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Psique: Oito perguntas e duas afirmações sobre o fim de um relacionamento

 

Por que a gente não deu certo? Ninguém inicia uma história de amor pensando no dia em que ela se encerrará – e, convenhamos, esse dia chegará, mais cedo ou mais tarde. Quando acontecer, poderemos simplesmente esquecer o bom vivido. Toda relação dá certo por um tempo. Depois, acaba.

O que aconteceu de errado? Daí, quando acaba, inicia-se um pregão para disputar quem fica com a razão. Para crescer com a experiência? Nem sempre. Não há manuais que garantam eficácia nas relações. Errar faz parte do processo, é o risco que assumimos enquanto estamos tentando.

Será que a culpa foi minha? Nem sua, nem de ninguém. A baixa autoestima faz com que busquemos esse tipo de julgamento. As sentenças podem ser pesadas demais, e fundamentadas em feridas anteriores. Muitas vezes, o fim foi a melhor saída para evitar danos ainda maiores.

Entre nós, tudo ia bem. Os outros que eram o problema. Vivemos em comunidade e a vida sem “o outro” não existe. Eles, de fato, perturbam muito. Principalmente por espelharem grande parte dos nossos conflitos mais profundos: inseguranças, vícios, feridas. Acredite: uma relação blindada do mundo não duraria para sempre.

Por que complicamos tanto as coisas? De fato, tudo poderia ser mais simples. Mas somos seres complexos. Isso significa que nossos fatores psíquicos se engancham uns nos outros, o que muitas vezes nos leva à falta de coerência. Queremos sempre que as relações caminhem bem. Nem sempre conseguimos agir positivamente em nome disso.

Por que com os outros parece tão fácil? A grama do vizinho só parece mais verde porque, de longe, não vemos as pragas que a infestam. Comparar relações é um grande erro, especialmente por expor nossas vulnerabilidades de uma forma perversa. Ninguém erra por má vontade, simplesmente. Mas por não ser capaz de fazer melhor.

Tudo seria diferente se tivéssemos conversado mais. Concordo. Mas parece que invertemos a ordem das coisas, na medida em que a relação se aprofunda: vamos perdendo a vontade de conhecer as verdades do outro, enquanto passamos a impor mais o nosso jeito. Isso mina a intimidade e aguça o medo.

Você consegue me compreender? Você está sabendo expressar o que sente? Muitos dos desentendimentos se dão por uma inabilidade de comunicação, como se os agentes falassem em idiomas incompreensíveis. Isso faz com que objetivos comuns sugiram competitividade, por exemplo. Falar, sempre, é a forma mais honrosa e respeitosa de ajustar as coisas. Até mesmo na separação.

Como vou reagir quando te encontrar? Terminar uma relação não apaga uma parte da nossa história. O outro não se transformará em um estranho, ou num inimigo. Uma parte de cada pessoa com quem nos relacionamos ajuda a constituir quem somos, assim como levará um pedaço nosso. Agradeça por aquilo que ganhou e pelo que pode oferecer.

Será que vou conseguir amar novamente? É bem provável – felizmente, tendemos a acreditar na renovação. No entanto, esse novo amor dependerá da forma como você consegue encerrar o momento. Faça um inventário dessa relação, sem má vontade. Até para evitar que os mesmos equívocos se repitam nas próximas.

Psique: Quem é você na multidão quando alguém precisa de ajuda?

crédito: Metrópoles/iStock

Você já viu alguém ter uma crise convulsiva na rua? A cena desencadeia as mais distintas reações. Há quem deseja ajudar, os oportunistas, os desesperados, os curiosos criadores de tumulto e os indiferentes ao ocorrido. A minoria busca simplesmente amparar a pessoa até o fim dos espasmos.

Agora, imagine que o mundo vive um colapso semelhante. Um corpo se retorce por não conseguir abarcar toda a tensão imposta a ele. Catástrofes, guerras por poder, escassez de recursos. Tudo com muita gente ao redor sem fazer nada, mas excitados pela cena. Ficam cada vez mais próximos, roubando o ar do agonizante.

