Self

Outras Ondas* – O berço do salvador


Refletir sobre o Natal é um exercício interessante. Desde criança, somos acostumados a rever a cena do menino Jesus na manjedoura, amparado por Maria e José, e adorado por anjos, magos e animais. A força inspira todos aqueles que nasceram no mundo ocidental, sobre a égide do cristianismo – até mesmo os que não professam a fé cristã são, invariavelmente, influenciados pela imagem.

O nascimento de Jesus pode ser interpretado como uma amostra dos elementos que marcariam sua trajetória. Ele chega sob a pressão das perseguições político-religiosas, ameaçado de morte pelo rei Herodes. O primeiro exemplo que aprendeu com os pais foi a confiança naquilo que foge à lógica, mas apresenta pleno sentido: anjos anunciaram a Maria a missão da maternidade; anjos também apontam a José a postura a adotar e os caminhos a seguir.

O parto é feito em um estábulo. Apesar de improvisado, o local é repleto de significados. Jesus deve se lembrar que nasceu no seio da natureza; é o Deus em carne e osso, suscetível a instintos e animosidades, que precisava resistir a tentações para manter-se firme nos propósitos divinos. Nascer onde dormem os animais também deu a ele a noção necessária de humildade exigida para uma tão nobre tarefa. Não se deveria adotar a soberba, apesar das provas materiais de seu poder transcendente – ou seja, aquilo que chamamos de milagres. Nos nossos presépios, não podem faltar as imagenzinhas da vaca (passividade, manutenção, abundância) e o burro (resistência, força, resignação).

O sagrado que envolve esse nascimento desperta a sensibilidade dos magos, que se deixam guiar por uma estrela – esse elemento também aparece em relatos sobre o parto de outros avatares, como Krishna, Buda e Abraão. É ela quem conduz até o ponto exato onde se encontra o salvador. Os reis oferecem tesouros que evidenciam a nobreza que irradia da manjedoura: ouro para representar o poder; incenso, pelo sacerdócio; e a mirra como o grande bálsamo para sanar as dores geradas pela difícil missão a enfrentar. Nesse momento, o sagrado, a humanidade e a natureza selam a sina daquela criança: resgatar grandes valores e instituir o valor do amor.

É impossível certificar a veracidade do cenário e dos personagens presentes – assim como, provavelmente, o Natal não tenha ocorrido no dia 25 de dezembro. No entanto, essa é a forma como aprendemos a enxergar o nascimento de Jesus, o redentor. Nessa época do ano, não importam as convicções religiosas. Somos tocados pelo símbolo e, sempre que isso acontece, somos transformados por ele.

De forma simultânea, a alegoria do presépio reúne coragem, fé, humildade e perseverança. A cada fim de ano, temos a chance de reavaliar a nossa capacidade de redimir nossas falhas. Somos questionados a rever valores em prol do nosso desenvolvimento pessoal e da concretização de sonhos e propósitos. Muitas vezes, invejamos o papel daquelas pessoas que eram tocadas com tamanha facilidade pela experiência mística: queremos estrelas que nos guiem, anjos que soprem orientações claras e diretas. Deixamos de perceber, no entanto, que somos inspirados constantemente por tudo o que nos cerca, e acabamos por desprezar as indicações para resistir ao orgulho e à vaidade.

Observamos Jesus com olhar consternado, com certo pesar por sabermos do sofrimento que ele enfrentará. Mas ele nos retribui o olhar com doçura, alegria e segurança. Nesse momento, percebemos a determinação diante do grande propósito que o motivava. O Natal não deve ser visto como período de esperanças vãs ou otimismos hipócritas. É, na verdade, uma celebração à renovação. O menino Jesus renasce a cada ano para nos ensinar o perdão. E nos convida a amar.

***

Fernando Pessoa descreveu em um poema aquilo que, para mim, é a melhor forma de relação que se pode ter com a imagem de Jesus Menino. É longo, mas vale a pena ler: Confira um trecho dele, declamado por Maria Bethânia, no show maricotinha, presente no DVD editado pela Biscoito Fino.

nivas gallo