Self

Outras Ondas: Há de ser melhor

ha de ser melhor

Na teoria, a fórmula deveria ser bem simples: conhecer uma pessoa, perceber afinidades e incompatibilidades, verificar se a química corresponde à atração inicial. “Foi legal, quando nos vemos novamente?” E, na medida em que essa pergunta se repete, a relação se adensa. Ganha nome, para que os envolvidos se sintam seguros para uma maior entrega. A partir daí, a história é assumida socialmente, surgem planos e compromissos comuns. A vida moderna, entretanto, tem se encarregado de bagunçar esse molde. E, enquanto isso, as pessoas se debatem para entender (ou desenvolver) um novo caminho para os relacionamentos.

Toda a complicação começa na hora de fazer a dita pergunta. Numa realidade marcada pela agilidade e pela ampla oferta, seja lá do que for, um reencontro pode soar comprometedor demais. Mesmo quando há vontade, ninguém quer ceder e assumir esse encargo. Dispor-se a conhecer o outro, e obviamente fazer-se conhecer, passou a ser interpretado como patético, uma rendição. E não deixa de ser. Entendamos a engrenagem.

A propagação das redes sociais tem levado a um fenômeno psicológico interessante: somos sempre bons, e almejamos sermos ainda melhores. Bem, esse é o propósito de todo ser humano. Mas aí mora o perigo. Esquecemos que a condição humana nos impõe limites. E não dá para confundir “ser melhor” com excelência, otimização. O rosto sorridente do outro na foto inspira a competição, em nome de uma tal felicidade – a ausência plena de problemas, as cenas mais bonitas, os sentimentos sempre gratificantes, os melhores ângulos, as melhores falas. Na internet, as vidas se transformam em shows de ilusionismo. Daqueles que, mesmo sabendo que é mentira, pagamos caro para assistir, na tentativa de desmascarar o truque, ou de reproduzi-lo em casa.

Nesse universo, qualquer relação soa como insuficiente. Afinal, o outro poderia ser mais interessante. Ou mais bonito. Ou mais inteligente. Ou mais rico. Ou mais sexy. Ou mais popular. O descarte se torna imediato. Uma segunda chance soa desperdício de tempo. Afinal, o amor idealizado pode estar na próxima festa, ou num deslizar de dedos sobre o aplicativo. O embrião da relação é abortado em nome da expectativa de algo bem mais fantástico – do latim phantasticus, parente linguístico de phantasia (“devaneio”, “imaginação”). Loucura é achar que se atingirá esse grau de perfeição numa relação entre dois seres humanos.

De fato, é aí que se esconde o nó. A falta de parâmetros saudáveis de conexão com o mundo exterior, a partir dessas novas linguagens, tem afastado o homem do diálogo interno. Relacionar-se não é só um pressuposto básico da existência humana, mas principalmente a via régia ao autoconhecimento. É a partir da troca com o outro que o sujeito encontra referências sobre mesmo e sobre o mundo. Especialmente numa relação amorosa, quando ficamos expostos a mais rica gama de emoções, em níveis elevados de concentração.

Dessa forma, aprofundar o contato com o outro implica em um compromisso conosco, uma vez que inevitavelmente iremos nos deparar com o melhor e o pior do que somos, e temos a oferecer. Essa é a rendição que falei no começo: a que devemos fazer ao Self, a nossa natureza inata. Distanciados dele, podemos encontrar no mergulho de uma relação as marcas profundas da ausência de sentido dos nossos atos e crenças, ou um vazio onde deveria existir o significado de viver.

A evitação não diz respeito à relação em si, ou aos encargos que ela traz. Nem mesmo aos argumentos de limitação do prazer, ou da falta de liberdade instalada pelo encontro. Ela fala das lacunas que percebemos no nosso ser, as imperfeições não admitidas. Relacionar-se é, como disse Jung, um ato de coragem. “Alguém que se apavora e recua diante da dificuldade do amor é péssimo cavaleiro de sua amada. O amor é como um Deus: ambos só se revelam aos seus mais bravos cavaleiros.”