Percebo a realidade mais ou menos assim. E, sinceramente, não sei quem sou nessa multidão. Na semana passada, experimentei parte desse frenesi.

Na carona do dia 12 de outubro, publiquei aqui o texto “Esquecemos o maior valor da infância: a descoberta sem julgamentos”. O tema propunha o resgate da criança interior. Do primeiro ao último parágrafo, o artigo falava de como a manutenção de certos atributos infantis favorece a vida dos adultos.

Logo, o entendimento virou outro. Ao que parece, pessoas sentiram-se ofendidas com a ideia de uma “descoberta sem julgamentos” e passaram a atacar a publicação de forma muito odiosa. Inclusive, com injúrias. Alegavam a defesa da pedofilia pelo texto. Talvez um caso de analfabetismo funcional crônico − uma das chagas de nossa educação.

As opiniões faziam uma alusão clara aos escândalos envolvendo manifestações artísticas e nudismo. Não sou especialista em arte tão pouco em nu. Por isso, prefiro não me envolver na polêmica. Nesse assunto, sou quem reza enquanto a ambulância não chega, na torcida pelo doente (o mundo, no caso) recuperar-se logo.

Pessoalmente, foi mais uma boa dose (um tanto amarga, por sinal) na compreensão da força dos complexos. Quando ativados, eles cegam completamente a razão e o discernimento. Enxergamos por uma fresta e temos a certeza de enxergar o todo. Dotados de tamanha convicção, sentimo-nos aptos a atacar qualquer opinião diferente da nossa. Infelizmente, é assim.

O mundo está convulso. Nós reagimos muito mal a tudo. Gritamos recomendações do que deveria ser feito, sem termos a mínima perícia sobre o alardeamento. Prescrevemos soluções ultrapassadas aos problemas dos outros, sugestões incapazes de curarem nossas próprias feridas.

E assim deflagramos guerras, na tentativa de oferecermos uma alternativa mais eficaz às dores do mundo. No entanto, não percebermos o único remédio possível para isso: o autoconhecimento e a aceitação. Pois, como nos lembra Jung: “precisamos entender melhor a natureza humana, porque o único perigo real que existe é o próprio homem.

Todos querem um mundo melhor. Poucos querem melhorar.

Psique: Esquecemos o maior valor da infância: a descoberta sem julgamentos

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Já virou um jargão gasto esse negócio de criança interior. Fala-se muito que dela precisamos cuidar, para que sanemos feridas do passado. O conteúdo tem razão. A forma, nem sempre.

Para começar, pela forma como ela é enxergada. Falamos dela na terceira pessoa, como quem olha de cima para baixo. Forçamos uma certa intimidade, para disfarçar nosso desejo de impessoalidade.

Na infância, estamos conhecendo o mundo. As impressões lá adquiridas vão servir de referência para todo o novo que acessarmos ao longo da vida. Descobrir é um exercício cumulativo, no qual o que veio antes influenciará o que vem depois.

O problema é que tudo que aprendemos, desde a primeira respiração, é associado a conceitos e crenças. Vindos de adultos, que agem a partir de preconceitos – angariados por experiências próprias ou por heranças que lhes foram transmitidas.

E é assim que a criança se fere: pelo medo do desconhecido, pela incerteza dos papeis a desempenhar, pela insegurança frente aos próprios recursos. Assim como qualquer ser vivo, não nascemos para o fracasso.

No entanto, deixamo-nos contaminar demais por esse falso poder oferecido pela consciência, e, em nome de uma preservação do confortável e seguro, embotamos o grande sanativo infantil: a criatividade.

Percebemos a tal criança ferida no discurso monótono e tedioso dos incapazes de fantasiar, e de crer nas próprias fantasias. A chaga que carregamos em nossa criança interior é a incapacidade de brincar.

