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Psique: O valor da saudade

Crédito: Metrópoles
saudade

Uma pedrinha preta, com rajadas brancas, encontrada na beira-mar. Mais uma, quando comparada às demais. Mas não quando observada de perto. Difícil explicar, pois em suas características nada fugia ao normal na coloração, no formato.

Um ambulante, querendo ser simpático, garantiu que deveria ser fragmento de um coral negro que existe há mais de 170 metros de profundidade. Eu sabia que era para envaidecer. Era mais uma pedra, mas era incomum.

Dentro dela, cabia mais de 5 mil metros de distância. Ela era a pedra da saudade. Em seu brilho, reluzia um olhar. As curvas laterais tinham o desenho de um sorriso. Firme e escura, mas nada disso lhe tirava a leveza. Era delicada, como é delicado um novo amor.

O território da saudade é como essa pequena pedra. A preciosidade do que representa é, simplesmente, resultado do significado que a ela atribuímos. É frágil, pode se perder na areia infinita, se nao estivermos atentos. Sem o cuidado necessário, volta a se misturar com as coisas do mundo.

Guardar é valorar
Isso seria um desperdício de vida, uma vez que a saudade só se mostra quando estamos diante de algo único. Um amor, um sabor, um valor que gostaríamos que se perpetuasse em nossa convivência. Algo que, mesmo distante das mãos, se mantém intacto em minhas lembranças, dentro de mim.

Como qualquer emoção, a saudade tem uma função na nossa existência. Ela vem como um alerta importante. Se está ali, é sinal de que algo foi capaz de transformar positivamente a nossa realidade. Por essa razão, não existe saudade banal. Aquilo que muda meu caminho merece todas as reverências, deve receber o devido valor.

Tudo isso é bonito de se dizer, mas, vamos confessar: viver de saudade é muito ruim. Primeiro, porque tudo o que nos faz falta poderá, de fato, jamais se repetir. O medo é inerente à falta. Não queremos lidar com a possibilidade real de termos de enfrentar a ausência. Aperta o coração só de pensar.

Lembrar sem estacionar
Além disso, não podemos congelar a vida em nome daquilo que já não faz parte da realidade. Uma dose extra de nostalgia, do “era-feliz-e-nao-sabia”, pode destruir o broto de vida que quer despontar. Podemos deter a saudade de uma forma saudável, sem que esta sirva para inviabilizar as novas possibilidades. É preciso saber fechar o álbum de lembranças se desejamos que a vida tenha um significado.

Saudade. Impossível não repetir uma palavra tão bonita, de significado tão especial, em cada parágrafo. Seria incongruente com o significado desse texto. Afinal, ela nos remete ao insubstituível. Assim como o brilho de um olhar, a transparência de um sorriso, a força de um abraço. Tudo que, para mim, por dias, uma pequena pedra foi capaz de representar.

Psique: Nascemos para morrer. Por que é tão difícil lidar com o fim?

Crédito: Metrópoles

A dark tunnel with light at the end.

A vida se dá na tensão entre dois opostos complementares: o nascer e o morrer. Nós, humanos, nos diferenciamos dos demais animais por termos consciência disso. Filosoficamente, ainda ensaiamos respostas precisas para os grandes mistérios indecifráveis (o chavão do “quem somos, de onde viemos, para onde vamos”). Mas, na prática, temos que lidar com essa realidade. Nascemos para morrer, essa é a nossa única certeza.

Vemos essa história se repetir desde que brotou essa consciência, isso nos é transmitido geração após geração. Fica difícil pensar que ainda não tenhamos aprendido a lidar com o encerramento das fases. E, de fato, não aprendemos. Sofremos um bocado para lidar com o desapego, somos bem inseguros ao olhar para frente.

Não é de hoje que se pensa sobre esse tema. Cerca de 500 anos antes de Cristo, o filósofo grego Heráclito de Éfeso já discutia a questão. Sua citação mais popular nos diz que ninguém pode se banhar duas vezes no mesmo rio. A cena jamais se repetiria, pois a pessoa já não seria a mesma; as águas originais também já teriam passado.

Vida é trânsito
Impermanência é o nome bonito que usaram para definir isso. Em diversas filosofias orientais, é tida como uma lei suprema. Entretanto, na situação contemporânea, evidencia um novo paradoxo do tempo. Somos cobrados a lidar com a celeridade das coisas, que se superam a cada momento. Descartamos diversas coisas com muita facilidade. Mas, quando há afeto envolvido, não conseguimos abandonar o passado em nome do novo.

Mera tolice. O futuro virá, independentemente da resistência. O passado não se atualizará, mesmo que eu busque cultuar emoções que o evoquem. Vida é trânsito. O percurso é o que interessa, pois ele representa o agora, a única realidade que podemos deter.

E esse será o único determinismo aceito, caso queiramos ter bem-estar. Quando nos fixamos numa situação estanque, querendo perpetuá-la a qualquer custo, assumimos o risco do empobrecimento. Quando restringimos nosso horizonte, ao renegar o novo, transformamos nossa vida em uma coisa menor, menos interessante.

