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Psique: A indiferença é a mais cruel das condenações

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Dois risquinhos azuis, que ocupam uma meia dúzia de pixels na tela do WhatsApp, são capazes de destroçar alguém frágil. Olhares que não se cruzam no elevador da repartição, e a sensação incômoda da invisibilidade que sucede o ocorrido. Alguém segura a porta para que o vizinho avance e é como se ela se mantivesse aberta por algum dispositivo artificial. E, por um instante, uma pergunta vem à cabeça de quem vivencia tais situações: será que ainda existo?

Se num primeiro momento soa esdrúxula, a questão ganha muita pertinência quando pensamos um pouco sobre ela. Parece cena de filme de gente que já morreu e ainda não sabe. Ou seja, que não pode mais ser percebido, considerado, valorado, qualificado.

Na indiferença, não é somente “matar” o outro na relação, o que asseguraria ao “morto” quem foi, a história que viveu. É a destituição dele do direito pleno de existir – seja como alguém adorável ou detestável. É incorpora-lo na massa estéril de mundo, excluí-lo do rol da humanidade. A mais terrível e cruel das formas de tratamento.

Anular o futuro
É claro que, quantitativamente, somos muito mais ignorados do que percebidos na trajetória da vida. Não somos tão magnéticos assim. Também não se trata de acreditar que conseguiremos tratar todos com paridade, destinando-lhes o carinho, o apreço e a atenção devidos. A ração para alimentar ilusões românticas está cada vez mais cara.

A indiferença à qual me refiro é aquela realizada, deliberada, que contém um grau de perversão em seu núcleo. Escolher ignorar o outro é anular suas potências e, assim, retirar-lhe qualquer possibilidade de futuro – seja ela qual for.

A neurociência atestou a gravidade desse comportamento. Bebês tratados com indiferença terão prejuízos no desenvolvimento, se comparados a crianças acompanhadas por cuidadores que as olham nos olhos. O dano é tão profundo que chega a alterar estruturas cerebrais referentes ao desenvolvimento intelectual e à capacidade de assimilar emoções.

Em adultos, o que vemos são fendas profundas na capacidade de autopercepção e também da qualificação dos recursos internos que dispomos para lidar com a vida. Quem é tratado com indiferença tem uma baixa crença na capacidade de vencer obstáculos e de estabelecer relações saudáveis. Como reação, podem se tornar subservientes, violentos ou perseguir uma falsa autossuficiência – comportamentos que podem ser a chave de inúmeros quadros patológicos.

Silêncio matador
Temos uma dificuldade de lidar com o silêncio. Calar-se diante do outro é perturbador por natureza. Nunca nos acostumamos com esse vazio entre os corpos, que rapidamente será preenchido com sussurros, falas e gritos vindos das nossas vozes interiores.

No ambiente virtual, feito de corpos afetivamente precários, a indiferença se torna um gesto corriqueiro, legitimado e instrumentalizado pelos próprios meios. Excluir, deletar, banir, bloquear são simples botões. O que provocam, não. Matamos pessoas quando as condenamos à inacessibilidade. Muitas vezes, por vingancinhas bobas.

E, enquanto nos distanciamos das possibilidades de interação, também nos colocamos no isolamento. Distanciamo-nos do mundo plural e divergente, quando nos permitimos à partilha somente com aqueles que julgamos importantes – quem faz eco para nossas vaidades, realça nossa identidade ou oferece referências do que validamos como sucesso.

Quando o silêncio vem dessa morte metafórica da indiferença, a angústia é avassaladora. Não se encontram motivos, nem se sabe de fato se a morte já se consolidou. É a imagem da porta entreaberta: não sabemos o que poderá sair dali, quando isso ocorrerá e quais consequências terão.

Os mais nobres valores da dignidade não são experimentados quando somos bem tratados, mas quando sabemos reconhecer um semelhante no outro, apesar dos contrastes que apresenta diante daquilo que somos. Diferenciar-lhe e reconhece-lo é trazer, para si, a grandeza de ser humano.

Psique: Buscar coerência nas atitudes é uma forma de facilitar a vida

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No último sábado, na Bienal do Livro de Brasília, passei umas duas horas numa fila, para assistir uma palestra do historiador Leandro Karnal. Como é sabido pela maioria, um dos temas preferidos dele é a ética. Do lugar onde estava, a fila era grande para frente e imensa para trás – e o espaço para a apresentação era limitado a pouco menos de 500 lugares.

Uma hora antes do início, a organização passou distribuindo senhas. Do nada, uma nuvem de gente veio lá de trás, com as senhas nas mãos, correndo, para tentar entrar antes daqueles que aguardavam na fila. Talvez realmente fosse mais pertinente deixa-los entrar. Afinal, lá dentro o assunto seria a ética. E era isso que eles precisavam aprender.

Dias antes, uma amiga me procura para “desabafar”. Traz consigo um dilema: conheceu um rapaz interessante, que se mostra também interessado, mas não sabe exatamente se deve engatar o relacionamento. Por que? “Talvez não seja a hora”, “não gosto da forma como ele se veste”, “não sei se a gente combina” – uma série de argumentos vagos, imprecisos, e bem diferentes das queixas anteriores, quando ela se dizia disponível para o amor.