Levamos muito a sério aquilo não tem tanta importância: opiniões alheias, modismos, certezas. E esquecemos o maior valor da infância: a descoberta sem julgamentos. Brincar alivia o peso da vida.

Brotam daí todas as intolerâncias, todo o desrespeito. Pois não conseguimos enxergar na diferença um caminho alternativo; seguimos apenas o caminho já pavimentado, por parecer mais seguro. E morre assim dentro de nós a capacidade de escuta da alma – da própria e da do outro.

A cura da criança ferida depende de uma entrega confiante, fora dos parâmetros normóticos. É não taxar o sentir como ridículo, arriscar a metáfora como forma de explicar o mundo. Trocar a dita realidade pelo “faz de conta” – assim como acontecem nas fábulas e histórias infantis.

E isso não é devaneio de um analista romântico. É a compreensão de que, no mundo interior, as coisas obedecem um desenho muito particular, e bem pouco lógico. Nossa realidade psíquica é feita de imagens e emoções, e não de conceitos rígidos. Querer enquadrá-la numa realidade cartesiana é envelhecer antes do tempo. Sem amadurecer.

Daí viramos arremedos, adultos caricatos, em busca de referências do que é adequado. Agimos como crianças chatas, que querem imitar adultos mas não sabem brincar com seus semelhantes. E que não se sentem confortáveis quando a vida pede espontaneidade.

Crianças são divinais justamente por encontrarem na simplicidade das coisas respostas para grandes mistérios da vida. Cobrem os olhos para fazer sumir os grandes monstros. Partem para outra quando um plano não dá certo. Transformam-se em qualquer coisa, sem temer uma irreversibilidade do desejo. Veem mágica em cada gesto, em cada palavra, em cada troca.

Psique: Não consigo acreditar que as pessoas nasçam mau-caráter

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Um provérbio russo diz: “Só coramos ao cantarmos a primeira canção”. E assim costuma ser quando precisamos vencer alguma barreira. Seja ela para o nosso crescimento ou para a nossa degradação.

Não consigo acreditar num “mau-caratismo inato”, em alguém que, ao nascer, já carregue consigo inclinações para o erro. Com isso, não quero dizer que somos produto do meio. Não somente.

Percebo temperamentos que se manifestam de forma inata, uma espécie de tonalidade natural da alma, que conduzirá atitudes e reações. Mas falo aqui principalmente do caráter. Vai além da forma como somos afetados pelos acontecimentos. Mostra como reagimos a eles.

A primeira atitude que marca o descaminho costuma vir acompanhada por uma sensação ambígua. Um constrangimento, mas também um pequeno triunfo. Afinal, quando nos corrompemos, o fazemos em busca de algum benefício: abreviar um desconforto ou encontrar uma vantagem – preferencialmente, antes do outro.

Na infância, vemos isso claramente quando a criança comete suas pequenas subversões. Inocentes, pertinentes à idade. A moeda achada e guardada no bolso, esconder o chocolate para comê-lo sozinho, mentir sobre as verdadeiras intenções…

O sorriso que esboçam denuncia algo que vai além da sagacidade: aponta para o prazer que deriva do ilícito, do que é contrário ao adequado. É a primeira dose que tomamos do licor do poder. E que, em repetição, pode nos embebedar.
O descaminho é sedutor justamente porque é saboroso, aprazível, vantajoso. Caso contrário, o afastaríamos naturalmente da lista de possibilidades. O problema está nas consequências, muitas vezes mais complicadas que o impasse gerado pela situação original.

Valores são como o alicerce de uma construção. Para que seja sólido e estável, precisa de assimilação, sedimentação, compactação. Os exemplos funcionam como moldes: as referências que preciso ter para nortear minhas atitudes. Mas não são garantias.

Se assim fosse, a debilidade de caráter não se manifestaria em filhos de pais estruturados. Ou, entre irmãos, todos assumiriam uma postura semelhante diante de uma questão duvidosa. Até um certo momento, os pais tem a responsabilidade de oferecer essas referências. Depois, é cada um que irá manter, destruir ou melhorar aquilo que herdou.

