Self

Babel: Quando amar é demais

Concedi uma entrevista sobre o amor compulsivo ou patológico à Revista Babel, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Eis o texto.  

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Duas mulheres falam sobre sua dependência em relacionamentos destrutivos

Por Beatriz Amendola

“Eu atravessava a cidade para encontrá-lo. A gente transava no carro, para logo depois ele me largar em alguma estação do metrô e ir embora. Eu ia embora chorando todas as vezes, querendo que ele conversasse comigo. Ficava no carro enrolando, esperando que ele me quisesse por mais tempo. E ele continuava me dizendo que tinha que ir, que eu devia ir. Isso me destruía completamente. Não me sentia nada além de um corpo”. O relato pode parecer inspirado em um romance da ficção, mas o faz-de-conta não é tão inventado assim quando se trata de relacionamentos amorosos que trilharam um caminho bem diferente do tão desejado “felizes para sempre“ e passaram a se sustentar na dependência emocional.

Luciana*, a protagonista do relato acima, é uma entre tantas pessoas no mundo que viram seus namoros e casamentos – aparentemente perfeitos – entrarem numa espiral permeada por insatisfação, indiferença e até humilhação, mas que não desistiram por se verem demasiadamente ligadas ao parceiro. São histórias que contradizem ao máximo o famoso verso de Camões, que chegou a dizer que o amor “é ferida que dói e não se sente“. O amor dói sim – mas quando ele vira um inferno essa dor  passível de ser ignorada.

Desiludida após um relacionamento fracassado, Luciana não resistiu ao charme do colega de trabalho comprometido com outra mulher. “Pela primeira vez, decidi que ficaria com alguém que namorava, sem sequer me importar com sentimentos alheios. Afinal parecia que ninguém se importava com os meus. Então, fiquei com o João*, mesmo ele namorando“. Mas sua intenção de apenas aproveitar o momento foi além disso – e ela caiu nos encantos do rapaz infiel que lhe dispensava o afeto e carinho pelos quais ela tanto esperava.

“Nunca na minha vida tive aquela atenção, sequer dos meus pais… e estava lá alguém que parecia me dar tudo que nunca tive… como deixar aquilo? Parecia tão injusto comigo. Quantas mulheres não se envolviam com homens casados e tinham relações de anos? Era o que eu pensava naquela época. Mas Deus foi injusto comigo, me fazendo ficar com alguém que meu deu tudo e que eu teria que abandonar. E não, eu não abandonaria a ‘melhor coisa que me aconteceu’. Eu estava completamente iludida”, disse Luciana.

A ilusão pelo “bom-moço“, essa figura tão mística que está presente na cabeça das mulheres desde cedo, não fez dela sua única vítima. Apaixonada por um amigo de seus primos, Maria* viu nele o homem de seus sonhos. “Aparentemente parecia perfeito: bonito, inteligente, carismático, dentista com consultório próprio, solteiro”. O namoro veio rápido, um mês depois.

Os problemas, porém, começaram a aparecer quando ele passou a alimentar sua insegurança com comparações entre ela e sua ex-namorada e isso a levou a adotar atitudes apenas para a satisfação dele. “Ele dizia que ela era incrível na cama, tinha experiências bissexuais… isso já despertou uma insegurança enorme em mim e comecei a me sujeitar a várias práticas sexuais para agradá-lo, como sexo anal frequente e até asfixia”, conta.

O parceiro ainda passou a mostrar uma faceta que se revelou dominadora e agressiva, o que forçou Maria a entrar em um ciclo de tensão constante: “Ele tinha acessos de fúria e eu não podia discordar dele em nada, ficava oprimida. Qualquer besteira era motivo para ele gritar comigo, dizer que queria terminar, que não gostava de mulher enchendo o saco e que tinha uma monte de outras mulheres atrás dele. Bem cruel, eu diria. De um estado amoroso se transformava num monstro agressivo. Nessas situações eu me humilhava, pedia desculpas, chorava muito e depois ele sempre se arrependia, pedia desculpas. Era emocionalmente muito desgastante”.

Marcados por agressividade, descaso e indiferença, os relacionamentos das duas mulheres se encaixam na categoria de relacionamentos destrutivos, que possuem um conceito mais amplo do que a violência física a qual costumam ser associados frequentemente. Além dos possíveis danos físicos, esse tipo de envolvimento pode causar prejuízos morais e psíquicos que variam de pessoa para pessoa, uma vez que a dor e a humilhação são sentimentos extremamente subjetivos. “Uma palavra, ou até mesmo uma negligência, pode levar a um comprometimento semelhante a uma agressão física, a depender da fragilidade de quem a recebe”, explica o psicoterapeuta e analista João Rafael Torres

No caso de Maria e Luciana, as relações, que duraram mais de um ano,  deixaram marcas profundas na vida e na alma de cada uma. Tomada pela insegurança e pelo medo, Maria parou de comer. Perdeu quase dez quilos. Obcecada e com depressão, começou a tomar tranquilizantes e, pelas faltas frequentes no trabalho, acabou demitida. Reuniu forças e pediu um tempo para o namorado. Pouco depois, entretanto, os dois combinaram de passar um ano novo juntos. E ele desmarcou de última hora. “Surtei“, diz ela, que reagiu se entregando ao vício em álcool e drogas nos meses seguintes.