Outras Ondas: Perdoa-me por me traíres

Um ato, um gesto, um pensamento, um desejo. Insistimos em nos acreditarmos capazes de controlar aquilo que nos determina. E, ambiciosos, por vezes queremos expandir essa utopia para o outro, com quem escolhemos partilhar momentos de vida. Partem daí os contratos de fidelidade: da necessidade de nos imaginarmos capazes de monopolizar a vontade de alguém, de nos tornarmos imprescindíveis e insubstituíveis. Saber que o outro é capaz de desejar um terceiro ser se transforma em uma afronta direta ao ego inseguro, incapaz de se validar pelo que reconhece em si.

A fidelidade é uma convenção cultural, mais valorizada em alguns povos e menos em outros. Mas, de fato, a exclusividade na relação não é garantia de sucesso na mesma: o casal pode impedir a realização de traições, e, mesmo assim, manter uma convivência medíocre, fria e distanciada. Nós brasileiros vivemos um conflito ainda maior. O país é regido por duas forças intensas: o machismo, tradicionalista (que aceita a traição masculina sem grandes repercussões, mas não a feminina), e uma sensualidade peculiar, que faz com que o desejo e a lascívia nos influencie diretamente os comportamentos. A resistência à traição é um exercício moral, quando, na verdade, o ideal a reger deveria ser a ética. Ou seja: seguimos códigos de conduta por termos dificuldades de estabelecer parâmetros de bom senso.

Quando um casal combina um modelo de fidelidade, adotam nesse ato uma convenção. Podem até ter um propósito de realização, mas dependem de muitos fatores para chegar a este fim. Além disso, a traição não é necessariamente uma deliberação: um dos agentes pode se envolver com outra pessoa sem ter para isso um planejamento prévio. A paixão costuma ter um caráter surpreendente: antes de perceber, já estamos envolvidos. E daí a traição é somente uma consequência. No entanto, há ainda uma outra classificação: a traição como meio de punição do companheiro ou companheira. Nesses casos, as frustrações do que o outro não é (mas eu desejaria que fosse) pode mobilizar minha atenção para fora da relação. Isso é bem comum em momentos de crise relacional, ou das crises individuais nas quais não se sente o apoio devido por parte do outro. Há também quem traia achando que isso incrementará a relação, ou até mesmo por não conseguir administrar a possibilidade de perder a oportunidade de lidar com novos parceiros. De qualquer forma, soam como faces de uma imaturidade emocional, ou seja, da incapacidade de se responsabilizar e se encarregar por aquilo que sente da forma como sente, sem precisar recorrer a subterfúgios.

Quando efetivada, a traição ocasionará transtornos, dor, prejuízo. Muitas vezes, isso tudo vem acompanhado por promessas de transformação, por pedidos de perdão. Convém ressaltar que perdoar e esquecer não são sinônimos. O perdão ideal seria tratar a traição como um fato que fez parte da história do casal, mas não permitir que ela permaneça mobilizando emoções e comportamentos que determinam a dinâmica do casal. Particularmente, vi isso ocorrer com sucesso em raríssimos casos. Em geral, as pessoas anunciam um perdão (assim como o traidor anunciou a fidelidade), mas a traição não abandona a cena. Um constante clima de desconfiança, a mágoa e a raiva represada não permitem que os dois se vejam como antes se viam. E, muitas vezes, intimamente cultivam tais emoções como um sinal vivo do que ocorreu – não querem superar, mantém a história como um trunfo. Esquecer um evento negativo não é uma decisão com solução imediata, mas cultivar uma lembrança é, sim, uma escolha.

Não quero assumir, com essas palavras, uma postura pessimista. O arrependimento existe, mas ele depende de uma mudança profunda no estilo de vida de cada agente da relação e da própria relação. A traição pode ser um indicativo importante de que o casamento anda mal. Sendo uma espécie de terceiro ser que media os participantes, uma relação desestabilizada sinaliza que todos precisam de revisão e ressignificação de valores.

Além disso, não há uma traição que seja igual a outra – apesar de elas costumarem mobilizar uma teia semelhante de afetos por quem as já experimentou. Em cada caso, ela terá um significado, um sentido peculiar. Há quem “precise” trair para compreender questões familiares profundas. Conheci pessoas que, a partir de uma traição, conseguiram diagnosticar doenças terminais e lutaram para manter a vida. Ou seja, como qualquer outro evento da vida, a traição, em si, é o que menos importa. E sim o que ela quer nos dizer.

