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Psique: Vivemos numa sociedade em que é constrangedor ser mulher

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Quem tem vergonha não faz vergonha. Esse ditado popular fala sobre constrangimento. Aquele sentimento que podemos perceber quando cometemos e reconhecemos nossos equívocos. Aquele sentimento que podemos provocar, quando estamos seduzidos pelo poder e queremos nos impor sobre alguém.

Vivemos numa sociedade em que é constrangedor ser mulher. Se for bonita, ou se não for. Se for sarada, ou se não for. Se for uma profissional de destaque, ou se optar por não trabalhar. Se falar, se tiver opinião.
Constrange-se dentro de casa, quando o tratamento dado entre meninos e meninas não é só diferente, e, sim, quando elas são subestimadas. É reforçado na escola (“meninas levam pratos, meninos levam bebidas”; “essa brincadeira não é para você”; “fulana é fácil”).

Cecília, 3 anos. Aos prantos, arruma uma bolsinha. Queria ir pra rua, para arrumar um marido. A mãe, talvez sem saber que reforçava um estereótipo, postou nas redes sociais e virou meme. O constrangimento vem do homem e vem da própria mulher, inconsciente do machismo que a impregna.

Mal sabe Cecília que, quando chegar no mercado de trabalho, enfrentará absurdos ainda maiores. Não só o acinte da diferença salarial. Mas principalmente os olhares duvidosos, desejosos, indecorosos. Ela ainda será muito constrangida, simplesmente por ser mulher.

Muitos (e muitas) rirão das piadas que lhe serão feitas, por maldade, incompreensão ou por constrangimento. O mundo não está preparado para ela. Talvez por isso, inconscientemente, ela ainda enxergue no artifício do casamento uma saída viável de sobreviver com algum respeito. E nem sempre é o suficiente.

A lei que protege contra as agressões domésticas tem nome de mulher porque são elas quem mais sofrem com esse tipo de ataque. Sofrimento físico, letal, incapacitante. Sofrimento psicológico, que mata as possibilidades de realização e a honra.

Mulher que reclama os direitos que tem é feminazi. Quando apontam as vulnerabilidades de seus opressores, o fazem por serem “mal comidas”. Se apontam incoerências que subvertam o discurso masculino, são taxadas de loucas.

Louca, um dia me ensinou uma mulher de grande respeito, talvez seja a maior das ofensas conferidas a uma mulher. O louco sintetiza o incapaz, o alienado, o inconveniente, o insociável, aquele que não merece nenhum crédito. Chamar de louca é matar na mulher a sua dignidade humana.

 

Sem contar que as mais terríveis ofensas remetem ao feminino, associando-o a algo pejorativo — filho da puta, puta, viado, bichinha. Sim, a homofobia é um traço coerente ao pensamento misógino. Tais xingamentos escapam dos lábios até mesmo dos mais atentos sobre questões de igualdade de gênero.

É maior que todos nós, infelizmente. E é por isso que o debate precisa acontecer. Somos impregnados pelo machismo. Isso nos faz achar o constrangimento algo normal. Ninguém precisa ser feminista. Se conseguir desbotar um pouco a nódoa machista, já está valendo.

Psique: Mayer errou, e reconhece isso. O machão brasileiro que o habita, não

Crédito: Metrópoles/Globo/João Miguel Junior

 

Por ao menos uns 30 anos, do que me acusa a memória, vejo José Mayer na televisão no papel de galã. Bonito ele nunca foi, mas foi entronado como ícone da masculinidade: o macho sedutor, com voz firme e assertiva, olhar intimidador, “homem de verdade” – ouvi diversas vezes de diversas mulheres.

Isso constituiu um senso comum nacional. Já passa da casa dos 60 e ainda desbanca seus sucessores nessa função de Don Juan. Por quê? Era o desejo da audiência, que gostaria de vê-lo sendo o que sempre foi. O papel de vozinho amável, ou de homem frágil, não lhe cabe. O do devorador, sim, como uma luva.

Este não é um texto de condenação ou absolvição. Não é o meu papel. Uso apenas uma história notória para ilustrar como parimos nossos mitos. E, principalmente, para alertar sobre o quanto acreditamos nas ilusões que construímos. Especialmente quando estas são reforçadas pelo coletivo.

Todos buscamos papéis a desempenhar. Tendemos a dar mais ênfase àqueles que nos oferecem mais gratificação. Galã, mãe, cuidador, sábia, animadora, disciplinador, etc. Tudo isso é bom, válido e precisa ser exercido por alguém, em algum momento. Não por você, o tempo todo.

