A próxima terça-feira será previsível para muitos: um dia de silêncio e orações, com a chuva miúda batendo na janela. Ano após ano, esta é a aura que envolve o dia de Finados, feriado cristão de préstimos aos mortos. Há quem prefira homenageá-los com velas e flores no cemitério. Outros oferecem somente preces e lembranças. Em comum, todos marcam a data com o recolhimento. Talvez pela dificuldade que temos em lidar com o tema: tão questionador à própria existência, tão delator de nossas vulnerabilidades.
O 2 de novembro foi designado como o dia de reverenciá-los no século 13, pela liderança da Igreja Católica, em virtude do Dia de Todos os Santos, comemorado na véspera. Primeiro se celebra aqueles que ascenderam aos céus pelos feitos na Terra e, em seguida, roga-se para que intercedam pelas almas dos pecadores.
Ao menos uma vez por ano, somos obrigados a encarar o poder absoluto da morte. Julgada como cruel, indolente e impiedosa, ela nos surge com sua face obscura e temida. Revela como certos valores não resistem à degradação imposta pelo tempo. Biologicamente, morrer é a simples cessão dos elementos vitais do corpo. Subjetivamente, é a exposição e a avaliação dos legados construídos e posturas adotadas em vida. O desenlace não é difícil. Complicado é encarar o fim e saber que, a partir de então, não há mais como mudar a imagem moldada dia após dia. Ou pior: é o medo de ser esquecido, mesmo diante de tantos esforços. Enxergamos como declínio da vida, e não como uma conclusão. Refletir sobre isso é a ocupação das filosofias e orientações religiosas. Platão já designava o conhecimento filosófico como um ensaio para a morte.
Temos nela a única certeza humana, e de essa consciência nos diferencia dos outros animais. Mesmo assim, não conseguimos superá-los com a racionalidade. Enquanto os bichos vivem o fim de forma natural, resistimos a aceitar essa finitude e tentamos driblá-la com a medicina – ignorando, até mesmo, os limites da dignidade quando submetemos entes mais queridos às massacrantes máquinas mantenedoras da vida. Relutamos a aprender a lidar com o inevitável. A dor de morrer é pequena. Grande é a dor imposta pelo desapego dos que ficam, pela adaptação necessária para se manterem neste mundo. O temor é tamanho que sequer falamos sobre o assunto. Falar em morte é chamar a morte, mau agouro.
Na cultura oriental, o culto corriqueiro aos ancestrais é uma forma equilibrada de lidar com essa dor. Nas casas, é comum encontrar um pequeno altar com fotografias e objetos de antepassados, acompanhados por velas, incensos e frutas. No respeito demonstrado com o ritual, querem evidenciar a crença na perpetuidade do espírito: o ente deixa o corpo, mas não deixa o seio familiar. No México também encontramos o dia de Finados como momento de comemoração. Túmulos são enfeitados com cores em excesso. Comidas se espalham entre sepulturas e fazem fartas as mesas das famílias. Crianças disputam guloseimas em formato de lápides e crânios. Um choque para todos nós, brasileiros, que normalmente fazemos questão de manter uma boa distância dos nossos mortos.
Também vem do México uma curiosa crença. Um dos símbolos do catolicismo popular do país é o culto à Santa Muerte. Lá, em vez de algoz, a morte é tida como uma intercessora, capaz de realizar pedidos, digna de veneração. A imagem é tétrica: uma mescla de esqueleto e Virgem Maria, com uma foice em uma das mãos e uma balança na outra. A ela são oferecidos flores, velas, bebidas alcoólicas e fumo. Apesar de reprimida pela Igreja Católica, a adoração desperta grandes festas e ocupa capelas espalhadas por diferentes cidades.
Por aqui, temos no espiritismo e nas religiões de matriz africana manifestações de um diálogo mais franco com a morte. No primeiro, pela crença da perpetuidade do espírito, comprovada pela comunicação deles com o mundo dos vivos. No linguajar dos espíritas, o “desencarne” não representa o fim, e sim uma interpretação de liberdade do corpo físico. No candomblé, os antepassados são reverenciados pelos adeptos na cerimônia do axexê, que só se completa 21 anos depois da data do óbito. Na religião, a grande senhora pode ser chamada de Iku ou Nanã Buruku – é a grande mãe terra, que recolhe os filhos ao ventre de onde foram gerados.
Entre os cristãos, é preciso lembrar que a missão de Jesus só se completou ao privar-se a vida, como qualquer homem. E foi nesse momento em que ele duvidou e sentiu medo: mas nem a santidade que lhe revestia foi capaz de poupá-lo de seu martírio.
Quando resistimos à ideia da morte não percebemos que ela é fundamental à existência. E é justamente essa a mensagem que ela nos ensina a partir do arcano número 13 do tarot. Quando esta carta nos chega, é sinal de que devemos provocar (ou aceitar) as mudanças propostas pela vida, mesmo que, para isso, seja preciso ceifar certezas vãs – certamente elas não serão mais úteis para nossa trajetória. James Hillman, psicólogo e analista junguiano, enxerga no sono uma contrapartida simbólica ao morrer. A cada fechar de olhos para dormir, vivemos o crepúsculo de acontecimentos e a sensação de solidão de quem vislumbra o desfecho da vida. Também nos deparamos com esse símbolo a cada decisão, a cada reflexão, em todo momento que precisamos abrir mão de uma realidade em para conquistar algo novo. E só assim promovemos a renovação necessária. Morrer é aprender o valor das transformações.