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Outras Ondas* – Os senhores dos caminhos

O panteão africano é, certamente, uma das mitologias mais presentes no inconsciente do brasileiro. Com o passar dos anos, o nome dos orixás cultuados pelo candomblé passou a fazer parte do nosso imaginário – novelas, livros e canções ajudaram a popularizar Iemanjá, Oxum, Oxalá e companhia até mesmo entre quem nunca pisou em um terreiro. Por esse motivo, inicio hoje uma série mensal sobre as principais divindades. Por serem figuras mitológicas, os orixás têm virtudes e defeitos, se aproximam bastante dos humanos. Como é de praxe na religião, os primeiros a aparecer são os irmãos Exu, Ogum e Oxóssi, os senhores dos caminhos como definiu Dalva da Oxum, em livro homônimo (Ed. Pallas).

Exu/Ilustração de Carybe

Exu surge nos cultos africanos como o orixá mais controverso. Alguns dos provérbios usados para defini-lo ilustram a relação de fascínio e contenção que a divindade inspira em seus seguidores: “Exu é o que mata uma ave ontem com a pedra que atirou hoje.” “Exu é o que vai ao mercado comprar azeite e o traz em uma peneira, sem perder uma gota.” “Exu faz o erro virar acerto e o acerto virar erro.”

Ele é aquele que extrapola os limites. Seu nome significa “esfera”: assim como sua natureza, não tem começo nem fim, com limites pouco estabelecidos, sem ângulos que ajudem a defini-lo. Ele traz consigo a energia do caos, ao mesmo tempo indesejado e renovador. É o intermediário, o mensageiro entre homens e orixás. É amoral – ou seja, não enxerga limites entre o bem e o mal. Exu induz ao erro, testa e se diverte com as confusões que provoca: é o mediador controverso. Para executar o seu trabalho, sempre exige um pagamento, mas é bastante maleável nessas negociações: aceita “tudo o que a boca come”, mas fica irado quando é negligenciado.

Ao mesmo tempo, Exu também é visto como o amigo mais leal. É protetor e, como tal, mora nos portais, nas encruzilhadas e caminhos. É um comerciante nato: diplomático, negociador, astuto, enganador, ladino. Na religião, é sempre o primeiro a ser convocado, para que faça a segurança do templo. Usa o ogó, o porrete-bastão em formato de pênis, que também representa a sexualidade exacerbada, a ferramenta do prazer que também pode ser usada para castigar. São muitos os mitos em que Exu pune os faltosos com violência. Sua natureza é sensual, agressiva, marcante. Exu vive em tudo e a vida só existe quando ele está presente. Gosta do preto e do vermelho. Come todas as comidas, especialmente a farinha com dendê.

Ogum/Ilustração: Carybe

Ogum é o desbravador, deus da guerra e da solução de problemas. Tem a natureza masculina bruta: rude, direto, agressivo, impulsivo, impaciente e temperamental. É considerado o ferreiro entre os orixás – traz, dessa forma, o progresso a partir do domínio das ferramentas agrícolas, que tiraram o homem do nomadismo e do exercício primordial da caça. Age como grande desbravador, sendo cultuado logo depois de Exu. Suas principais ferramentas são a espada (guerra, embate) e o facão (usado para abrir caminhos na mata).

A força do pensamento de Ogum é marcante. Ele busca sempre a lógica por trás dos fatos, tendo uma postura militar diante das regras. Sente-se reconfortado quando consegue conduzir um projeto, ou quando os demais acatam uma ideia sua – é, inclusive, bastante enfático na persuasão. É o mais eficiente quando se pretende desempenhar uma tarefa sistemática. No entanto, quando os sentimentos de Ogum afloram, ele é extremamente passional: tem dedicação excessiva e, vez por outra, se frustra quando não encontra a mesma ênfase nos demais. Nisso, se parece bastante com a mãe, Yemonja. Preza a fidelidade e a família. Ogum tem a predileção pelo movimento, pela prática de esportes. É como se o corpo pedisse atividade para poder sentir-se vivo. O caráter prático os faz consumidores de novas tecnologias, de tudo aquilo que aparentemente facilita a nossa vida. São tenazes e irritadiços, com forte inclinação competitiva. Ogum gosta de azul escuro e verde, come feijão refogado e inhame.

Oxóssi/ Ilustração: Carybe

Oxóssi é o rei de Ketu, a nação (tipo) de candomblé mais popular no Brasil. Conhecido também como Odé, o caçador. Está associado ao provimento e à fartura. Tem as florestas como habitat preferido: preferiu sair da casa da mãe Yemonja, a grande protetora, para viver junto aos bichos e árvores, onde se sente livre e integrado. A principal ferramenta que usa é o ofá, o arco e flecha.

Como um bom caçador, Oxóssi vive a astúcia em tudo o que faz. É cauteloso nos movimentos e sabe esperar o melhor momento para ter a certeza da conquista. Mas também é aquele que gosta de comer a caça fresca: não gosta de “estocar”, gastam com facilidade o que ganham. Se tivermos a lógica em Ogum, temos em Oxóssi a intuição. É extremamente sensível. Tem grande facilidade para a comunicação, com ideias claras e diretas. Mas nem sempre é de muita conversa. É curioso e criativo.

A nobreza se expressa a partir dos gestos e pensamentos – são francos, mas conseguem dizer as verdades necessárias com ar diplomático, sem perder a cortesia e a compostura. Adora a popularidade, mas também é capaz de simplesmente sumir “à francesa” de um evento quando algo o incomoda. Tende à praticidade e, mesmo assim, não dispensa a elegância em pequenos gestos. Acaba sempre tendo em volta uma série de seguidores apaixonados, de ambos os sexos. E gosta disso: tem a sedução como uma das principais armas. Oxóssi gosta de azul claro (a cor do céu no início do dia, hora de caçar). Come milho cozido e feijão torrado.

No dia 26 de dezembro, volto a falar sobre orixás. A coluna será dedicada à Yemanjá, a grande homenageada nas festas de réveillon.

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