Ninguém trai ou é traído porque quer, e sim porque necessita. Condenável como qualquer outro deslize cometido ao longo da existência, ela nos dá a oportunidade de buscar novos significados para o viver. Talvez o mais importante deles é o amor próprio: aquele que alcançamos quando aceitamos e respeitamos nossas limitações e buscamos forças e coragem para transcendê-las. E é só a partir desse afeto que conseguimos olhar o outro como sujeitos, e não como objetos de nossa posse. Até porque quem o vê assim, assim por ele será visto.

Outras Ondas – Os mil tons do masoquismo

Os punhos, imobilizados por uma gravata, situa Anastasia em estado de plena disponibilidade aos desejos de Grey. Enquanto tem os desejos estimulados por uma chibata, percorre suavemente o corpo, até que o suspense se faz: a excitação aumenta a cada segundo entre o momento em que o artefato se afasta do corpo, e quando a ele retorna, agora num golpe seco, definindo quem comanda a cena. Tudo se dá num clima de sedução e mistério, minucioso e envolvente. Vivem tal realidade como num jogo meticuloso, orientado pelo domínio e pela submissão. O clima erótico masoquista que envolve tais personagens arrebatou o mundo, primeiramente a partir do fenômeno editorial da trilogia Cinquenta tons… , escrito pela londrina E.L. James – os livros passam da marca de 100 milhões de exemplares vendidos em todo o mundo, segundo informações da editora Vintage Books, dona dos direitos autorais da obra. Recentemente, o tema retorna à notoriedade a partir da adaptação do primeiro volume, Cinquenta tons de cinza, para o cinema.

Sem trocadilhos, o masoquismo domina a fantasia de homens e mulheres. Uma pesquisa britânica com mais de 19 mil pessoas mostrou que as fantasias sexuais que envolvem humilhação mobilizam 6% da população. Um percentual de 18% dos homens e 7% das mulheres ingleses (cerca de 5,85 milhões de pessoas) declarou se excitar com a ideia de bater em outra pessoa; 11% dos homens e 13% das mulheres fantasiam em apanhar durante o jogo erótico. É verdade que, em muitos casos, tudo fica num campo de idealização: poucos se identificam com a temática a ponto de leva-la à prática, com seus parceiros sexuais. E também não podemos ficar somente nessa nuance do masoquismo. Além do jogo erótico, ele atravessa diversas outras relações do cotidiano.

No entanto, essa estatística é defasada. Isso porque o contabilizado aí se refere apenas às práticas eróticas e sexuais. Podemos definir o masoquismo como uma dinâmica relacional, ou seja, uma espécie de molde de vínculo entre dois ou mais sujeitos, independentemente da natureza da relação. No caso, as relações de caráter masoquista se caracterizam pela associação entre amor/atenção/carinho/prazer com humilhação/desprezo/agressividade/dor. É uma espécie de distorção, pois depende do sofrimento para a realização da relação. Nessa dinâmica, os agentes se dividem entre masoquizantes (os ativos, que impõem, dominam, humilham) e masoquizados (os passivos, que se submetem, são humilhados). Esses papeis são bem estabelecidos, mas podem se alternar com a convivência. Mas nunca os participantes estão em pé de igualdade: são regidos pelo poder.

Isso faz com que o masoquismo não seja exclusividade dos casais. Ele também pode estar presentes em encontros de outra natureza: chefe e empregado, pai e filho, sacerdote e discípulo etc.. Cinquenta tons são insuficientes: são mais de mil nuances possíveis nessa forma de troca entre dois ou mais indivíduos.  Extremamente comprometidos entre si, os agentes da relação masoquista vivem sob uma espécie de contrato, tácito ou explícito, que delimita os papeis e as prioridades da relação. Relacionam-se de uma forma bem ritualizada, exclusiva, como quem segue scripts. Mantém entre si uma espécie de dependência afetiva, explicitado pelos jogos de manipulação retroalimentados pelos agentes, transformando a relação num elemento validador da existência.

