O Correio Braziliense publicou hoje uma homenagem que fiz a dona Canô. Uma crônica sobre o nosso encontro, realizado três anos atrás.
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A casa e alma
Visitar alguém centenário exige reverência. E foi revestido com esse sentimento que, numa manhã do caloroso verão baiano, desembarquei na rodoviária municipal de Santo Amaro da Purificação, três anos atrás. Fui em busca de Dona Canô, para o primeiro encontro pessoalmente, depois de três entrevistas realizadas por telefone – ainda nos idos de jornalismo no Correio. A casa branca, com detalhes azul-marinho, reproduzia as mesmas cores do colar de pequenas contas que se encontrava no pescoço da doce senhora. Adorno consagrado ao orixá Nanã, a grande protetora da matriarca da família Telles Velloso.
No candomblé, Nanã é a senhora dos primórdios, dona das águas paradas, escuras e profundas. Divindade da lama, que molda o corpo do homem para dar-lhe a vida, e que também o recebe, depois da morte. Outros orixás também se faziam presentes, a partir dos diversos colares litúrgicos pendurados na cabeceira da cama. Dividiam espaço com terços e rosários — assim como no pescoço de Dona Canô, que abrigava uma medalhinha da Nossa Senhora dos brancos, ao lado do símbolo da Grande Mãe dos Pretos. A miscigenação é fruto do respeito, da concisão e da serenidade desta senhora. Acolhedora, recebeu a mim em seu próprio quarto, como se eu fosse da família.
Tendo a religiosidade como grande marca, resolvi agradá-la com um presentinho. Com sorriso, recebeu a imagem de São Francisco, ajoelhado, entalhada em madeira. Mas a risada foi mais alta quando ouviu que o pretexto da minha viagem tinha descido pelo ralo. Tinha eu esquecido o envelope com as reportagens, com as quais ela tinha colaborado. “Meu filho… e depois dizem que sou eu que estou assim, assim…”, disse, rindo, apontando para a cabeça branca. Entendi ali que podia ser reverente, mas sem ser protocolar. Algo de intimidade já se estabelecera entre mim e Dona Canô.
De certo, a lucidez era sua grande marca. Lucidez para falar da primeira casa, onde viveu logo após se casar com Zeca — o grande amor de sua vida. E para, em segundos, avaliar politicamente o governo de Lula (de quem era admiradora declarada) e para prospectar sobre a chegada da primeira mulher ao Planalto. Engajadíssima e cidadã, trazia no discurso nuances de ecologia e sustentabilidade. Tudo com serenidade, na medida exata que só encontra quem bem a vida conhece.
Fomos interrompidos por Rodrigo, filho e guardião. Trazia notícias do telefone. Mabel, uma das filhas, ligara para dizer que discutira com a irmã Clara Maria os cuidados alimentares de Canô. “Agora, veja isso, meu filho. Eu, com mais de cem anos, e ainda tenho de lidar com duas meninas que, mesmo de longe, querem decidir o que eu como”, retrucou. As “meninas” já passavam dos 60 anos, vale ressaltar. Por vontade, ela mesma comandaria as panelas. Mas o médico tinha proibido.
Dona Canô era uma velhinha de corpo miúdo, cuja idade deixou ainda mais frágil. Mas a alma era negra, de seios fartos e braços firmes, para acolher generosamente e defender os seus dos males do mundo. Seu maior orgulho, francamente declarado, foi de ter sido uma mãe honrosa. A admiração dos seus e pelos seus reinava naquela casa, naquelas paredes. O quarto, a sala ampla… Tudo era adornado com um bocado de bibelôs, santos, porta-retratos e pôsteres emoldurados da filha famosa. Entre ela e Bethânia, um processo mútuo de devoção. Mas, na verdade, o que mais adornava a casa de Canô era o amor. A casa e a alma.
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Para encerrar o ciclo de homenagens, a canção oportuna. “Amor, festa e devoção. Ensinamentos dela para o bem-viver”, nas palavras da filha Bethânia.