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Psique: Queremos dar respostas para tudo, mas esquecemos de fazer perguntas

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Photo of paper speech bubbles on blue background.

Uma simples imagem, descontextualizada. Um print de tela de celular, para ser mais exato. E, por um fio, quase ia pelo ralo a reputação de uma pessoa. Era improvável, pensei, mas uma fração de segundos foi o suficiente para que eu interpretasse tal imagem como a nova realidade.

Era o ponto de partida. Minha mente se encarregou do resto: criar uma história, uma sucessão de consequências, um desfecho desastroso. Uma imagem capaz de comprometer uma vida inteira, de alterar rumos de forma irreversível.

A imagem era verdadeira. Mas era limitada, pois não estava presente de um contexto. Assim como tudo na vida, convém dizer. Quando se apresentou numa realidade maior, imediatamente ganhou um sentido diferente daquele dos meus devaneios. Era a chegada da lucidez, mostrando que nem sempre o recorte pode ser a melhor amostra do todo.

Felizmente, coloquei tal imagem à prova antes que minha mente trabalhasse mais. Os rastros percorridos pela imaginação foram sendo desfeitos, aos poucos, e assim evitei que o dano idealizado se transformasse em realidade. Deu certo, mas foi sofrido – um sofrimento vazio, vale dizer, uma vez que o cenário construído só existia no meu mundo interior.

Filme de terror
Não sou muito dado às paranoias. Minha analista também acha que não sou tão louco assim. Só experimentei um mecanismo primordial do psiquismo humano: a fantasia. As minhas, no evento citado, apontaram para um cenário negativo. Noutros momentos, podem me fazer acreditar em bondades e vantagens que não existem – assim como acontece com você, confesse.

É a dinâmica dos filmes de terror, e das histórias românticas. Uma sombra se transforma num demônio, assim como um sorriso foi para dizer que há recíproca no amor. Tudo dependerá da predisposição que nos atravessa em um determinado momento. Os sentidos conduzem um estímulo tal à nossa mente e ela se encarrega de completar a história.

Tudo isso acontece porque nosso psiquismo produz respostas, incessantemente. Até mesmo para as falsas interrogações, ou para aquilo que nunca poderá ser respondido. Assim, por exemplo, nasceu Deus: da necessidade de explicarmos a origem e o fim das coisas inexplicáveis.

A consciência é um órgão de processamento das informações que acessamos ao longo da vida – tanto do que está dentro, quanto do que está fora de nós. Mas não nos contentamos simplesmente em acumular, nomear. Temos, por instinto humano, a necessidade de interpretar. Somos insaciáveis no saber e intolerantes ao mistério.
E assim começam as grandes confusões, pois a nossa fantasia dará respostas, mesmo quando (e principalmente) quando não tiver argumentos o suficiente. Quanto mais alimentarmos as fantasias, mais força elas terão. E, assim, transformam-se numa espécie de mito que nos rege. E aos poucos ele terá poder para determinar nosso destino.

Desenvolver a consciência é, acima de tudo, conhecer e questionar os mitos que angariamos pelo caminho – não para destruí-los, mas para dar-lhes contexto, para que eles nos ofereçam sentido. Caso contrário, reinarão sobre nós, limitando ainda mais o nosso olhar. Manter atenção plena, vigiar para não cairmos na tentação de acreditar nas respostas que criamos.

Do que me aconteceu, restou uma lição: não esperar, um minuto sequer, assim que tiver a oportunidade de usar argumentos que contraponham fantasias. No território fértil da mente, uma má imagem semeada pode fazer brotar, rapidamente, uma floresta de infortúnios.

 

Psique: Ser incompetente não é um problema, o ruim é não admitir isso

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Vários citrinos amarelos com diferentes tamnhos e lapidação

Eu não tenho nenhum talento para esportes. Não funcionou na infância, nem na adolescência. Não seria hoje. Entender isso me poupou muita coisa, especialmente tempo. Pude, com a energia não gasta com a insistência, explorar outras potencialidades. Não fui para os Jogos Olímpicos, mas estou aqui. Analista, tarólogo, escritor.

Mas eu poderia ainda sofrer por aquilo que, na minha fantasia, eu poderia ter desenvolvido. Poderia me imaginar muito mais feliz sendo o que não fui, e o que, provavelmente, nunca hei de ser. Poderia sentir-me um fracassado. Mas, pensando bem, até aqui, foram mais os sonhos desperdiçados que os aproveitados.