Não visam a dor pura e simples, como pensam os leigos. Na verdade, entendem o sofrimento, a privação, a humilhação etc. como um caminho, um preço razoável a pagar para se sentir cotado, observado, inserido, desejado, querido. Negligenciam o respeito e o amor próprio como valores máximos, acima de qualquer relação. A motivação é uma espécie de carência, muitas vezes que não se conhece exatamente de que. O masoquista teme, antes de qualquer coisa, a perda: evita o distanciamento da fonte de nutrição afetiva e, em nome disso, rende-se ao desejo do outro. Diferentemente do que pensa a maioria, não existe o dito sadomasoquismo: apesar de ambas associarem dor e prazer, tratam de duas dinâmicas muito adversas entre si, impossíveis de funcionar como complementares.

Posso afirmar que, em maior ou menor grau, o masoquismo nos atravessa a todos. Num grau mais ameno, aparece como uma fantasia de imposição ou submissão. Em suas nuances mais escuras, tal necessidade transpõe os limites da razoabilidade, transformando-se numa exigência patológica, quando passa a assumir um caráter compulsivo que impede a realização de vínculos baseados em outras dinâmicas relacionais possíveis. Compromete assim a saúde global: física, moral, psíquica, social, relacional, familiar, econômica, espiritual.

As origens do masoquismo no psiquismo são múltiplas, mas em geral tem franca relação com a infância e as referências parentais, ou seja, com o modelo de relação apreendido dos pais e familiares próximos. Há também casos deflagrados por situações traumáticas, como sujeição a abusos – não exclusivamente de ordem sexual. Independentemente da origem, a situação original dá origem ao complexo masoquista, que tenderá a buscar situações que o corrobore. A depender do histórico e da estrutura, o indivíduo poderá assumir o papel ativo (que impõe) ou passivo (que se submete) na relação. Pode, inclusive, alternar entre essas duas vertentes, a depender do agente complementar que encontre. Por exemplo: impõe-se diante dos funcionários, mas age de forma submissa diante da mulher.

Ao entendermos o masoquismo como uma dinâmica relacional, não podemos considerá-la uma escolha ou eleição, e sim uma necessidade. Até mesmo entre os sujeitos identificados com essa dinâmica, ou seja, os consumidores de algemas e outros apetrechos de sexshops, percebe-se um conflito latente por estarem vinculados a tal vivência. O masoquismo surge como uma estratégia relacional pela ausência de outros referenciais mais saudáveis. Assim sendo, o masoquista não é alguém a quem cabe julgamentos morais ou sociais. Como qualquer ser humano, ele busca a sua realização, o seu ideal de felicidade, a partir dos recursos que conseguiu desenvolver para viver. Observa o mundo com sua óptica particular. A intervenção analítica/terapêutica se dá não com o intuito de cura, e sim de despertar a outras formas de relação possíveis. Dessa forma, pode reduzir os possíveis prejuízos ocasionados pelo masoquismo, pela ampliação da consciência, em nome do bem-estar.

Visto de perto, percebe-se no ato masoquista um escape para a saúde: ele surge na maioria das vezes como uma oportunidade de revisitar situações e temáticas mal assimiladas pela psique, com o intuito de dar a elas um novo significado. Assim sendo, seguem o impulso construtivo do Self, a nossa totalidade psíquica, que sempre aponta à autorrealização do indivíduo como alguém pertinente a si mesmo e pertencente ao sistema no qual se insere. Busca, com isso, nortear a um sentido para a existência.

Veja Brasília: 100 tons de masoquismo

A coluna Nas asas do Planalto, assinada por Lilian Tahan na Veja Brasília, antecipou a publicação do livro que escrevo sobre o masoquismo. Ficou assim:

***

Foto: Roberto Castro/Veja Brasília

 

100 tons de masoquismo

Levante a mão (acorrentada) quem sempre achou que o masoquismo se limita às relações eróticas e se enquadra apenas nos encontros de alcova. Engana-se, pois. Tecnicamente, a dinâmica em que uma pessoa escolhe ser o dominador e a outra o dominado é muito mais ampla e pode envolver o vínculo entre amigos, mãe e filho, chefe e funcionário, por exemplo. O assunto virou tema do livro que o psicoterapeuta e analista junguiano João Rafael Torres  lançará até o fim do ano. “Não são só cinquenta tons de cinza, mas 100 tons de masoquismo. Esse processo que confunde cuidado, amor e atenção com violência, imposição, submissão e humilhação atravessa vários tipos de relação em diversas gradações”, alerta Torres. Embora seu livro seja mais voltado para o público especializado, se metade dessas possibilidades de masoquismo já fez muita gente pirar, imagine o que um leque ampliado não pode causar.

