Self

Outras Ondas* – A dura vida agreste

“Falta muito?, perguntou Myra, no desvio do descampado deserto, agreste de árvores cinzas da madrugada, rebanhos de ovelhas e bois com a cabeça descida à terra ocre, de fome, de sono. Falta o que falta da história. E o Sr. Kleber sorriu. Não tenhas medo, miúda. Em todas as histórias há sempre uma ponta de paraíso, um véu de clemência que estende uma ponta, fulgaz que seja.” (Maria Velho da Costa, Myra)

Sou filho de nordestinos que, felizmente, nunca passaram fome. Mas que a observaram de perto, durante a infância, em diversas situações. De certa forma, tenho um quê de aridez no sangue que me alimenta. Certamente, esse fator participou diretamente na escolha da minha atividade profissional. Enquanto terapeuta, trabalho com a tentativa diária de entender a força e a dor que a vida árida traz a cada ser.

A vida se torna árida sempre que nos percebemos com pouca ou nenhuma alternativa, quando vemos a esperança de sobrevivência em uma quantidade pouca de água salobra – bebida com a avidez de quem não pode ser negligente às oportunidades. Ela inspira palavras e gestos secos, pontiagudos e espinhentos como a vegetação da catinga e do cerrado. Folhagens duras, opacas e secas, que refletem a resistência de quem precisa sobreviver diante da restrição. A sábia adaptação transforma fauna e flora dessas regiões em vencedores, heróis por resistência diante da adversidade.

Resistentes, porém pouco maleáveis. A água é quem confere à natureza e também ao nosso mundo interior a plasticidade, a maleabilidade necessária para enfrentamentos com menos força e mais jeito. O árido confere a propriedade do recipiente que coleta, dá forma e contém a instabilidade dos líquidos. Mas são eles quem matam a sede, quem oferecem o acalanto necessário para propiciar a vida. No ambiente agreste, a água é a maior riqueza. A revolta que a sede provoca, por sua vez, pode induzir ao erro: tenta nos iludir, tirando-lhe a importância.

É quase uma ironia da natureza, mas quem apresenta couraças fortes de defesa, em geral, são povoados pela mais doce água. Assim como os mananciais mais puros se ocultam sob as mais grossas camadas de terra dura e pedras. O elemento, escasso na superfície, é abundante nas entranhas da terra. De lá, em raros momentos, brota o otimismo e a renovação, manifesta na solidariedade típica de quem sofre, na esperança de dias melhores.

Quando a seca é grande, o povo agreste se atemoriza. Não só pela morte da vida provocada pela falta de água, mas também porque a estiagem demorada aponta para um futuro impreciso: quando a chuva vier do céu, virá de forma torrencial, temerosa, inundante, desmedida. O flagelo se apresenta no muito e no quase nada. O sertanejo, precavido e temente, pede a clemência dos céus: traga, ó Deus, a medida certa – aquela que nutra, gere reserva, mas que não aumenta o meu sofrimento, que não endureçe a couraça que a vida já ofereceu.

O mundo moderno, asfaltado e concretado, transforma-nos em sertanejos de alma. Nos acostumamos com a pouca água dos afetos, saciamos nossa sede com prazeres vãos e, com o tempo, nem diferenciamos mais a água limpíssima daquela que simplesmente sacia a sede do momento. Nessa aridez do tempo e da competitividade, comparamo-nos, sem pensar, com animais que disputam uma cacimba rasa e suja, onde jaz a carcaça do companheiro-bicho que morreu antes de nós. Esquecemos de escolher uma árvore, mesmo que espinhenta, para sentar embaixo, descansar e refletir sobre as chances que esse cenário pode nos propiciar. Perdemos assim o melhor fruto que a aridez nos oferece: o amadurecimento, e não o embrutecimento.

