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Outras ondas – Os abusos contra Xuxa

Acabei de assistir uma longa e oportuna reportagem, veiculada pelo Jornal Nacional, sobre a declaração de Xuxa sobre o abuso sexual que sofreu. E vi, logo em seguida, uma série de críticas nas redes sociais por causa do espaço privilegiado, dado à apresentadora, pelo noticiário. Uma enxurrada semelhante à que lotou a internet desde a divulgação do depoimento: pessoas criticando a exposição, as associações com outros artistas e até mesmo o choro desaguado durante os relatos. A violência que a vitimizou, no entanto, ficou em segundo plano diante da imagem da artista.

Não foi a primeira vez que vimos o pouco caso com história semelhante. Há meses, a modelo e apresentadora Monique Evans narrou consequências danosas geradas pelo trauma do abuso. Igualmente, virou motivo de desdém. Por ter posado nua diversas vezes, e ter apresentado programas com temáticas sexuais, a história de Monique pouco chocou, quase nada mobilizou. Bem diferente de Oprah Winfrey, de Whitney Houston e outros nomes internacionais, que comoveram brasileiros com narrativas parecidas. Parece que, quando a história é brasileira, tais declarações soam mais como estratégia de marketing. E não como desabafo, como sinal de alerta aos demais.

A violência vivida por Xuxa não a difere de ninguém que tenha sofrido o abuso sexual. O dano provocado pela vivência é tão complexo e abrangente que, nos tratados internacionais de psiquiatria, os sintomas desencadeados são comparados aos quadros de distúrbio de estresse pós-traumático – sim, o mesmo vivido por sobreviventes de guerras. O dano é inquestionável e inevitável: marcará para sempre a relação que a vítima terá com a autoimagem e com os relacionamentos que estabelece com o mundo. A iniciação precoce e violenta poderá levar o indivíduo a repetir a dinâmica do abuso em diferentes instâncias: não só no campo sexual, tornando-se presa fácil para outros abusadores, mas também em outros campos da vida, nos quais será vulnerável a atitudes abusivas – seja por chefes, parentes, filhos… A vítima poderá ter dificuldade para criar vínculos de confiança, além de uma relação conturbada com o poder.

Mantendo-se nessa mesma dinâmica psicoafetiva do abuso, a vítima poderá também associar-se ao papel do abusador, buscando, ao se impor sobre alguém mais vulnerável que si, uma tentativa de reparação do dano que lhe foi provocado. É uma transferência de valores distorcidos, muitas vezes praticado de forma compulsiva. No caso de Xuxa, uma das associações perversas feitas por algumas pessoas é a da história do filme Amor, estranho amor, ainda antes de adquirir a fama. Na obra, ela, já adulta, se envolve sexualmente com um pré-adolescente. Houve quem associasse o personagem, de forma torpe, ao depoimento de Xuxa – como se tratasse de uma desforra.

É triste perceber que, na nossa mentalidade retrógrada, a vítima de crimes sexuais (seja o abuso infantojuvenil, seja o estupro) ainda é muitas vezes associada a uma certa participação no ato. É como se tivesse provocado a violência. Xuxa, ou qualquer outra pessoa abusada, teria de receber o respeito dos demais ao decidir por tal declaração. O mais interessante de todo esse processo é que, do que percebi, a maioria das críticas partiu de pessoas que invariavelmente foram influenciadas na infância pela nave rosa, pelo ilariê, que desejavam o momento mágico do “pra minha mãe, pro meu pai, pra você”.

O silêncio de Xuxa precisava ter um fim, no mínimo em gratidão à notoriedade e riqueza que lhe foi proporcionado pelas crianças. Xuxa prestou o seu maior serviço ao dizer o que sofreu, como se sentiu, como agiam os abusadores. Tentou, assim, encorajar diversas outras mães, algumas também vitimizadas na infância e adolescência, a romper com o pacto perverso da conivência. Não bastou apoiar campanhas educativas sobre o tema. Precisou mostrar-se como alguém que, apesar dos danos que certamente sofreu, conseguiu se tornar em um ícone nacional de sucesso. Obviamente, nada vai superar a dor e a frustração de quem não pôde iniciar uma vivência sexual de forma saudável. Mas só a partir da voz encorajada de pessoas como Xuxa que diversas outras potenciais vítimas poderão se livrar de uma sina tão triste.

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