Todo esse pensamento desarticula por completo a filosofia Lua de Cristal (“Tudo pode ser, se quiser, será / O sonho sempre vem pra quem sonhar”), assim como todas as teorias de autoajuda barata, que massacram pela ideia de empoderamento irrestrito. Isso é um tormento para pessoas comuns, como eu e você.

Talentos desperdiçados
Nascemos com um repertório muito raro de dons. Ao longo da vida, descobrimos (e nos afinamos com) um ou dois – e olhe lá! É o bom e velho “nasceu pra isso”: a capacidade inata, que beira o divinal. Sai naturalmente, quase perfeito, sem muito esforço. E com reconhecimento imediato dos demais, como se estivéssemos a serviço de algo maior que a nossa necessidade.

Depois disso, temos aí uma carta de talentos possíveis. Aquelas potências, vindas de uma aptidão natural. Mas que aparecem como pedras preciosas em estado bruto: podem render bastante, mas carecem de trabalho para que possam revelar a natureza mais pura.

Abaixo disso, as qualidades ordinárias. Tudo aquilo que a vida exige, que precisamos aprender a desenvolver por necessidade – mas que também não nos marcarão enquanto indivíduos. É o feijão-com-arroz da existência.
O que sobra é nossa teimosia. Aquilo que não nos contentamos em admirar e valorizar no outro, simplesmente, mas insistimos que também somos capazes de fazer. Quase sempre, isso vai nos depredando a vida, somente pela birra de nos admitirmos incompetentes para tal feito. Por que nos gastamos tanto naquilo que não nos cabe, enquanto o que nos cai perfeitamente vai sendo esquecido?

Fora do lugar
Ou seja, grande parte do nosso mal-estar brota de uma leitura superficial de nós mesmos. Negligenciamos talentos, que mereciam ser lapidados. Não valoramos os dons, por não acreditarmos neles ou achá-los insignificantes. E damos uma importância tremenda para aquilo que nunca iremos ter. E, aos poucos, afastamo-nos do conceito de competência.

Ela parte de um princípio básico. Uma macieira não dará laranjas, por mais esforço que faça. Mas poderá produzir ótimas maças, as melhores do mercado. O difícil é não ceder ao chamamento da competência irrestrita. É o complexo do “tutti-frutti”: mimetizarmos o “sabor” alheio, e nos distanciamos do nosso – e sempre soará artificial.

A boa incompetência
Quem vive assim, pronto para tudo, pode até ser legal, mas nem sempre trará resultados. Ou, pior, poderá atrapalhar quem é competente. A incompetência só é problema para quem insiste em se encarregar daquilo que não tem habilidade para desenvolver e acaba interrompendo o fluxo natural das coisas.

Admitirmo-nos incompetentes salvaria o mundo de muitas atrocidades. Isso não é má vontade para melhorar, nem baixa autoestima. É justamente o contrário: preciso aprender a valorizar e fortalecer o que sou e tenho, e não o que está distante de mim.

É essa consciência, inclusive, que não permite que a frustração do que não sou drene a energia do que posso vir a ser, e da diferença que posso fazer no mundo. Até porque, nos epítetos das lápides, ficam gravados o que fomos, e não o que poderíamos ter sido.

 

Psique: Romances pautados em disputa ou anulação têm de tudo, menos amor

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Hand sweeping heart from the floor with brush cleaner.

Uma verdadeira história de amor não tem preço, não há nada que a substitua. E o amor que eu falo aqui não é exatamente aquilo que pregam os românticos, excessivamente floreados. Refiro-me às relações de verdade, possíveis, recheadas de cumplicidade, afetuosidade, respeito. Tudo feito de maneira recíproca, harmônica, sem envolver medo ou competitividade.

Acho linda a imagem que Rubem Alves usou para descrever o bom funcionamento de uma relação: deve ser uma partida de frescobol, na qual um parceiro deve tentar compensar a falha do outro para manter a bola em jogo – e não uma disputa de tênis, cujo objetivo é fazer uma jogada indefensável. Na prática, entretanto, vemos muito mais Roland-Garros e Wimbledon que brincadeiras à beira do mar.

E o que é pior: muitos ainda confundem concessão com anulação. Em vez de compartilhar a vida, abrem espaço e servem de degrau para que o outro possa se realizar. Fazem do bem-estar do parceiro a fonte prioritária de gratificação – chegam até a esquecer aquilo que trazem como valores genuínos, verdadeiros prazeres, crenças e ambições.