Luciana soube do término do relacionamento pela namorada de João* – com quem, aquela altura, ele havia tido um filho e exibia felicidade nas redes sociais. A “oficial“ lhe enviou um email, onde contava que sabia do caso e colocava um ponto final na história. Do amante, porém, não ouviu uma palavra sobre isso, ainda que ele ligasse para conversar periodicamente. Mesmo sem se encontrar com ele, Luciana esperou dois anos que ele largasse a família para viver com ela – o que nunca aconteceu.

As consequências nefastas para a segurança e a própria imagem, ainda nos estágios iniciais dos relacionamentos, não foi suficiente para afastar Luciana e Maria dos – ao menos no sentido mais literal da palavra – companheiros. O misto de insegurança e traumas passados tornou o processo de desvinculação mais complicado do que poderia ser. Iludida pela ideia de ter encontrado “o homem de sua vida“, Maria ainda foi afligida pela ideia de não conseguir um casamento depois.  “Estava realmente apaixonada e achava que ele era o meu príncipe encantado. Como eu já estava com mais de 30 anos , na minha cabeça achei que fosse minha última chance de casar, pois já sofria muita pressão social por parte de amigos e família.”

Já Luciana encontrou em João o reflexo da própria história de sua família. “[Ele era] o homem inacessível, como meu pai. Sempre tendo mais de uma mulher. E hoje, percebo que, se ele abandonasse a família, seria a prova maior de amor. Meu pai fez isso, abandonou a família dele pra ficar com minha mãe. Eu ficava porque era tão bom ter atenção… e era algo que sempre lutei muito pra ter na minha família, e estava alguém lá, carente como eu, que no começo supria isso, e cada vez que eu ia embora, ele vinha e me dava toda aquela atenção, todo aquele carinho que eu não tive”.

Vindos do presente ou do passado mais distante, os medos e inseguranças exacerbados contribuem para que a situação, mesmo que infeliz e com possíveis violências psicológicas, se cristalize, de acordo com a psicanalista Belinda Mandelbaum, coordenadora do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Para ela, a manutenção desse quadro está associada a padrões que vêm desde a infância e se repetem continuamente.

João Rafael Torres corrobora essa análise, afirmando que o histórico familiar, particularmente, é imprescindível para construir a baixa autoestima que levará uma pessoa a se atrelar a um relacionamento destrutivo. “É nas relações parentais que aprendemos o “modelo” de relação a seguir. Por exemplo: a filha de uma mulher que tenha se submetido ao masculino tenderá a buscar homens que repitam o mesmo padrão de comportamento; ou poderão caminhar ao outro extremo, assumindo o papel da “mulher forte”, que se impõe sobre o masculino – ou seja, buscará homens vulneráveis, e a dinâmica abusiva será mantida“.

A autoestima, essa percepção que cada um tem de suas características e de seus valores, é um conceito chave para se compreender a dependência em relacionamentos ruins. Com uma dificuldade em reconhecer suas próprias virtudes, a pessoa passa a buscá-las no parceiro, o que fará com que a relação seja supervalorizada. Soma-se a isso o fato de a insistência do companheiro ser vista por ela como um sinal de valorização, a grande realização de quem sofre com problemas de autoestima. “Obviamente, é uma gratificação torpe, pois acrescenta poucos valores a cada um dos envolvidos“, completa João Rafael.

Um namoro ou casamento de caráter destrutivo pode fazer  muito para agravar o quadro, pois deixa a pessoa ainda mais vulnerável a suas inseguranças, de acordo com Belinda. “Há relatos de pessoas que sofrem essa violência sistemática e acabam incorporando o discurso e se sentindo sem valor. O companheiro pode fazer muito no sentido de melhorar a auto estima ou prejudicar”.

O adicional da violência, porém, não é um fator que só aparece em casos particulares. Belinda explica que ela é um componente que está nos fundos de qualquer relacionamento, uma vez que o amor e a atração também convivem com sentimentos de raiva, ódio e frustração. “A diferença de como a situação se desenvolve vai depender da dinâmica do casal. Tudo depende de como o casal lida com esses sentimentos. Se eles conversam, se há uma expectativa de que eles devam sempre concordar em tudo, se um precisa culpabilizar o outro”, explica.

A relação de Luciana com  João acabou tomando esse rumo quando as brigas se tornaram frequentes e ele parou de atender suas ligações para evitar discussões. Com a pouca conversa e os contatos esparsos, ela confessou que sua autoestima foi abaixo: “eu ficava louca e ligava, ligava, ligava… umas 30 vezes. Me sentia impotente e não podia ligar pra casa dele, pois sabia que com isso ele me abandonaria de vez. Então chorava e, após um tempo, entrei em depressão. Me sentia humilhada, um corpo, um símbolo sexual, uma vagabunda, uma destruidora de lares, uma mulher sem moral. Era uma briga constante comigo, me senti mais baixa do que nunca”.

O relacionamento atribulado com o ex egocêntrico – que chegou a decidir o futuro do namoro em um jogo de paciência – também detonou o bem estar de Maria consigo mesma. “Estava surtada, com as ideias embaralhadas, com um desespero profundo. Achei que fosse morrer de tanta dor, não via luz no fim do túnel  Era como se ele fosse o último homem na face da terra e eu fosse ficar sozinha, me sentindo um lixo, para sempre”.