***

Clique aqui para ler a coluna no site da revista Veja.

Babel: Quando amar é demais

Concedi uma entrevista sobre o amor compulsivo ou patológico à Revista Babel, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Eis o texto.  

 ***
 

Duas mulheres falam sobre sua dependência em relacionamentos destrutivos

Por Beatriz Amendola

“Eu atravessava a cidade para encontrá-lo. A gente transava no carro, para logo depois ele me largar em alguma estação do metrô e ir embora. Eu ia embora chorando todas as vezes, querendo que ele conversasse comigo. Ficava no carro enrolando, esperando que ele me quisesse por mais tempo. E ele continuava me dizendo que tinha que ir, que eu devia ir. Isso me destruía completamente. Não me sentia nada além de um corpo”. O relato pode parecer inspirado em um romance da ficção, mas o faz-de-conta não é tão inventado assim quando se trata de relacionamentos amorosos que trilharam um caminho bem diferente do tão desejado “felizes para sempre“ e passaram a se sustentar na dependência emocional.

Luciana*, a protagonista do relato acima, é uma entre tantas pessoas no mundo que viram seus namoros e casamentos – aparentemente perfeitos – entrarem numa espiral permeada por insatisfação, indiferença e até humilhação, mas que não desistiram por se verem demasiadamente ligadas ao parceiro. São histórias que contradizem ao máximo o famoso verso de Camões, que chegou a dizer que o amor “é ferida que dói e não se sente“. O amor dói sim – mas quando ele vira um inferno essa dor  passível de ser ignorada.

Desiludida após um relacionamento fracassado, Luciana não resistiu ao charme do colega de trabalho comprometido com outra mulher. “Pela primeira vez, decidi que ficaria com alguém que namorava, sem sequer me importar com sentimentos alheios. Afinal parecia que ninguém se importava com os meus. Então, fiquei com o João*, mesmo ele namorando“. Mas sua intenção de apenas aproveitar o momento foi além disso – e ela caiu nos encantos do rapaz infiel que lhe dispensava o afeto e carinho pelos quais ela tanto esperava.

“Nunca na minha vida tive aquela atenção, sequer dos meus pais… e estava lá alguém que parecia me dar tudo que nunca tive… como deixar aquilo? Parecia tão injusto comigo. Quantas mulheres não se envolviam com homens casados e tinham relações de anos? Era o que eu pensava naquela época. Mas Deus foi injusto comigo, me fazendo ficar com alguém que meu deu tudo e que eu teria que abandonar. E não, eu não abandonaria a ‘melhor coisa que me aconteceu’. Eu estava completamente iludida”, disse Luciana.

A ilusão pelo “bom-moço“, essa figura tão mística que está presente na cabeça das mulheres desde cedo, não fez dela sua única vítima. Apaixonada por um amigo de seus primos, Maria* viu nele o homem de seus sonhos. “Aparentemente parecia perfeito: bonito, inteligente, carismático, dentista com consultório próprio, solteiro”. O namoro veio rápido, um mês depois.

Os problemas, porém, começaram a aparecer quando ele passou a alimentar sua insegurança com comparações entre ela e sua ex-namorada e isso a levou a adotar atitudes apenas para a satisfação dele. “Ele dizia que ela era incrível na cama, tinha experiências bissexuais… isso já despertou uma insegurança enorme em mim e comecei a me sujeitar a várias práticas sexuais para agradá-lo, como sexo anal frequente e até asfixia”, conta.