Não prego o discurso moralista, até porque entendo que o erro é a estratégia que encontramos para o desenvolvimento. Se sujou, limpe. Precisamos nos responsabilizar por nossos atos, mesmo que as consequências não sejam condizentes com a nossa intenção.

A vida é um exercício empírico, uma peça que estreia sem ensaio. É óbvio que vamos nos surpreender com atitudes equivocadas, com nossa maledicência escapando entre os dentes, entre os dedos, desfigurando nossa face.

Mas, no fundo, somos as melhores testemunhas de nós mesmos. Quanto mais atenção temos com o que fazemos, mais aprenderemos sobre quem somos. Evitar o erro não deve ser prioridade. Só não podemos permitir que nossa face deixe de corar diante dos equívocos cometidos.

Psique: Maldição e benção: crenças têm a importância que lhes são creditadas

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Não sou de uma família tradicional, no sentido pomposo da palavra, mas trazemos conosco crenças que atravessam gerações. Superstições, inclusive. Na casa de minha mãe, algumas palavras eram mais proibidas do que palavrões. Miséria, desgraça, peste, praga…

O argumento é de que, quando chamamos tais palavras, elas poderiam atrair para debaixo do teto o seu significado. Uma coisa meio “O segredo”, décadas antes do lançamento do best-seller. Atraímos o que chamamos, sejam bênçãos ou maldições.

O tempo e a profissão me fizeram perder esse medo. Não de todo. Teria como ser diferente? Meu ofício me ensina a lidar com as misérias humanas, sendo elas das mais distintas espécies. Essa lida, tenho uma função educativa de nominá-las. Só é possível combater o que foi reconhecido.

A ideia da desgraça é um dos principais temores humanos. Não queremos imaginar que Deus nos deu as costas. Na imagem divina, encontramos a ideia de um amparo para que suportemos as adversidades, estando elas fora ou dentro de nós.

Da mesma forma, quando abençoamos alguém (o que é comum nesse jeito tradicional que cito), o que se busca é uma dupla afirmação do sagrado: em mim e no outro. É como se emprestássemos nossos braços para acolher, suplementando provisoriamente o abraço divinal.

A bênção legitima uma crença num futuro melhor. É um reforço para a imagem original de todas as religiões: sermos filhos queridos de um ser superior, capaz de orquestrar a realidade em nome do bem e da completude.

Esse é um traço comum por validar uma necessidade psíquica: o progresso, derivado da integração de fatores desconhecidos ou dissociados. Assim como acontece quando esperamos que Deus ofereça um sentido. Quando o caos se instala sobre as coisas do mundo, quando o que vemos não encontra sentido na nossa lógica.

Ao evocarmos uma bênção, recorremos, de forma humilde e submissa, a essa parcela sagrada que nos habita. Conferimos a ela um poder que, no fundo, nunca lhe faltou. Mas que o ego, em sua visão limitada e tendenciosa, pode querer tomar para si. Em vão, por mera incompetência.

Essas são algumas das razões que fazem da Psicologia Analítica uma vertente bastante atenta à religiosidade. Jung, inclusive, foi acusado diversas vezes de ser mais místico que científico.

De fato, ele reconhecia o mistério e a busca do significado como os grandes cernes da psique humana. Ao fim da vida, já não se importava tanto com os créditos pejorativos que lhe davam: ele não acreditava em Deus, ele “sabia” Deus.

Da mesma forma, as bênçãos e maldições que nos chegam no consultório, nos discursos dos clientes, são observadas com o respeito e a reverência devidas. Terão sempre a importância que lhe são creditadas. Seria um absurdo querer destruir algo tão importante para a realidade do indivíduo. Afinal, nunca sabemos qual é a viga mestra, a que sustenta toda a edificação.

nivas gallo