Após as experiências, tanto ela quanto Luciana ainda se consideram em recuperação, ainda que haja uma diferença de seis anos entre o fim de seus namoros. Ambas encontraram conforto nas reuniões do grupo Mulheres Que Amam Demais Anônimas (MADA), onde as mulheres que já passaram por situações de relacionamento destrutivo se ajudam compartilhando suas histórias. “Tenho tido grandes progressos em relação às minhas atitudes perante os relacionamentos e tenho certeza que jamais me sujeitarei a uma situação emocional  como essa novamente. No início, é difícil modificar os padrões de pensamentos e atitudes, mas depois de um tempo mudamos realmente”, conta Maria, que já frequenta o grupo há sete anos.

Não há uma fórmula única para se recuperar das marcas deixadas por relacionamentos destrutivos. Segundo João Rafael, porém, o autoconhecimento e o fortalecimento dos próprios valores é uma das chaves para evitar a mesma armadilha no futuro. “Potenciais abusadores estarão sempre disponíveis para encontrar novas vítimas. Mas só será vulnerável a essa investida quem não exerce o respeito por si mesmo”.


*Os nomes foram trocados para preservar a identidade das entrevistadas

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Universo Ufes: Relacionamento à distância dá certo?

O repórter Edézio Peterle, do blog Universo Ufes, escreveu sobre relacionamentos à distância e usou um texto que produzi como referência. O conteúdo da reportagem está aqui abaixo. 

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No próximo dia 12 é comemorado o Dia dos Namorados. Nessa data muitos casais bolam um programinha a dois, como um jantar ou um filme romântico, o que não pode é passar em branco uma data tão especial para quem está apaixonado. Mas o que fazer quando o amor da sua vida mora longe de você? É possível manter um namoro encontrando-se um dia na semana, mês ou até mesmo uma vez por ano?

Não é de hoje que os relacionamentos de pessoas que moram longe uma da outra existem. As tecnologias de comunicação permitiram romper as barreiras da distância e são o meio de namoro de muitos casais que os quilômetros separam. As cartinhas escritas a mão foram sendo substituídas pelos torpedos SMS, redes sociais, skype e demais meios.

O psicanalista João Rafael Torres, afirma em seu blog da Self Terapias (Brasília-DF) que é importante considerar se o relacionamento começou a distância ou se foi uma situação posterior. “Um relacionamento iniciado nesses moldes pode oferecer grandes riscos. O primeiro deles é a projeção, ou seja, a pessoa não se apaixona exatamente pelo que é a outra, e sim pelo que queria que ela fosse. Por esse motivo, muitas vezes, quando o casal se conhece, o encanto termina. Na verdade, percebem que o romance era fundamentado numa idealização e não na realidade”, explica.

Brasil e Holanda: Namoro internacional de Yohana e Willen

Yohana Dumas e Willem Van der Welde são um exemplo de namoro a distância que deu certo. Ela, brasileira, ele, holandês conheceram-se em 2009, quando Willen fazia intercâmbio de Engenharia, na Ufes, e Yohana cursava Letras-Inglês. Além de estudarem na mesma Universidade, eles moravam em prédios vizinhos no bairro Jardim da Penha, em Vitória.

Em um dos típicos encontros entre vizinhos realizados no estacionamento do condomínio, Willen chamou a atenção pela aparência européia e por não saber falar português. A mãe de Yohana chamou-a para fazer a tradução e possibilitar a conversa entre o Holândes e o grupo de amigos. A partir daí, o futuro casal de namorados passou a se encontrar nos intervalos das aulas, nos almoços do Restaurante Universitário (RU) e nos encontros com amigos em comum. Começaram a namorar e se viam com frequência.

Depois que o intercâmbio terminou, Willen voltou para a Holanda e o casal se encontrava apenas duas vezes por ano. Ele vinha para o Brasil nas férias de verão na Europa. E, Yohana viajava para a Holanda nas férias de verão no Brasil. Quando estavam separados pelo Oceano Atlântico, eles se comunicavam pelo Skype, trocavam e-mails e cartas.

Yohana e Willen            Foto: Arquivo pessoal

Yohana e Willen Foto: Arquivo pessoal

O namoro internacional durou por três anos e meio. Em dezembro de 2012, Willen e  Yohana casaram-se em Vitória. Ficaram ainda separados pela distância por seis meses, até que em junho de 2013, Yohana embarcou para a Holanda, onde, hoje, mora com seu marido Willen. Quando perguntada qual o segredo para manter um relacionamento a distancia, ela responde: “A vontade forte de estar junto da pessoa,  de fazer coisas juntos, a confiança e, é claro, o amor”.

Usalio e Juliana: distância devido ao trabalho

Usalio Piveta e Juliana Borges conheceram-se na faculdade, ambos no curso de Comunicação Social da Ufes, ela na habilitação de Jornalismo e ele em Publicidade e Propaganda. Namorados há quase quatro anos, garantem que para um relacionamento a distância dar certo o diálogo entre o casal é fundamental.