O parceiro ainda passou a mostrar uma faceta que se revelou dominadora e agressiva, o que forçou Maria a entrar em um ciclo de tensão constante: “Ele tinha acessos de fúria e eu não podia discordar dele em nada, ficava oprimida. Qualquer besteira era motivo para ele gritar comigo, dizer que queria terminar, que não gostava de mulher enchendo o saco e que tinha uma monte de outras mulheres atrás dele. Bem cruel, eu diria. De um estado amoroso se transformava num monstro agressivo. Nessas situações eu me humilhava, pedia desculpas, chorava muito e depois ele sempre se arrependia, pedia desculpas. Era emocionalmente muito desgastante”.

Marcados por agressividade, descaso e indiferença, os relacionamentos das duas mulheres se encaixam na categoria de relacionamentos destrutivos, que possuem um conceito mais amplo do que a violência física a qual costumam ser associados frequentemente. Além dos possíveis danos físicos, esse tipo de envolvimento pode causar prejuízos morais e psíquicos que variam de pessoa para pessoa, uma vez que a dor e a humilhação são sentimentos extremamente subjetivos. “Uma palavra, ou até mesmo uma negligência, pode levar a um comprometimento semelhante a uma agressão física, a depender da fragilidade de quem a recebe”, explica o psicoterapeuta e analista João Rafael Torres

No caso de Maria e Luciana, as relações, que duraram mais de um ano,  deixaram marcas profundas na vida e na alma de cada uma. Tomada pela insegurança e pelo medo, Maria parou de comer. Perdeu quase dez quilos. Obcecada e com depressão, começou a tomar tranquilizantes e, pelas faltas frequentes no trabalho, acabou demitida. Reuniu forças e pediu um tempo para o namorado. Pouco depois, entretanto, os dois combinaram de passar um ano novo juntos. E ele desmarcou de última hora. “Surtei“, diz ela, que reagiu se entregando ao vício em álcool e drogas nos meses seguintes.

Luciana soube do término do relacionamento pela namorada de João* – com quem, aquela altura, ele havia tido um filho e exibia felicidade nas redes sociais. A “oficial“ lhe enviou um email, onde contava que sabia do caso e colocava um ponto final na história. Do amante, porém, não ouviu uma palavra sobre isso, ainda que ele ligasse para conversar periodicamente. Mesmo sem se encontrar com ele, Luciana esperou dois anos que ele largasse a família para viver com ela – o que nunca aconteceu.

As consequências nefastas para a segurança e a própria imagem, ainda nos estágios iniciais dos relacionamentos, não foi suficiente para afastar Luciana e Maria dos – ao menos no sentido mais literal da palavra – companheiros. O misto de insegurança e traumas passados tornou o processo de desvinculação mais complicado do que poderia ser. Iludida pela ideia de ter encontrado “o homem de sua vida“, Maria ainda foi afligida pela ideia de não conseguir um casamento depois.  “Estava realmente apaixonada e achava que ele era o meu príncipe encantado. Como eu já estava com mais de 30 anos , na minha cabeça achei que fosse minha última chance de casar, pois já sofria muita pressão social por parte de amigos e família.”

Já Luciana encontrou em João o reflexo da própria história de sua família. “[Ele era] o homem inacessível, como meu pai. Sempre tendo mais de uma mulher. E hoje, percebo que, se ele abandonasse a família, seria a prova maior de amor. Meu pai fez isso, abandonou a família dele pra ficar com minha mãe. Eu ficava porque era tão bom ter atenção… e era algo que sempre lutei muito pra ter na minha família, e estava alguém lá, carente como eu, que no começo supria isso, e cada vez que eu ia embora, ele vinha e me dava toda aquela atenção, todo aquele carinho que eu não tive”.

Vindos do presente ou do passado mais distante, os medos e inseguranças exacerbados contribuem para que a situação, mesmo que infeliz e com possíveis violências psicológicas, se cristalize, de acordo com a psicanalista Belinda Mandelbaum, coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Para ela, a manutenção desse quadro está associada a padrões que vêm desde a infância e se repetem continuamente.