Em comum, essas histórias trazem consigo a incoerência – uma velha conhecida, cada vez mais íntima na medida em que avanço no meu ofício como analista. As pessoas querem, mas não querem. Creem, mas duvidam. Pregam uma coisa, fazem outra. Desdenham e se ressentem quando perdem.

Tudo pra mim
Duvidar não é o problema nessa questão. Na verdade, é um ótimo indicador de saúde psíquica: mostra que a alma encontra brechas na visão unilateral da neurose, minimizando-a. A vida cheia de certezas é mais limitada e, consequentemente, mais propensa a adoecer.
A incoerência aparece quando os atos e escolhas são dissonantes àquilo que defendemos ser ou querer. Pode ser uma consequência de um olhar torpe, equivocado, sobre a própria realidade. Alguém impulsivo, por exemplo, tem mais chances de ser incoerente, se comparado com quem é ponderado.
Há também quem aja dessa forma por ganância. De longe, esse ser parece um grande devorador: alguém ávido para deter e engolir todas as possibilidades, muito angustiado com a possibilidade de perder algo. Acaba sendo o mais nocivo, por atingir o outro diretamente.

Esse comportamento visa compensar algum déficit inconsciente. O mais óbvio é a sombra da incapacidade. As fantasias podem inclinar o indivíduo a querer abraçar todas as chances possíveis, uma vez que não saberá novamente quando estará novamente diante delas. No entanto, não se dá conta de possíveis incompatibilidades que tais oportunidades trazem entre si, ou os choques que promovem com as escolhas prévias.

O resultado: agendas lotadas de compromissos sem sentido, relações igualmente vazias, uma angústia crescente gerada pela insaciedade.

Do que precisamos
A incoerência dá muito mais trabalho, é um desperdício de energia e também uma porta para desentendimentos. Despertará no outro o descrédito, e isso afastará oportunidades do sujeito incoerente – que também poderá ser interpretado como imaturo, oportunista, volúvel. Veja bem, o prejuízo é grande.

A fórmula da coerência parece ser afinar desejo, razão e emoção às circunstâncias. A avaliação criteriosa desses fatores, conciliados ao contexto no qual estamos inseridos, é o que permite ter referenciais mais lúcidos para nossas escolhas.

Acrescente na receita a imprevisibilidade e a paciência para aguardar o momento certo. Descarte as respostas prontas, o medo e a ansiedade. Duvidar é sempre um bom caminho. Como resultado, teremos não só uma vida mais coerente e dotada de propósitos, mas também alguém que se conhece mais, com mais aptidão a viver e contribuir com o mundo.

Psique: Uma triste notícia: somos todos carentes, em maior ou menor grau

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A expressão “vale enquanto serve” impõe uma lei de descarte nas relações humanas. É o que se chama de objetificação do outro – visa retirar dele as características de sujeito (peculiaridades, vontades, emoções, questionamentos etc.) em nome de interesses particulares.

A escravidão é o exemplo extremado desse processo. Nela, o indivíduo tem subtraída a sua humanidade. Sobre ele se impõe uma nova realidade, apontada como certa. É alguém que determina quem ele poderá ser, o que deverá fazer, no que poderá acreditar.

Foi o que vimos com os africanos escravizados que para cá foram trazidos. E que, até hoje, veem seus descendentes sofrendo restrições e imposições decorrentes desse estigma. O principal deles é a negação, o não-reconhecimento da covardia e da crueldade que envolveram esse processo. Nem dos danos que ainda repercutem, em decorrência disso, na população preta.

Essa é uma característica recorrente entre os ‘objetificam’ o outro: tentar impor sobre suas vítimas uma espécie de responsabilidade pelo dano sofrido. ‘Não deveria estar ali naquele momento’, ‘você devia ter sido mais sagaz’, ‘você deve ter feito por merecer’.
Falas atrozes como essas têm uma função primordial nessa dinâmica: retroalimentar a autodepreciação daquele que serve aos interesses originais. Aos poucos, ele acreditará que é um bom negócio estar ao lado de quem usurpa suas potências, pois, somente ali, ele é valorado e reconhecido. O manipulador eficiente saberá encontrar os pontos de maior vulnerabilidade para que essa verdade prevaleça.

Antes mal acompanhado…
A carência é a porta para essa armadilha. Uma triste notícia: somos todos carentes, em maior ou menor grau. Nossa insuficiência faz com que busquemos um ideal de completude (sem sucesso, convém ressaltar). Nunca estamos satisfeitos, e quase sempre não nos conformamos com isso.

Cada um encontrará seus vetores de compensação a tais faltas. Não é por acaso que gostamos tanto de médicos, gurus, prostitutas e advogados – em comum, personagens que nos denotam uma importância, e que, nem sempre, somos capazes de reconhecermos sozinhos.

Felizes dos que recorrem aos profissionais, porque a grande maioria busca fazer essa compensação com pares. E transformam em pares quem lhes der algum aceno positivo. E entregam muito em nome da manutenção dessas relações. São assombrados pela fantasia do desamparo: de não terem em quem encontrar apoio para suportar as dificuldades da vida.