No início do relacionamento Usalio e Juliana se viam todos os dias. Colegas de curso e vizinhos de república em Jardim da Penha, tinham um namoro bem presente. “Os primeiros três meses foram maravilhosos, de conhecimento um do outro. Como não tínhamos trabalho e nem estágio, passávamos quase 24 horas por dia juntos”, afirma Juliana.

Usalio Piveta e Juliana Borges

Usalio Piveta e Juliana Borges
Foto: Arquivo pessoal

Hoje, Usalio é policial militar e trabalha em Marechal Floriano. Juliana é jornalista em um veículo da Grande Vitória. Eles se veem apenas nos finais de semana que não trabalham. Ainda em fase de adaptação, Juliana diz que não se acostumou com a distância de seu amado. “Ainda não consegui me adaptar do jeito que queria, sinto muito a falta dele, mas sei que é melhor”.

Para suprir o tempo longe um do outro, o casal foca no trabalho e realiza outras atividades, mas garante que o namoro não foi prejudicado com essa nova realidade. Usalio e Juliana têm planos de em breve se casarem e constituir uma família. Eles garantem que a confiança é fundamental em um namoro a distância. “Para um namoro assim, é necessário acima de tudo, confiança. Ela ajuda a fazer o amor durar. Nosso relacionamento sempre foi bem transparente, não damos motivos para um desconfiar do outro”.

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Correio Braziliense: No mundo dos sonhos

O Correio Braziliense me convidou para colaborar com uma reportagem sobre sonhos, para a Revista do Correio. Ficou assim (participações em negrito): 

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Eu sonho, tu sonhas…

Flávia Duarte

 

Falar de sonhos é entrar em um mundo impalpável. É tentar compreender um enredo cujo significado só faz sentido para o sonhador. Afinal, ele é personagem principal da história. Entrar na realidade aparentemente fictícia dos sonhos é correr o risco de se perder no caminho da superstição, dos mitos e das falsas interpretações. É visitar um local que só existe no cérebro de quem sonha e cuja existência é tão efêmera que, muitas vezes, nem o próprio criador lembra-se da criação onírica.

Cada vez mais, porém, deixa-se de lado o misticismo e acredita-se que os sonhos tenham papel importante na cura do corpo e da alma. Pesquisadores e cientistas se debruçam sobre os roteiros aparentemente sem sentido que aparecem durante a noite para entender o que se passa dentro dos indivíduos. Em Natal, por exemplo, o Instituto do Cérebro dedica-se a pesquisas para desvendar como os sonhos estão relacionados ao funcionamento físico do cérebro, inclusive como os relatos do que se pensou enquanto dormia podem confirmar diagnósticos de transtornos bipolares ou de esquizofrenia, por exemplo.

Terapeutas aprimoram cada vez mais as técnicas de análise dos sonhos para ajudar seus pacientes a resolverem traumas e conflitos internos. O médico Victor Dias, fundador e coordenador da Escola Paulista de Psicodrama, acaba de publicar um livro sobre o tema. Em Sonhos e símbolos na análise psicodramática, propõe dedicar-se ao material codificado que os sonhos apresentam para encontrar respostas para dramas pessoais.

O que não se nega é que o sonhar, desde a Antiguidade, desperta curiosidade e, quando acordados, há muitos séculos, os homens tentam atribuir a essa ação uma função. Os reis tinham interpretadores de sonhos. Oráculos capazes de desvendar as imagens que vinham à cabeça dos poderosos e tentar entender que mensagens elas traziam. As crianças da tribo Senoi, na Malásia, por exemplo, sempre tiveram o costume de relatar seus sonhos para os pais. A partir do que contavam, recebiam os conselhos dos mais velhos.

No século 2, Artemidoro de Daldis (veja quadro) ficou conhecido por ser um adivinho romano que tinha o dom de avaliar os avisos dados pelos sonhos. Em 1900, o psicanalista Sigmund Freud, ao lançar o livro A interpretação dos sonhos, declara oficialmente o material onírico como uma ferramenta de análise do subconsciente. Para ele, os sonhos não passavam de desejos reprimidos. Assim, o que não se podia fazer na vida real era realizado, sem culpas, pelo cérebro enquanto o corpo dormia. Em seguida, seu discípulo Carl Gustav Jung apresentou uma proposta menos limitada do sonhar. “Ele amplia essa visão e defende que os sonhos também têm uma função elucidatória, que fala o que está acontecendo na dinâmica psíquica e propõe soluções”, explica João Rafael Torres, psicoterapeuta e analista junguiano.

A partir deles, o mundo onírico se abriu. Atualmente, muitos são os terapeutas que não dispensam as mensagens sonhadas para entender a realidade vivida. O especialista em análise psicodramática Victor Dias compartilha a tese de que os sonhos são mensagens que o psiquismo manda para si mesmo. Na prática, funciona assim: algumas experiências e pensamentos não condizem com seu estilo de vida, valores e crenças. Assim, o cérebro mandaria todas essas informações para o que ele chama de zona de exclusão. Como defendia Jung, porém, a psique não se conforma com episódios mal resolvidos e encontra uma válvula de escape. E, durante os sonhos, avisa para a pessoa que ela precisa resolver certos incômodos aparentemente abafados, batizados pela psicologia de neuroses.