João Rafael Torres corrobora essa análise, afirmando que o histórico familiar, particularmente, é imprescindível para construir a baixa autoestima que levará uma pessoa a se atrelar a um relacionamento destrutivo. “É nas relações parentais que aprendemos o “modelo” de relação a seguir. Por exemplo: a filha de uma mulher que tenha se submetido ao masculino tenderá a buscar homens que repitam o mesmo padrão de comportamento; ou poderão caminhar ao outro extremo, assumindo o papel da “mulher forte”, que se impõe sobre o masculino – ou seja, buscará homens vulneráveis, e a dinâmica abusiva será mantida“.

A autoestima, essa percepção que cada um tem de suas características e de seus valores, é um conceito chave para se compreender a dependência em relacionamentos ruins. Com uma dificuldade em reconhecer suas próprias virtudes, a pessoa passa a buscá-las no parceiro, o que fará com que a relação seja supervalorizada. Soma-se a isso o fato de a insistência do companheiro ser vista por ela como um sinal de valorização, a grande realização de quem sofre com problemas de autoestima. “Obviamente, é uma gratificação torpe, pois acrescenta poucos valores a cada um dos envolvidos“, completa João Rafael.

Um namoro ou casamento de caráter destrutivo pode fazer  muito para agravar o quadro, pois deixa a pessoa ainda mais vulnerável a suas inseguranças, de acordo com Belinda. “Há relatos de pessoas que sofrem essa violência sistemática e acabam incorporando o discurso e se sentindo sem valor. O companheiro pode fazer muito no sentido de melhorar a auto estima ou prejudicar”.

O adicional da violência, porém, não é um fator que só aparece em casos particulares. Belinda explica que ela é um componente que está nos fundos de qualquer relacionamento, uma vez que o amor e a atração também convivem com sentimentos de raiva, ódio e frustração. “A diferença de como a situação se desenvolve vai depender da dinâmica do casal. Tudo depende de como o casal lida com esses sentimentos. Se eles conversam, se há uma expectativa de que eles devam sempre concordar em tudo, se um precisa culpabilizar o outro”, explica.

A relação de Luciana com  João acabou tomando esse rumo quando as brigas se tornaram frequentes e ele parou de atender suas ligações para evitar discussões. Com a pouca conversa e os contatos esparsos, ela confessou que sua autoestima foi abaixo: “eu ficava louca e ligava, ligava, ligava… umas 30 vezes. Me sentia impotente e não podia ligar pra casa dele, pois sabia que com isso ele me abandonaria de vez. Então chorava e, após um tempo, entrei em depressão. Me sentia humilhada, um corpo, um símbolo sexual, uma vagabunda, uma destruidora de lares, uma mulher sem moral. Era uma briga constante comigo, me senti mais baixa do que nunca”.

O relacionamento atribulado com o ex egocêntrico – que chegou a decidir o futuro do namoro em um jogo de paciência – também detonou o bem estar de Maria consigo mesma. “Estava surtada, com as ideias embaralhadas, com um desespero profundo. Achei que fosse morrer de tanta dor, não via luz no fim do túnel  Era como se ele fosse o último homem na face da terra e eu fosse ficar sozinha, me sentindo um lixo, para sempre”.

Após as experiências, tanto ela quanto Luciana ainda se consideram em recuperação, ainda que haja uma diferença de seis anos entre o fim de seus namoros. Ambas encontraram conforto nas reuniões do grupo Mulheres Que Amam Demais Anônimas (MADA), onde as mulheres que já passaram por situações de relacionamento destrutivo se ajudam compartilhando suas histórias. “Tenho tido grandes progressos em relação às minhas atitudes perante os relacionamentos e tenho certeza que jamais me sujeitarei a uma situação emocional  como essa novamente. No início, é difícil modificar os padrões de pensamentos e atitudes, mas depois de um tempo mudamos realmente”, conta Maria, que já frequenta o grupo há sete anos.

Não há uma fórmula única para se recuperar das marcas deixadas por relacionamentos destrutivos. Segundo João Rafael, porém, o autoconhecimento e o fortalecimento dos próprios valores é uma das chaves para evitar a mesma armadilha no futuro. “Potenciais abusadores estarão sempre disponíveis para encontrar novas vítimas. Mas só será vulnerável a essa investida quem não exerce o respeito por si mesmo”.


*Os nomes foram trocados para preservar a identidade das entrevistadas

***

Clique aqui para ler no site da Babel.

nivas gallo