Carentes por natureza
Quando é assim, amar sai caro demais. Tem o preço de uma vida. A frustração de chegar num determinado ponto do trajeto e perceber que somos um engano, que somos personagem na história de alguém, mas não sabemos qual é a nossa própria. É pior que a clandestinidade: é não ter o direito de existir além da relação. É concentrar todo o poder no outro e dele depender para não morrer à míngua.

Nem um, nem dois, nem três. São incontáveis os casos semelhantes que acompanho, já acompanhei – e, bem provável, hei de acompanhar. E não é exclusividade minha. Todos os meus colegas têm histórias semelhantes a relatar.
E por que isso acontece? Porque somos carentes por natureza. Porque não sabemos mais construir relações baseadas na reciprocidade. Porque idealizamos um amor perfeito, imaculado. Porque ficamos apavorados diante da solidão – sem percebermos que, quando estamos em relações dessa qualidade, já vivemos sozinhos. Não queremos perder o que já não temos, uma falácia.

Só mistificamos a dor da solidão quando não confiamos naquilo que somos, na capacidade de nos reinventarmos. Estamos tão acostumados a aplicar nossos recursos para sanar as necessidades do outro, mas nem sempre acreditamos que eles serão suficientes para manter nossa qualidade de vida. Outra falácia.

Silêncio perturbador
Na fantasia, o silêncio e a passividade são uma forma eficaz de evitar um mal-estar. Mas não é verdade. Não é a contestação quem pare o problema, ela só desperta aquele que já está adormecido.

Discutir é a melhor forma de resolver um desentendimento: se cada um apresenta seus argumentos, com o máximo de clareza e a menor passionalidade possível, o que está torto se endireita. Ou será reconhecido por ambos como algo sem solução. Assim, solucionado estará. Deverão chegar a um acordo sobre o que fazer com esse fato.

Não há relação mais importante que a nossa individualidade. Inclusive, se soubermos preservá-la, teremos um romance ainda mais saudável, consensual, maduro – e, principalmente, sem o ranking do quem pode mais. É a receita do frescobol de Rubem Alves. “Ninguém ganha para que os dois ganhem.”

 

Psique: Já caçamos pokémons há muito tempo. Eles nos distraem de nós mesmos

realidade aumentada

Foi um tanto impactante ver, no último domingo, um conglomerado de pessoas nas beiradas do parque Ana Lídia. Não imaginava que esse negócio de Pokémon fosse realmente capaz de produzir aquela cena. Milhares de pessoas, a maioria adulta, sem se enxergarem, tropeçando umas nas outras, vidradas numa tela de celular. Em troca de que? Nada.

Esse parágrafo de cima foi escrito pela demagogia. É claro que eu veria o que vi, cedo ou tarde. Até porque já é o que vemos. Essa história de “realidade aumentada” faz parte daquele “museu de grandes novidades”.

Sempre que podemos, damos nosso jeito para acrescentar no que vemos algo que nos distraia, que nos afaste do que nos angustia – em geral, de nós mesmos. O jogo é só um argumento tecnológico para alimentar esse mecanismo. Já somos craques nesse esporte de inventar, e acreditar no que inventamos.

Black mirror
O mundo pela tela do celular é um campo limitado, repleto de informações filtradas e agradáveis. Inserir neste campo um Pokémon é só o começo. Em breve, hão de criar a melhor companhia: superamigos, ainda mais perfeitos do que as imagens que nos povoam as redes sociais, ou amores perfeitos, que nunca nos digam não. Smartpais também podem ter uma boa procura no mercado.

Uma boa pedida para que compreendamos o significado desse novo paradigma que se instala na humanidade é bem representado pela série Black mirror (na foto acima), disponível no Netflix. Vale a pena, mas assista cedo: é daquelas que fazem perder o sono. Fala da espetacularização das relações nas mídias sociais, da conexão entre realidade e mundo virtual, e outros temas afins.

Ou seja, de tudo aquilo que é provocado pelo nosso espelho negro (a tela do celular), do momento em que acordamos até a hora que o sono nos trai. (Inclusive, pesquisas mostram que o tempo de sono tem encurtado graças aos smartphones.) As situações retratadas gritam indagações que não nos fazemos. Em suma: qual é o limite?

Aos poucos, ficaremos cada vez mais enclausurados no campo virtual. E, proporcionalmente, fervilham no inconsciente as perguntas elementares. Para que tudo isso? Qual o sentido da existência? Ao que parece, essa inquietação não quer cessar. Essa tentativa de empurrar para baixo as angústias existenciais vão transformando-as em adoecimento – manifestos no corpo e na alma. É o movimento compensatório da psique.