Por se tratar de um material negado, o recado não aparece escancarado. A solução é mandar mensagens simbólicas e, por tal razão, os sonhos, aparentemente, não têm sentido algum. “O psiquismo sai do impasse quando envia uma mensagem excluída para o eu consciente e, ao mesmo tempo, preserva o material negado que a pessoa não está em condição de aceitar”, explica o terapeuta.

Apesar da resistência em se conscientizar de certos recalques, ignorar um recado do inconsciente não seria uma boa ideia. São, supostamente, os conteúdos negados os responsáveis por tantos transtornos físicos e emocionais. Aí surge o desafio: se é uma mensagem cifrada, incompreensível inclusive para o paciente, como fazer para interpretá-la? Victor trabalha com a análise psicodramática dos sonhos. A proposta não é tentar fazer adivinhações e muito menos incorrer no erro de atribuir significados clichês aos elementos da história sonhada. A ideia é decodificar a mensagem aos poucos.

Para esclarecer, o terapeuta dá um exemplo. Uma mulher sonha que está sendo perseguida por um grande macaco peludo. Ela se sente amedrontada quando pensa na cena. O importante, para Victor, não é entender por que ela sonhou com um macaco, mas sim desvendar o porquê de ela ter produzido um contexto de perseguição. Assim, nos encontros com o terapeuta, o paciente é convidado a contar quais as situações da vida em que se sentiu da mesma maneira, acuado, com a sensação de ser vítima de uma outra pessoa mais forte.

Esse estímulo, o de pensar em momentos reais nos quais as mesmas emoções vieram à tona, produziria novos sonhos, e, aos poucos, seria possível compreender a mensagem que o inconsciente manda em doses homeopáticas por puro medo de a consciência rejeitá-la. “Na decodificação dos sonhos, você vai interpretar o mínimo possível e esperar os outros sonhos, em que os elementos irão se repetir até ir clareando”, explica o médico. “Não adianta perguntar o que significa o sonho. Se o paciente soubesse, o material não viria codificado. Por isso, atentamos para a sequência dos sonhos e a evolução da simbologia até ser integrada pelo eu consciente ou sofrer uma reparação dentro dos próprios sonhos”, afirma Victor.

No consultório do terapeuta Gisnaldo Amorim, quem não sonha não precisa nem entrar. Ali, nada é escolhido por acaso. Nem as janelas cobertas de tinta vermelha, com desenhos que sugerem uma casa, tampouco as mandalas coloridas espalhadas pelo corredor, que liga a sala de espera à sala de atendimento. Para o psicanalista, todas as imagens e cores inspiram os sonhos, assim como ajudam a interpretá-los. Para ajudar os pacientes, não abre mão de conhecer os elementos que invadem a mente deles durante o sono. Ele garante que, mais que do que se prender a conceitos estereotipados para compreender os símbolos oníricos, é preciso ter criatividade para ler a mensagem que o sonho quer mandar. Nesse caminho, é preciso atentar-se a todos os detalhes que aparecem na fantasia: as pessoas, os tons das roupas que elas usam, os objetos de cena, o local. Tudo pode dar um sinal do seu eu mais profundo e desconhecido.

“A primeira proposta ao tentar entender os sonhos é conhecer a si mesmo. O entendimento de nós mesmos permite transformar energias, inclusive quadros de doenças graves”, explica o profissional. “O segundo objetivo é melhorar nossas funções psicológicas, entre as quais se incluem pensamentos, sentimentos, intuições e sensações do corpo”, acrescenta Gisnaldo, que há quatro anos ministra o curso Alquimia dos sonhos, cuja proposta é ensinar os sonhadores a desvendarem o simbolismo dos comunicados oníricos.

Qualidade do sono, aliás, é um dos sinais que a terapeuta Wânia Alvarenga avalia para curar o corpo e a mente dos pacientes. No que considera o sono ideal — revigorante para os órgãos e para o equilíbrio das emoções —, o conteúdo dos sonhos é um quesito bem importante. Para deixar o sono mais saudável, Wânia diz que tudo pode interferir, a começar pelo colchão e pelo travesseiro que a pessoa escolhe, até mesmo os sonhos que ela terá. “Sustento que nós sonhamos para liberar as emoções. Quando o cérebro dorme, ele faz uma reparação física, além de liberar o estresse diário e as emoções”, define.

A terapeuta compartilha a crença de que os sonhos podem ser indícios de problemas físicos, uma forma de, sabiamente, o corpo encontrar caminhos para a autocura. Para exemplificar, Wânia cita o exemplo de uma criança que foi levada ao consultório dela pelos pais. O pequeno fazia xixi na cama enquanto dormia e a tentativa dos adultos era entender o porquê. A razão aparecia na forma de assustadores lobos. Explica-se: é que, muitas noites, o menino sonhava com os ferozes animais e de tanto medo não controlava a bexiga. A criança foi tratada pela sonhoterapia, técnica de melhorar o sono, para liberar a memória da emoção do pânico noturno. Se o menino não temesse mais os lobos quando eles aparecessem no sonho, não acordaria mais molhado. E deu certo. Wânia garante que provavelmente o menino não será mais atormentado pelas feras enquanto dorme.