Mayer provavelmente se sentia habilitado a cantar qualquer mulher, em qualquer circunstância, e a acreditar que tal gesto (por mais agressivo que fosse) seria interpretado com lisonjeio. Afinal, era ele – o fiel representante do arquétipo do machão brasileiro, aprovado, corroborado e retroalimentado gerações após gerações, por nós, brasileiros.

Personagem após personagem, essa imagem arquetípica vai se acomodando nele, tingindo-lhe as atitudes. Transforma-se numa espécie de personalidade-irmã – aquilo que Jung chamou de complexo afetivo. Ele tem uma interpretação particular da realidade e agirá de forma correspondente a isso.
Certamente, o ator sentiu-se gratificado em muitas das vezes em que tal complexo lhe tomou corpo e atitude. Talvez tenha se manifestado para além das câmeras e ribaltas. Talvez tenha funcionado em investidas anteriores, com outras mulheres. Menos com a figurinista Susllem Tonani.
Ela, por sua vez, empresta o corpo para outro arquétipo contemporâneo: o da mulher que cansou de sofrer investidas violentas, que não se sente refém do domínio masculino, que acredita na denúncia que será ouvida. Outras já ocuparam esse lugar (Maria da Penha, por exemplo), permitindo uma atualização e expansão do arquétipo. E isso tem nos feito melhores.

A mea culpa do ator é coerente, quando aponta para um sentimento de confusão, de inadequação. Mayer errou, e reconhece isso. O machão brasileiro que o habita, não. Este não pedirá desculpas, pois não se sente em erro.

O tempo dirá se a discussão que esse evento gera, ou repete, renderá um legado. Afinal, para isso servem os mitos: para que a experiência vivida por uns evite o sofrimento dos próximos.

Psique: Dia das mulheres. Não é à toa que sabedoria é um substantivo feminino

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Enganam-se aqueles que pensam que o dia de hoje é de comemoração. Ou quem acha que é uma tolice, uma deferência boba para agradá-las. Quem acha que uma rosinha ordinária, oferecida da boca para fora, encobre o violento silêncio, a cantada barata, a diferença salarial, o menosprezo, a sobrecarga.

São inúmeros os perigos que cercam as mulheres. O principal deles é a desconfiança sobre quem são, sobre a capacidade que têm. Negar-lhe a condição de paridade, fazê-las acreditar que são inferiores. E que, como tal, devem se submeter às condições mais espúrias.

Na condição de homem, falo aqui de atrevido. Muito provavelmente por repetir, ainda que munido da melhor intenção, a ideia de que elas precisam ser defendidas, acolhidas, por serem frágeis. Percebo, ao escrever, o quão impregnado estou pelo espírito machista, por esse traço perverso do inconsciente coletivo.

Eu deveria simplesmente calar, deixar que falem por si. Mas não dá, não consigo. Especialmente eu, que delas tanto dependo. São meu sustentáculo afetivo e espiritual. Profissionalmente, tenho mais pacientes mulheres que homens, mais leitoras que leitores. E, de onde estou, vejo o quanto são abusadas, desde cedo, incessantemente. Por homens e por outras mulheres que aderiram ao esquema de opressão.

Recebo em meu consultório mulheres envergonhadas, em contradição. Duvidosas da capacidade de conquistar benefícios. Submissas, dominadas pelo medo do que seriam se perdessem seus companheiros. Cumprindo o enfado de constituírem o tal sexo frágil.

Também chegam armadas até os dentes. Masculinizadas, competitivas, impositivas. Predadoras de homens débeis. Com grandes bandeiras empunhadas, e intimamente sofridas pela falta de identificação com aquilo que defendem. Desejosas por “coisas de mulherzinha” – confessam constrangidas, referindo-se à saudade da feminilidade perdida.

Muitas vezes, apenas repetem as referências transmitidas por suas semelhantes. Calar, gritar, falar grosso – sem saber exatamente por que agem assim.

O exercício de ampliação da consciência quase sempre parte de uma premissa: identificar os temas que estamos representando na vida para diferenciar-se dele. Ou seja, tirar o indivíduo do lugar comum e levá-lo a compreender sobre as potências que a vida lhes reserva. Fazer emergir da alma nossa natureza mais particular e profunda.

