por esses fatores porque insistimos em querer manter um controle da situação. Não nos conformamos com a inevitável realidade: por mais que eu queira intervir no futuro, ele ocorrerá em decorrência de uma série de fatores. E grande parte deles não está sob nossa batuta.

Além disso, nos esquecemos de algo elementar: nosso amanhã será consequência do nosso hoje. Mais importante que uma prospecção bem feita é uma avaliação criteriosa do que somos agora. Confiar também faz um bem danado. Em si, nos outros, em Deus. Ter fé não é alimentar uma esperança vã de resolução instantânea dos problemas, livre de esforços. É apostar na nossa capacidade de transformação, e estar disposto a servi-la. Quando alcançamos esse estágio, tudo flui para um futuro bendito.

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