“Sonho é uma fonte de compreensão de traumas. Também sugere distúrbios do sono e distúrbios emocionais. Uma pessoa que tem insônia, por exemplo, apresenta o sono leve e pode ter sonhos de ansiedade, de preocupação com o dia seguinte, de medo. Já os pesadelos podem ter a ver com síndrome do pânico, por exemplo”, explica a especialista. Por essa lógica, pessoas com problemas respiratórios não raro sonhariam com cenas dentro da água ou situações em que se sentiriam sufocadas.

Para tentar harmonizar as emoções e o corpo, Wânia usa um conjunto de técnicas, entre elas o teste muscular, em que a terapeuta estabelece conexão com o self do paciente por meio de respostas apresentadas pela tensão muscular do braço dele. A descrição parece complicada para o leigo, mas seria algo como se o corpo literalmente falasse, com movimentos leves do braço, e esclarecesse o que anda em desarmonia a ponto de provocar noites de sono ruins e sonhos piores ainda. “O corpo tem a sabedoria inata da autocura e algumas técnicas permitem reparar aspectos que estão em disfunção”, explica a psicóloga. “No início, a gente tratava a simbologia dos sonhos como clichê. Hoje, minha visão é mais holística. Você deixa que a inteligência da pessoa faça referência aos conflitos dela usando os símbolos. O cérebro sonha aquilo que o coração sente”, acrescenta.

 

Fique atento

– Faça um sonhário, um registro diário dos sonhos, que, por si só, já é um exercício terapêutico. Só de anotar as imagens, as ações, as sensações e as emoções experimentadas no mundo onírico, começamos a organizar os movimentos psíquicos.
– Compre um caderno exclusivo para essa finalidade e anote palavras chaves, sensações, desfechos dos quais se lembra. 
– Todos os elementos presentes num sonho (dos personagens aos objetos) não devem ter interpretação literal. Tudo faz parte de si e fala de você.
– Ao terminar o relato, tente fazer um exercício livre de associações entre aquilo que viu e as relações que se estabelecem com a sua vida.
– Não tente encerrar o conteúdo de um sonho atribuindo um significado único. Quanto mais múltiplo for o sentido, mais valia terá. Se achar interessante, escreva o resultado da amplificação abaixo do sonho.
– Em geral, todos os sonhos da mesma noite seguem uma temática comum e, depois de serem analisados individualmente, deverão ser observados como um conjunto conciso.
– Se não lembrar do que sonhou, não se aflija. Quanto mais você se esforçar, mais fácil vai ficar recordar dos sonhos com o tempo.

Fonte: Informações do site www.selfterapias.com.br

 

Autoconhecimento e premonição

Do que considera seu primeiro sonho premonitório ela se lembra bem. Tinha 17 anos, quando se viu, em seus pensamentos oníricos, carregando uma criança nos braços, enquanto tentava caminhar por um lamaçal. Ao fim do trajeto, deparava-se com uma água límpida. Era o final feliz de um percurso aparentemente difícil. Intrigada com o sonho, meses depois descobriu quem era aquele menino e que árduo trajeto seria aquele. Ana Lúcia estava grávida. Para ela, o sinal que recebeu enquanto dormia era anúncio da inesperada maternidade.”Sou neta de índio e de cigano.” Assim se apresenta Ana Lúcia Fernandes, 44 anos. A referência familiar é para dizer que ela traz na alma algo de místico, de vidente. De sonhadora também. Desde a adolescência, a funcionária pública recebe recados, sabe-se se lá de quem, enquanto dorme. Sonhar para ela virou uma via de comunicação com o futuro e com o próprio inconsciente.

Aos 19 anos, ela também sonhou que encontraria seu marido. O amor da vida logo apareceu. Três anos atrás, quando decidiu estudar para passar em concurso da Câmara, surgiu um anjo enquanto dormia, que logo profetizou: “A espera acabou”. Dias depois, saiu o resultado de sua aprovação na prova.

E assim ela segue sonhando. Quando Ana Lúcia fala dos sonhos, empolga-se. Gosta de contá-los para amigos, conhecidos e terapeutas. Descreve detalhes. Histórias longas, com começo, meio e fim. “São verdadeiras epopeias”, brinca. Tão rico o material onírico, que virou livro. A amiga Márcia Sabino se inspirou em um dos sonhos de Ana para escrever Audaces Fortuna Juvate — a sorte protege os audazes.

Mas ela própria tem seu livro de sonhos. Um sonhário, como chama. Anota todas as lembranças da noite ali. E interpreta a própria história. Sozinha ou com ajuda do psicanalista. Em uma dessas interpretações das mensagens simbólicas que recebe de si mesma, descobriu que precisava levar a vida com mais suavidade e feminilidade. “Eu sempre sonhava com uma cangaceira, que me dizia para ser muito forte”, conta. “Venho de uma família de três homens, trabalhava com gestão financeira, em um meio muito masculino. Descobri, por meio desse sonho, que me obrigava a ser dura, forte, como a cangaceira dizia.”

Feita essa análise, resolveu aliviar a dureza do braço com que conduzia a vida. Até o cabelo, antes curtinho, mais masculino, deixou crescer. O simbolismo do sonho manifestou-se igualmente de forma simbólica, em uma mudança na própria imagem de Ana Lúcia. “O sonho é uma conversa com você mesma”, diz ela, que aprendeu há tempos a se ouvir durante a noite.

