Self

Outras Ondas: E o mundo não acabou

“Acreditei nessa conversa mole / Pensei que o mundo ia se acabar / E fui tratando de me despedir / E sem demora fui tratando de aproveitar / Beijei a boca de quem não devia / Peguei na mão de quem não conhecia / Dancei um samba em traje de maiô /E o tal do mundo não se acabou…” Os versos de Assis Valente, imortalizados por Carmen Miranda, caem bem nesse fim de 2012. Se você lê esse artigo antes do dia 21, a suposta data do apocalipse no calendário maia, faça suas preces e busque a remissão de suas faltas. Caso já tenha passado esta data, respire com alívio. Ainda não foi desta vez que vimos o mundo ruir. Será que não?

O anúncio do fim dos tempos mobilizou diversas civilizações ao longo da história. E ainda mobiliza, inclusive a nossa. O último livro da Bíblia – o livro que mais influencia os ocidentais, sendo eles judaico-cristãos ou não – narra em minúcias os últimos momentos da humanidade até o julgamento divino: um cenário catastrófico, propício ao julgamento das almas entre eleitos e condenados. Muitos ainda literalizam o conteúdo por lá apresentado. Esperam por carruagens de fogo que vêm dos céus. E pouco interpretam sobre os “fins dos tempos” que ocorrem para cada um, em momentos diferentes da vida.

A chamada para um fim tem, como pressuposto, o recomeçar. O fim do mundo surge como uma alegoria interessante, para que reflitamos sobre a nossa capacidade de reinvenção da própria história.  Tendemos ao desejo de destituição do erro e do sofrimento, mas dificilmente encaramos o desprendimento dos velhos padrões e paradigmas. Desta forma, preferimos acreditar que essa transformação é imposta de fora para dentro, ou seja, dos deuses aos homens. E assim validamos nossos problemas, ao transferir a origem deles ao mundo invisível, à corrupção, às limitações dos recursos. Deixamos de encarar nossa forte participação nos processos autodestrutivos. Queremos retornar ao paraíso, mas sem a angústia da perda – como se fosse possível encontrar o oásis sem enfrentar o deserto.

Assim como cantava Carmen, a expectativa por saber precisar a hora final vem com a finalidade de atender o desejo inconfessável: não ter amanhã é a forma de me revelar em minha natureza mais profunda, livre de qualquer questionamento ou represália. É uma pena que muitos ainda precisem de tais artifícios para serem o que sempre foram. Recalcamos muito das nossas verdadeiras vontades, características e opiniões em nome de um status ou para nos distanciarmos do julgamento dos outros – postura essa pouco propícia ao fortalecimento psíquico, visto que a felicidade está em nos afirmarmos diante daquilo que somos, em nossas características inatas.

A dor e o sofrimento derivam de uma frustrante constatação: não conseguimos viver com naturalidade uma série de papeis eleitos como “o melhor para ser e ter”, pautado no consumismo e em dinâmicas sociais deturpadas. A sociedade elege o que devemos ouvir, vestir, admirar, amar. Ignora assim a alma, que não consegue traduzir seus verdadeiros valores. Fragiliza o nosso poder de afirmação, enquanto indivíduos únicos, frente aos demais.

 Nesse período de fim (de mundo ou de ano, que seja), o chamado é para a reavaliação. Busque elaborar, dentro de si, quais são as suas potências natas abandonadas em negligência. O que está sendo mal aplicado, ou seja, a potência que virou defeito em vez de qualidade. Onde cabe reparação, quais conteúdos devem ficar para trás, permitindo que a vida siga à frente. Não tenha medo de se encarar: esse é apenas o começo de sua nova vida.

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