Imaginar é preciso
A realidade aumentada não deveria ser mais interessante que os desafios que nos são imputados pela vida. Na verdade, são priorizados por serem bem mais simples. Pertencemos a uma safra tecnicamente muito bem qualificada, em busca da excelência, mas pouco capacitada para os mistérios profundos.

Ficamos maravilhados com a possibilidade de nos depararmos com um monstrinho na sala de casa ou na rua. Até no meu consultório já capturaram um troço desses. Curiosamente, quem o fez tem grandes dificuldades para olhar para os próprios sonhos, as produções espontâneas do inconsciente. Talvez por medo de, por lá, encontrar criaturas que não cabem numa bolinha. E de não saber o que fazer com elas.

Mas não adianta fazer um discurso nostálgico ou apocalíptico. Há Pokémons soltos pela cidade, essa é a nova realidade. Logo virão outros seres, cenários, uma nova dimensão. E a psique se adaptará, como se adaptou até agora. Talvez essa seja nova forma que encontramos para lidar com a imaginação, antes de enlouquecermos por completo.

Psique: Toda prepotência encobre uma impotência. O mesmo vale para o contrário

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prepotencia

Quando somos pequenos, achamos que a vida é difícil porque não temos nossos desejos realizados. E a culpa é da fada madrinha, ou do gênio da lâmpada, que se negam a aparecer. A adolescência chega e é a tirania dos pais que desperta a nossa frustração. Se não fossem eles, imaginamos, seríamos muito mais realizados.

Chegamos à vida adulta, e o problema novamente se transfere. Ao chefe que não nos reconhece e recompensa. À pessoa amada, que não se dedica o suficiente ou não corresponde o que esperamos. Os cabelos começam a embranquecer e é a vez do Estado e da sociedade pesarem na balança. Logo depois vem Deus e sua injustiça. O corpo falha, limita nossa capacidade. E morremos frustrados pela vida que “o outro” não nos permitiu viver.

Essa é a história de alguém que não busca se conhecer. Ou, pior: de um indivíduo que insiste em se enxergar passivo diante da própria existência. Um ser que, em vez de acolher a própria falha, acaba por transferi-la a algo que acredita ser externo, fora de si. Ou seja: alguém que não se percebe como parte integrante do mundo.

O que nos torna capazes

Esse pensamento foge do “querer é poder”, lema máximo da autoajuda. Nem sempre o querer é suficiente. Nem sempre o poder é permitido. Não somos tão autossuficientes assim. A realidade é muito complexa para que consigamos detê-la e conduzi-la. Mas não é por isso que devemos permanecer inertes, à espera da resolução automática das complicações que surgem no caminho.

O sofrimento nos chega quando experimentamos algum desses extremos. Se nos enxergamos prepotentes, acreditamos que estamos habilitados para decidir-agir-funcionar em qualquer situação, e que o resultado desejado depende apenas de esforço e dedicação. É mentira.

Da mesma forma, o impotente é aquele que se vê insuficiente para decidir-agir-funcionar diante de qualquer adversidade. Menospreza a própria presença, pois se vê pequeno demais, fraco demais. Nessa visão, o outro é alguém mais capaz. Quando este me serve, dele dependo. Quando me nega, dele me ressinto. Outra mentira.

O meu tamanho

Não precisamos ser demais nem de menos. Temos que encontrar a medida exata das nossas faculdades, e essa métrica não está escrita aqui – nem em lugar nenhum. Na verdade, aprendemos sobre nossos limites e possibilidades em cada passo da vida, quando tentamos escutar como cada momento repercute em nossa alma.

E, para balizar esse instrumento, não devemos ser óbvios (a tendência reducionista do ego) e apegarmo-nos apenas àquilo que faz bem, encoraja e energiza. Carecemos igualmente do incômodo, daquilo que deprime e nos coloca diante da incompletude. É esse repertório de excessos e faltas que nos define enquanto humanos.

Vivenciar a impotência ou a prepotência é algo inevitável. Fixar-se em alguma delas é que é o risco. Até porque surgem como faces da mesma moeda. O esforço para ser ultra compensa apenas algo em que nos sentimos infra, e vice-versa. E, enquanto isso, inúmeras outras possibilidades de realização vão sendo negligenciadas.

nivas gallo