 

E quem vai compreende-los?

Seja qual for a linha de tratametno que usa o material onírico como pista para se chegar a respostas por mais saúde física e equilíbrio mental, fato é que a psicanálise, desde o século passado, validou a tese de que os sonhos realmente são conteúdos pessoais e intransferíveis. Sendo tão autoral, só mesmo o responsável pelo enredo teria condições de traduzi-lo. nessa tentativa, o terapeuta assume o papel de facilitador e de investigador. é ele quem estimula a consciência do paciente a compreender os pensamentos enquanto se dorme.

A psicanalista junguiana Rosângela Macedo, analista clínica do Espaço Quíron, usa um cenário para tentar exemplificar o que acontece quando alguém sonha. Ela compara o psiquismo a um iceberg. A parte visível, que desponta do mar, seria aquilo do qual se tem consciência. Mas dentro da água há mais um pedaço enorme de gelo que não se pode ver a olho nu. Assim seria o inconsciente. Ele está lá, registra tudo o que vemos e sentimos, ainda que não se tenha noção de quanto material é guardado nessa verdadeira caixa-preta.

O sonho seria como um mergulho nessas águas, e uma porção do que estava escondido é visualizado de forma simbólica. Revestir traumas e situações em formas incompreensíveis a um primeiro olhar nada mais é que uma tentativa de esse subconsciente trazer à tona materiais excluídos pela consciência. E, para que não seja rejeitado mais uma vez, o jeito é exibi-lo aos pucos, com uma certa dose de fantasia e um tanto de alegoria.

“O sonho é um regulador psíquico que tem sempre uma funcionalidade (por que) e uma causalidade (para que), avisa Rosângela. “Cada sonho é um mito pessoal, uma nistória, uma lenda, um conto e traz um drama psíquico. Quando você os traduz, você gera autoconhecimento, um ego mais seguro. Aquilo que estava sombrio e escuro ganha luz e faz menos pressão”, explica.

Uma das formas de se chegar a alguma conclusão é o terapeuta questionar o significado pessoal e quais as experiências e os sentimentos que o paciente têm em relação aos elementos e às pessoas que aparecem nos sonhos. Figuras que te trazem sentimentos negativos e vivências assustadoras que reaparecem durante o sono podem ser sinal de que na vida real você esteja se sentindo da mesma maneira. “O sonho só tem valor para quem sonha. É um olhar de dentro para fora”, esclarece o psicoterapeuta e analista junguiano João Rafael Torres.

Por isso, ele sugere, antes de mais nada, que a pessoa que queira fazer uso dessa ferramenta de diagnóstico do inconsciente anote os sonhos em um caderno. Isso deve ser um exercício diário. Nem sempre a pessoa vai se lembrar dos sonhos, mas vale anotar os resquícios de imagens e de sensações que vieram à tona. Nesse ponto, é importante lembrar que tudo que está no sonho se relaciona exclusivamente ao sonhador. Assim, sonhar com outra pessoa não quer dizer que você precisa dar um recado a ela, mas precisa entender o que as características dela, do comportamento e do papel que ela exerce, ou exerceu na sua vida, significam para você.

Depois, é hora de, com a ajuda do terapeuta, especialmente no início, associar aqueles elementos com a vida real e tentar entender a função daquele filme produzido na psique. O analista explica que os sonhos têm várias funções: compensatória, para o ego resolver o que não consegue resolver na vida real; elucidatória, para esclarecer o que está acontecendo na dinâmica psíquica. Além disso, o sonho tem uma função educativa e poderia ser visto como um canal de educação do que deve ser feito ou não.

Com esse material literalmente nas mãos, é hora de começar a desvendar os mistérios da própria alma. No meio do caminho, o sonhador vai enxergar falhas, enfrentar medos e reconstruir conceitos. “Todos os dias, tiramos uma foto de como está nossa dinâmica psíquica, mas quem vai definir se vamos ou não abrir o álbum é o ego, o eu”, resume João Rafael.

 

Entrevista: Sidarta Ribeiro

Como as pesquisas em ratos podem desvendar a função dos sonhos?

As pesquisas com ratos servem para estudar os mecanismos eletrofisiológicos e moleculares responsáveis pelo papel benéfico do sono no aprendizado. Para estudar sonhos humanos, fazemos registros eletroencefalográficos de pessoas expostas a estímulos (imagens, videogames) e, depois, imagens durante o sono. buscamos encontrar relações quantitativas entre o conteúdo dos sonhos e os padrões de ativação cerebral durante fases específicas do sono.

Com que propósitos vocês se dedicam a pesquisas com essa temática?

Estamos interessados na análise matemática de relatos verbais dos sonhos de pacientes psiquiátricos ou neurológicos para realizar diagnósticos diferenciais. Também perseguimos uma linha de pesquisa aplicada sobre o impacto do sono pós-aula no aprendizado escolar. Temos ainda uma linha de pesquisa estritamente comportamental sobre comunicação vocal, para explorar os limites da simbolização em primatas não humanos.

O que acontece no cérebro quando sonhamos?

