Self

Outras Ondas* – O fogo do amor

Dando continuidade à série sobre orixás, falo hoje sobre Xangô e Oyá (ou Iansã). O casal mítico divide o domínio sobre o fogo: elemento que os une a partir dos atributos da força e da passionalidade.

XANGÔ

O governante da cidade de Oyó personifica todas as características do rei mítico, envolto em uma aura de soberania, justiça e inteligência, que despertam o fascínio de seus súditos. Xangô é o homem de boas palavras, sempre muito bem escolhidas e pronunciadas de forma vibrante e emotiva. É forte, temperamental e assume muitas vezes um tom professoral, ficando irado quando suas verdades não são reconhecidas pelos demais. Torna-se assim autoritário e presunçoso. É extremamente social, preferindo a casa cheia, onde oferece grandes banquetes – a fartura é motivo de orgulho para qualquer rei. Tem uma forte inclinação pelas questões humanitárias e pelos problemas dos outros. É um hedonista: não se renega aos prazeres do corpo, sejam eles praticados pela boca ou pelo sexo. Defende, inclusive, essa liberdade para todos. Por esse motivo, é considerado o amante ideal, pois não se preocupa somente com o próprio prazer. Vaidoso e sedutor, é narrado nos mitos como aquele que trança os cabelos e usa argolas nas orelhas.

Nas narrativas míticas, Xangô convivia com três esposas em um palácio suntuoso: Obá, Oxum e Oyá, que, volta e meia, lutavam entre si pelo título de preferida do rei. A virilidade e a fertilidade são marcantes em si. Tais atributos estão ligados ao apego passional que Xangô tem à vida: teme a morte e os mortos como ninguém. Esse orixá tem no fogo o seu elemento primordial. Como tal, é intenso, marcante e transformador.

OYÁ OU IANSÃ

A mais audaciosa entre os orixás femininos, Oyá surge no panteão afro-brasileiro como a mulher forte, guerreira. Gosta de enfrentar inclusive os homens, porém não se distancia da feminilidade. Entende que a sedução é uma arma poderosa demais para ser desprezada. Adora praticá-la: é a mulher livre, ama sem culpa, e acaba usurpando dos amantes que cativa seus principais atributos. De tão destemida, Oyá enfrenta até mesmo os mortos: por esse motivo, ganhou a função de controlar os eguns (espíritos), quando esses tentam interferir de forma negativa no mundo dos vivos. Iansã é a dona dos nove céus, mãe de nove filhos – que ela administra e defende com o amor de uma leoa, apesar de não ser uma daquelas mães que mima em excesso. Tem a sede da liberdade, e, por isso, dá logo cedo a independência para que esses filhos desenvolvam a individualidade e possam ganhar o mundo. A batalha é o seu grande orgulho e, inclusive, torna-se intransigente quando julga que o outro segue a lei do menor esforço ao lidar com os combates da vida.

Oyá é vento fresco e também tempestade. Graciosa e matreira em alguns momentos, forte e impulsiva quando provocada. Grande feiticeira, tem uma magia intensa no olhar: reze para que Iansã nunca lhe deseje algum mal. Ciumenta e temperamental, não se importa com o olhar repressor dos outros quando está tomada pelo calor dos acontecimentos. A curiosidade é a sua grande fraqueza. Instigada a descobrir o segredo de Xangô, Oyá acabou experimentando do feitiço do fogo. Passou, desde então, a soltar labaredas pela boca e pelas narinas – literalmente, é uma mulher com fogo nas ventas. Na ritualística, esse mito é simbolizado pelas bolas de algodão e azeite em chamas engolidas pelos iniciados em transe, e também pelo acarajé (akara = bolas de fogo; njé = comer), sua comida predileta. Ela também risca o céu com o fogo dos raios, seguidos sempre pelo estrondo do trovão – a voz de Xangô reclamando seus domínios. Iansã é a paixão nossa de cada dia, a coragem que impulsiona mulheres (e seus defensores) a conquistarem espaço num universo predominantemente masculino.

nivas gallo