Self

Outras Ondas: A culpa que somos nós (parte 2)

 

A culpa é um dos entes mais presentes no ambiente psicoterápico. Ela se atravessa em todos os caminhos, invariavelmente, em maior ou menor grau – à exceção de casos patológicos, como entre os sociopatas. Em algumas pessoas, ocupa local psíquico privilegiado: todos os gestos, ou restrições; deriva de uma dívida que imagina ter diante do outro. O culpado, muitas vezes, fantasia ser capaz de ser o responsável pela dita ou pela desdita de seus consortes. Crença esta que merece uma atenta observação.

Podemos acreditar que o mundo é, inteiro, interligado. De tal forma que, como disse o poeta, não se pode tocar uma flor sem abalar uma brilhante estrela. Assim sendo, interferimos direta ou indiretamente nos demais seres, mesmo quando não estamos atentos a isso. Essa troca ainda é mais efetiva entre os humanos, por verossimilhança e por sinergia dos afetos. No entanto, cada um carrega em si as suas estratégias de defesa e de diferenciação dos demais. Estamos complexamente conectados e, ao mesmo tempo, vivemos a individualidade – como células que, apesar de comporem o mesmo tecido, podem ser enxergadas uma a uma como organismos independentes.

A partir desse pressuposto, podemos questionar a capacidade de um alguém de desgraçar ou de abençoar a vida de outrem. Teríamos, verdadeiramente, tamanho poder? Creio que, em vez disso, podemos pensar que qualquer bênção ou maldição só pode ser concedida por alguém quando acatada por seu destinatário. Ou seja, o aparente agente passivo da relação que envolve a culpa pode não ser tão passivo assim. Aqui, a passividade surge mais como sinônimo de permissividade, ou seja, de aceitação e aprovação. Desta forma, o vínculo que se estabelece entre o culpado e o lesado é injusto a priori. Os primeiros se responsabilizam por algo que, de fato, seria alcançado pelo outro – independentemente de quem seja o agente deflagrador.

Os que se sentem lesados tentem a buscar culpados para seus dissabores. Apoiam isso numa crença que os aproxima de mártires: munidos sempre de inocência e boas intenções, geralmente incompreendidos e injustiçados diante dos feitos heroicos que abraçam. Transformam qualquer ser comum que lhes atravessam o caminho em empecilhos, em fatores divergentes ao serviço do bem. Se fracassam, é por culpa de alguém. E caso esse alguém não esteja atento a esse tipo de armadilha, se sentirá verdadeiramente responsável pelo dano na vida do outro. Cria-se uma disputa entre o bode expiatório e o cordeiro de Deus. Qualquer tentativa do culpado soará como reparação do malfeito, o que reforçará mais o “erro” do passado do que uma tentativa de corrigi-lo.

Por outro lado, temos aqueles que nem precisam de alguém que os aponte como culpados. São natos. Acham que a existência é, por si só, motivo para que sejam demais na vida dos outros. Tentam se esquivar de tudo que sugira provocar um possível incômodo em alguém. Pedidos de desculpa são fartos em seu discurso, como se o tempo inteiro estivessem ocupando muito espaço, interferindo naquilo que não os cabe. A esses, a culpa vem para dissimular um quê de presunção, de prepotência. Afinal, somente um ego demasiado grande é capaz de crer em tamanho poder de interferência.

Há também um motivo forte para a culpa: viver bem. Somos convidados a partilhar de tudo, especialmente das insuficiências alheias – mesmo que estas tenham sido motivadas por escolhas precipitadas, ou pela falta de coragem para viver. O lado bom sugere um quê de constrangimento, capaz de inspirar algumas pessoas a mentir, ocultar ou diminuir a verdadeira graça de viver. Transformam sucessos em segredos pessoais – motivo de prejuízo, como nos alerta Jung. “Qualquer segredo pessoal atua como pecado ou culpa, independentemente de ser considerado assim ou não do ponto de vista da moral coletiva”.

O primeiro, e talvez maior, desafio para combater a culpa é desacostumar-se dela. Não é fácil se desvencilhar de algo tão aprofundado nas nossas bases psíquicas – seja pela cultura, seja pelas heranças familiares, seja por aquilo do que nos arrependemos. Cabe reconhecer a nossa imperfeição. Ao assumirmos a própria vida, estamos mais vulneráveis ao erro. Mas também mais propensos e disponíveis ao acerto, àquilo que me aproxima do meu ideal de realização. Falhas sempre hão de existir. Mas elas não devem ser a prioridade e, como tal, não podem empatar as possibilidades de avanço. Não permita que a culpa inviabilize sua chance de experimentar a felicidade.

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