Diversas regiões corticais e subcorticais são bombardeadas por neurônios localizados em regiões mais profundas do cérebro, causando uma reverberação vívida de memórias previamente adquiridas. O envolvimento da área tegmentar ventral, que libera dopamina em circuitos relacionados com a busca de recompensas e a evitação de punição, faz do sonho mais do que uma simples reverberação de fragmentos recombinados de memórias: os sonhos são movidos por nossos desejos, como postulou Freud, representando simulações de comportamentos adaptativos (a se copiar na vida real) ou de comportamentos não adaptativos (a se evitar na vida real).

Será possível um dia compreender pela ciência o conteúdo dos sonhos ou será sempre um papel da psicanálise?

Embora já seja possível decodificar sonhos usando ressonância magnética funcional, isto é feito com precisão muito baixa. Provavelmente, a técnica vai evoluir muito no futuro próximo, mas não acredito que ela se livrará da subjetividade inerente à interpretação dos sonhos. O conteúdo dos sonhos só faz sentido para o sonhador e seus eventuais interlocutores íntimos, como, por exemplo, a figura do psicanalista. Não acredito que a compreensão do sonho ou qualquer outro aspecto da consciência humana pode se valer de um atalho biológico que exclua a subjetivação psicológica.

Por que alguns se lembram mais dos sonhos que outros?

Todas as pessoas sadias sem lesões cerebrais sonham, mas poucas se lembram disso. As pessoas que relatam não ter sonhos, quando investigadas num laboratório de sono e despertadas durante uma fase específica do sono em que ocorrem movimentos oculares rápidos, normalmente relatam sonhos. Com os sonhos, existe uma grande queda na liberação do neurotransmissor noradrenalina, que está envolvido no processo atencional e na formação de memórias duradouras. Quando despertamos, o nível de noradrenalina sobe rapidamente, mas se a pessoa não mentaliza o conteúdo do sonho e rapidamente se engaja em outras atividades, o conteúdo do sonho se perde.

Os sonhos são importantes para o aprendizado?

Existem evidências abundantes do papel do sono na consolidação do aprendizado, embora identificado há mais de 100 por psicólogos como Carl Jung, só teve a primeira evidência experimental em 2011, com a publicação de um estudo do grupo da Robert Stickgold, da Universidade de Harvard. Ele mostrou que o aprendizado da navegação de um labirinto virtual foi muito maior em pessoas que sonharam do que em pessoas que não sonharam. Ainda há muito a descobrir no que diz respeito ao papel dos sonhos para a cognição.

Como vocês conseguem confirmar diagnósticos de bipolaridade e esquizofrenia por meio de sonhos?

Em colaboração com o professor Mauro Copelli, da UFPE, demonstramos que relatos de sonhos de pacientes psicóticos permitem diferenciar pacientes esquizofrênicos, bipolares e indivíduos sadios. Isso é possível porque existem diferenças estruturais grandes entre os relatos verbais desses grupos. Em colaboração com o professor Leandro Malloy-Diniz, da UFMG, usamos técnica semelhante para diferenciar pacientes com Alzheimer de pacientes com transtorno cognitivo leve.

 

Aprendizado constante

No começo, a estudante Cibele Pereira, 25 anos, temia os próprios sonhos. Achava que, se ousasse interpretá-los, eles teriam o atrevimento de se tornarem realidade. Quando um conhecido aparecia nos pensamentos noturnos, ela logo achava que tinha alguma mensagem a dar ou a receber daquela pessoa. Aos poucos, porém, descobriu que as figuras do sonho, fossem protagonistas ou figurantes, sempre querem dizer algo de si próprios. “Vejo o sonho como um autoconhecimento, o que vou sonhar são coisas só minhas. Sou eu falando comigo mesma. A gente tenta dar ouvido para si mesma, como se fôssemos duas pessoas”, explica. Agora, quando sonha com alguém, o exercício é avaliar o que aquela pessoa significou em sua vida. É um bom começo para decifrar por que um personagem específico apareceu nos sonhos dela.

Nesse papo tão particular, Cibele deixou a superstição de lado e passou a procurar indícios de sua própria personalidade em conteúdos tão impalpáveis. Na terapia, entendeu que aqueles sonhos insistentes, em que sempre aparecia discutindo com uma pessoa mais velha, dizia muito sobre seu comportamento na rotina desperta. Cibele tinha problemas com autoridade. Considerava que os de mais idade são figuras inquestionáveis e, portanto, alguém cujas opiniões e posicionamentos não se poderiam contrariar.

Pelos sonhos, entendeu que podia se posicionar, ainda que o interlocutor tivesse mais idade. “Isso fez melhorar muito meu relacionamento com minha mãe, por exemplo”, considera. Pela mesma via, compreendeu que precisava expor seus sentimentos com mais naturalidade. Quem reforçou esse comportamento que as amigas próximas já percebiam foi o inconsciente. Nos sonhos, Cibele, muitas vezes, aparecia segurando o choro. Igualzinho como faz com suas emoções.

“Por isso, procuro anotar os sonhos e depois os analiso. Eles fazem com que eu pense sobre certos assuntos e tiro uma conclusão aqui, outra ali. Alguns sonhos hoje apresentam temas com menos força, o que significa que já superei algumas questões”, comenta. “Mas também não fico paranoica de que todo sonho diz alguma coisa”, pondera a moça.

 

 

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A reportagem também está disponível no site da Revista.


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