Transformações exigem perdas
Tudo na natureza se expressa por um ciclo, com começo, meio e fim. A energia de renovação, que nos revitaliza, só pode se manifestar quando se assume a contrapartida da perda. Se não cedemos, não podemos suprir carências.

Associar a substituição do velho pelo novo aponta para uma fantasia de desamparo: não conseguimos acreditar que o futuro poderá suprir nossas necessidades. Ou que teremos recursos suficientes para lidar com os desafios que lá se apresentarão.

Irmanamo-nos com os problemas, como quem divide a casa com alguém inconveniente. Reclamamos do que temos, mas não empreendemos esforços para mudar nosso universo. E ainda desacreditamos os acenos da transformação.

Da mesma forma, tentar perpetuar um momento ou relação é limitar a nossa capacidade de transformação. O que me contempla hoje poderá ser insuficiente logo em seguida. Por isso, fazer compromissos é diferente de fazer pactos. Não podemos levar tão a sério as promessas eternas, uma vez que o eterno só existe na nossa fantasia. Em suma, estando você diante da maior das graças ou da mais terrível aflição, saiba: isso também vai passar.

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Outras Ondas* – A dura vida agreste

“Falta muito?, perguntou Myra, no desvio do descampado deserto, agreste de árvores cinzas da madrugada, rebanhos de ovelhas e bois com a cabeça descida à terra ocre, de fome, de sono. Falta o que falta da história. E o Sr. Kleber sorriu. Não tenhas medo, miúda. Em todas as histórias há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fulgaz que seja.” (Maria Velho da Costa, Myra)

Sou filho de nordestinos que, felizmente, nunca passaram fome. Mas que a observaram de perto, durante a infância, em diversas situações. De certa forma, tenho um quê de aridez no sangue que me alimenta. Certamente, esse fator participou diretamente na escolha da minha atividade profissional. Enquanto terapeuta, trabalho com a tentativa diária de entender a força e a dor que a vida árida traz a cada ser.

A vida se torna árida sempre que nos percebemos com pouca ou nenhuma alternativa, quando vemos a esperança de sobrevivência em uma quantidade pouca de água salobra – bebida com a avidez de quem não pode ser negligente às oportunidades. Ela inspira palavras e gestos secos, pontiagudos e espinhentos como a vegetação da catinga e do cerrado. Folhagens duras, opacas e secas, que refletem a resistência de quem precisa sobreviver diante da restrição. A sábia adaptação transforma fauna e flora dessas regiões em vencedores, heróis por resistência diante da adversidade.

Resistentes, porém pouco maleáveis. A água é quem confere à natureza e também ao nosso mundo interior a plasticidade, a maleabilidade necessária para enfrentamentos com menos força e mais jeito. O árido confere a propriedade do recipiente que coleta, dá forma e contém a instabilidade dos líquidos. Mas são eles quem matam a sede, quem oferecem o acalanto necessário para propiciar a vida. No ambiente agreste, a água é a maior riqueza. A revolta que a sede provoca, por sua vez, pode induzir ao erro: tenta nos iludir, tirando-lhe a importância.

É quase uma ironia da natureza, mas quem apresenta couraças fortes de defesa, em geral, são povoados pela mais doce água. Assim como os mananciais mais puros se ocultam sob as mais grossas camadas de terra dura e pedras. O elemento, escasso na superfície, é abundante nas entranhas da terra. De lá, em raros momentos, brota o otimismo e a renovação, manifesta na solidariedade típica de quem sofre, na esperança de dias melhores.

Quando a seca é grande, o povo agreste se atemoriza. Não só pela morte da vida provocada pela falta de água, mas também porque a estiagem demorada aponta para um futuro impreciso: quando a chuva vier do céu, virá de forma torrencial, temerosa, inundante, desmedida. O flagelo se apresenta no muito e no quase nada. O sertanejo, precavido e temente, pede a clemência dos céus: traga, ó Deus, a medida certa – aquela que nutra, gere reserva, mas que não aumenta o meu sofrimento, que não endureçe a couraça que a vida já ofereceu.

O mundo moderno, asfaltado e concretado, transforma-nos em sertanejos de alma. Nos acostumamos com a pouca água dos afetos, saciamos nossa sede com prazeres vãos e, com o tempo, nem diferenciamos mais a água limpíssima daquela que simplesmente sacia a sede do momento. Nessa aridez do tempo e da competitividade, comparamo-nos, sem pensar, com animais que disputam uma cacimba rasa e suja, onde jaz a carcaça do companheiro-bicho que morreu antes de nós. Esquecemos de escolher uma árvore, mesmo que espinhenta, para sentar embaixo, descansar e refletir sobre as chances que esse cenário pode nos propiciar. Perdemos assim o melhor fruto que a aridez nos oferece: o amadurecimento, e não o embrutecimento.

nivas gallo