Outras Ondas* – A forçosa dor do começar

sao_jorge

Um novo texto, uma nova atividade, um novo desafio. Tudo que se principia leva a uma série de questionamentos. Valerá a pena? Serei capaz de atender minhas expectativas e aquelas projetadas em mim? No que isso irá contribuir para a minha felicidade? Muitas vezes, hesitamos diante do novo, assustados com tantas interrogações. E, posteriormente, nos queixamos pela falta de oportunidades que a vida nos oferece.

Viver é perigoso, como advertiu Guimarães Rosa com toda a razão. Afinal, o risco, assim como a dor, são entes inerentes ao desenvolvimento humano. Aprender a andar, escolher uma profissão e passar no vestibular, experimentar a sexualidade, reconhecer-se nos filhos… Os grandes momentos da trajetória, mesmo aqueles lembrados com a maior ternura, foram antecedidos pela tensão da escolha: lapsos de segundos ou anos a fio na indecisão de seguir ou recuar. Seguimos e, posteriormente, percebemos que era sim o melhor caminho a escolher. Essa era a vida que precisávamos realizar.

No tarot, temos isso representado sabiamente pelo diálogo existente entre os arcanos 6, Os Amantes, e 7, O Carro. No primeiro, entendemos que a realidade oferece diversas maneiras de se manifestar e somos chamados a escolher. Muitas vezes, maldizemos a tal bifurcação que se apresenta diante dos olhos: um caminho reto, sem decisões, não coloca à prova nossa perspicácia diante do desconhecido. Percebemos que, a cada escolha, provocamos uma reconfiguração no caminho que nos levará à realização da vida.

Muitas vezes, hesitamos pelo pessimismo: tentamos optar pelo caminho menos pior, aquele que nos poupará de privações e contrariedades. Mal compreendemos que nunca escolhemos o melhor caminho – escolhemos, sim, a alternativa que precisamos enfrentar em prol do nosso crescimento. Dizer isso não é depositar uma crença em um destino fixo, pré-estabelecido. É crer que somos orientados por uma sabedoria interior inata, capaz de oferecer ao ego as lições necessárias para o desenvolvimento da consciência.

Passada a aflição da escolha, entramos no arcano 7, o Carro. Ele é o veículo que estreitará a distância entre nós e nosso objetivo que determinamos. O carro oferece a possibilidade de “acelerarmos” os processos, por esse motivo é considerada uma carta de progresso e expansão. No entanto, ela depende de um olhar bem focado – por melhores que sejam os cavalos e a carruagem, a virtuosidade está na habilidade do cocheiro. É ele quem exerce o soberano exercício da coragem, um risco que nem todos estão dispostos a enfrentar. Mas também é ele quem conhece a vitória da realização.

O grande mal do indivíduo é viciar-se em si mesmo. Mantemos hábitos condicionados, repetidos à exaustão sem nenhum questionamento, e mantemos viva a queixa de uma vida inerte. Mantemos o padrão neurótico da unilateralidade: só conseguimos enxergar uma versão para a história, uma saída para o problema, um motivo para o problema. Nessa visão limitada, ignoramos a dádiva da multiplicidade dos fatores e perdemos a chance de aproveitá-los como estruturas disponíveis ao desenvolvimento. E o tal sofrimento que tanto se tenta evitar nos chega antes e com força exponencial: pela não-concretização dos propósitos e pela frustração de não sermos hábeis o suficiente para concretizá-los.

O erro está em olhar para o fim, ignorando que toda estrutura depende de uma pedra fundamental para se erguer. Realizar sonhos depende impreterivelmente de uma ação inicial, onde a confiança e o otimismo devem sobrepor a insegurança diante do desafio. O difícil é começar, escuto diariamente dos clientes que atendo – fala que compreendo bem, mas que busco combater com a justificativa de que vale a pena mudar. A impermanência é uma lei natural: nada é estanque, tudo se transforma. Devemos obedecê-la a fim de promover boas mudanças, como agentes ativos no processo e não como vítimas das circunstâncias. Acredite: você não é mais a mesma pessoa.

nivas gallo