E nesse movimento elas levam vantagem. Não só pela sensibilidade inegável que têm, mas principalmente por terem coragem para enfrentar a dor em nome de um bem maior. Elas estão predispostas naturalmente a fecundar, gestar, parir, cuidar. Sejam pessoas, projetos, relações.

Isso predispõe a mulher a acreditar, a apostar no futuro. Não sucumbem facilmente à dor e ao sofrimento. Repousam sobre eles, ouvi-los, retirar-lhes um significado. Coisa que nós, homens, só fazemos com muito custo. Somos ávidos por soluções imediatas, mulheres compreendem o tempo das coisas. E assim ensinam por que sabedoria é um substantivo feminino.

Psique: Uma mulher poderosa é aquela que acredita em si mesma

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“O olhar de uma mulher faz pouco até de Deus, mas não engana outra mulher.” Vejo verdade nos versos de Chico Buarque de Holanda. Como homem, inclusive. Coloco-me reverente ao poder infinito do feminino. E me entristeço, intimamente, com aquelas que não acessam essa fonte.

Maria, velando o filho aos pés da cruz. Yemanjá, seios fartos para alimentar filhos que não pariu. Diana, um seio a menos para facilitar a caça. Salomé, dançando pela cabeça de João Batista. Helena, a origem de uma ilíada. Roguem a estas, por favor.

Conheçam Maria Quitéria, Elza Soares, Clarice Lispector, Irmã Dulce. Stella de Oxóssi, monja Coen, Viviane Mosé. Raimunda, Ismália, Daniela, Fabíola, Mariene. De onde estou, é para elas que olho. Para ver como me veem, ou veriam. Cada uma, a seu jeito, sendo mulher do tutano do osso aos cílios – postiços ou não.

Poder nas vísceras
A ideia desse texto partiu da conversa de três homens, todos declaradamente rendidos aos atributos do feminino. Seja daqueles que vivenciamos por meio de projeções, seja daqueles que acessamos a partir do nossa ânima – a porção de mulher que habita cada homem.

Falávamos do filme “O conto dos contos”, ainda em cartaz. Nele, a história de três reis submetidos à força do sexo oposto, que lhes invadia de fora para dentro e de dentro para fora. Vale a pena assistir para sabermos como os afetos podem mobilizar o homem ao extremo, levá-los à ruína dos impérios. E também para entender a natureza visceral da mulher, a fidelidade que têm às emoções.

E é das vísceras que brota esse empoderamento que falo. A mulher é a mãe do eros, do desejo, do envolvimento, da relação, da transformação. Da capacidade de resistir, de persistir, suportar. Das artes da paciência, do cuidado. Sem o feminino, nenhuma terra é fecunda, nada vinga. Tudo fica solto, nada faz sentido.

Resgate de valor
No entanto, a vida é injusta em muitos momentos. O poderio masculino reduz tanto a mulher que, muitas vezes, elas chegam a assimilar essa ideia. Enxergam-se menores. Ressaltam incapacidades e insuficiências – além daquelas que deveriam ser particulares a qualquer ser humano, ressalto. Uma mulher subjugada a essas crenças é a coisa mais triste do mundo.

Mulher pensa, mas não pensa como homem. Homem sente, mas nunca como uma mulher. Nem mais, nem menos: diferente.

 O que faço aqui, ao escrever isso, é somente uma provocação. Não é legítimo da minha parte querer ensiná-las a serem melhores – não estou habilitado a isto, nem de fato nem de direito.Mas acompanho diariamente a batalha de mulheres que olham de baixo para cima. Que confundem a luta a enfrentar com uma sina a cumprir. Que medem por baixo as próprias capacidades, por não compreenderem o quão valorosas são. Que submetem-se ao mando tirano do masculino, explícita ou tacitamente. Que ainda priorizam agradar, em vez de agradarem-se.

Chico me ajuda muito nesse exercício. Se existe, não conheço um homem que melhor compreenda as particularidades delas. Que encarne e verbalize melhor a psique feminina. A ânima de Chico é todas. Jung também é essencial. É injusta a fama de mulherengo. Ele era “mulherólatra” (perdoem o neologismo).

Como homem, sinto-me no direito de devolvê-las a admiração. De mostrar o quanto me formam, influenciam, educam. Ressalto a necessidade da troca solidária entre elas, do fortalecimento mútuo – a dita sororidade. Aponto para as debilidades do masculino, principalmente a que nos leva a sermos aproveitadores, bobos, chantagistas, canalhas. Não por trair os meus semelhantes, mas para que fique claro que não existe um sexo frágil.

nivas gallo