O termo “desvalido” é preciso para descrever esse estado, pois fala daquilo que é desprotegido, mas também daquilo que não tem valor. O carente, um “sujeito objetificável” em potencial, é uma pessoa que não consegue reconhecer os valores que carrega em si. Por isso precisa tanto daquilo que o outro tem a oferecer. E não percebem o preço salgado que cobram para manterem essa relação.

O que chama-se de autoestima nada mais é que o reconhecimento e promoção desses valores e recursos internos. É a antítese da carência – não porque o ser que tem uma boa autoestima não sofre com as faltas, mas sim porque ele consegue enxergar-se para além delas.

Ajuda mútua
Não falo aqui apenas das relações extremas, patológicas. Mas também das imposições dissimuladas, das relações utilitárias do dia a dia – da que nós mesmos, ditas pessoas de bem, praticamos de forma corriqueira, e amenizamos em nossos discursos.

Sem uma ética vigilante, tendemos a usurpar do outro aquilo que tem a oferecer. Somos aproveitadores, pois gostamos do que é bom, farto e fácil. Da mesma forma, também oferecemos aos demais aquilo que nos sobra, quando nos é conveniente. Usamos uns os outros o tempo inteiro, e isso não é problema. É uma fantasia utópica a ideia de independência.

O que aqui chamo de ética é um olhar atento pode ser traduzido como uma medida justa às nossas necessidades. Elas, de fato, são poucas e fazem com que esse “uso cruzado” se configure como uma ajuda mútua – o combinado não sai caro. O bem servir, ou servir para o bem, é capaz de profundas e positivas transformações entre os agentes participantes.

Psique: Está em curso um processo de “esquisitização” das coisas normais

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Tem horas em que acho que o problema está comigo. O mundo parece que está espantado, em sobressalto, diante de coisas que sempre estiveram ali. Fome, desigualdade, hipocrisia. Crueldade, indiferença, falsidade. Ignorância, preconceito, dor. Oportunismo, injustiça, corrupção. E, diante destas e outras incontáveis tríades, olhares atônitos – como que surpreendidos com algo inédito.

De fato, o que me espanta profundamente é quando o que é natural se eleva a um status extraordinário. Quando os olhos esbugalhados se voltam para uma mãe que amamenta em público. Ou para a mulher que decide não ter filhos. Ou para alguém que sofre a perda de um ente querido. Ou, simplesmente, quando alguém não se queixa dos próprios problemas e se preocupa mais em viver, do que demonstrar a própria vida. Isso sim é escandaloso.

Ainda não consegui entender o que origina esse tipo de comportamento. É uma espécie de “esquisitização” de coisas normais. Isso é bem mais bizarro que a maioria das bizarrices apontadas. É como se as pessoas, sei lá, estivessem desaprendendo a ser humanos.
No fundo, deve ser isso. Uma espécie de desconexão com a realidade, uma falha na escuta daquilo que brota do íntimo. E, se levarmos isso em consideração, todos aqueles desconfortos que citei no início do texto são bem mais naturais e pertinentes à humanidade. Afinal, não são meros produtos culturais – e sim valores arquetípicos (arcaicos e típicos) que se repetem desde que o mundo é mundo.

Isso que estou chamando de esquisitização fala de uma interpretação do mundo. Um tanto equivocada, uma vez que está pautada em hábitos bastante recentes, e, como tais, não vividos até a última instância.

A cultura do “remedinho” para abafar qualquer dor, por exemplo, ainda não demonstrou claramente quais os efeitos que trará em longo prazo no psiquismo do ser humano. Da mesma forma, ainda não há conclusão sobre a repercussão da vida vivida por avatares, da exposição nas redes sociais, do descarte nas relações etc.. Não saberemos quem serão nossos bisnetos, em consequência de tudo isso.

Não falo isso por nostalgia, nem por achar que nossos bisnetos não saberão se adequar a essa nova realidade. Essa é, justamente, a grande bênção da psique: por ter um funcionamento compensatório, ela saberá encontrar a saída – retirando dos excessos para cobrir as faltas, e vice-versa. A questão está em, nós, que cá estamos, encontrarmos uma forma honrosa de convivermos, apesar das demandas que surgem.

Parece que é aí que mora a dificuldade para a maioria: antes mesmo que o novo se instale, já querem pertencer a ele. Pensar, funcionar, desejar, responder, sentir o novo paradigma que ainda nem é verdade. E nisso embrutecem o que há de mais delicado. Ou criam uma estima descomunal àquilo que, no fundo, nada muda.

É difícil ser gente quando não sabemos o que é ser gente. E principalmente quando buscamos referência em quem também não tem o que ensinar. Nessas horas, a salvação vem dos clássicos. Daqueles que, por um mistério ainda indecifrável, conseguiram sorver das emoções a sua essência. Até mesmo as mais controversas, desconfortáveis, vis. E traduziram-na por palavras, imagens, enredos, sons. Esses nunca deixarão de ser professores na arte de viver.

nivas gallo