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Psique: Se achar não significa ser. Mas, para muita gente, já é o suficiente

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“Pensa que é dona e eu lhe pergunto: quem te deu tanto axé?” O verso, citado por Caetano Veloso, corresponde a um questionamento muito presente no linguajar do soteropolitano. Remete ao candomblé, religião de hierarquia forte, na qual qualquer conquista deriva da transmissão de um mais velho para um mais novo.

Tal frase me vem à cabeça em diversos momentos. Para mim, ela é a melhor para descrever a tal da síndrome do pequeno poder. Diante dele, só mesmo atuando com a ironia debochada do linguajar baiano (afinal, só o humor nos salva de coisas tão mesquinhas).

Se achar não significa ser. Mas isso já é o suficiente para muita gente. Contentam-se em atuar de forma soberba em pequenos territórios, como se deles fossem.

Defendem cargos, postos e vínculos – mas não com o olhar de quem cuida, e, sim, de quem domina. Confundem-se com pequenas conquistas, perdem grandes oportunidades.

Tornam-se insuportáveis, evitáveis. Essa arrogância apaga qualquer carisma. Transformam-se naquela pessoa que é bonita, mas antipática. Rica, mas ostentadora. Sabida, mas chata. Poderosa, mas imprestável.

Cercando os soberbos, somente dois tipos de pessoas: os subalternos, que o admiram, e os oportunistas, que o invejam. Se são boas companhias? Fora delas, a solidão.

Em seu interior, percebem-se completamente desconectados desse “sucesso alcançado”. Nunca se satisfazem, vivem um vazio profundo. As glórias que buscam tentam, quase sempre, encobrir feridas profundas. É o analgésico que encontram para encobrir a dor que delas deriva.

A tristeza de ser assim geralmente bate quando se deparam com a transitoriedade das coisas. Sim, nada é para sempre. Nascemos em um mundo que já está pronto, e que carrega modelos. Ocupamo-nos de alguns deles. Quando vier a morte, um novo alguém assumirá tal função. Talvez melhor que nós mesmos.

Pensar assim não é subestimar a importância de cada um. Seria incoerente, uma vez que meu trabalho é, basicamente, fazer realçar a individualidade daqueles que me procuram. Em geral, a soberba não cabe naqueles que trazem consigo o compromisso do desenvolvimento.

Estes sabem que ser bem-sucedido não é só ter privilégios, mas principalmente responder a encargos mais sérios. Aprimorar-se naquilo que se destacam é uma meta repleta de significado, é realizar a própria vida. Querem ser lembrados pelo que foram capazes de transformar na terra, no outro. E não só por sua ambiciosa busca por alguma hegemonia.

Somos diferentes, apenas. Mas não superiores. A quem escala para se ver acima dos demais, um conselho: melhore. Se é para eternizar-se nas memórias do mundo, que seja de uma forma positiva, pelo que fez. E não por sua pretensão.

Psique: Pessoas verdadeiramente espiritualizadas não cultivam a hipocrisia

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Como analista junguiano, uma das principais demandas que escuto de meus clientes diz respeito à espiritualidade. Em diversas versões: incompreensão do conceito, vontade de desenvolver esse atributo, a confusão gerada pelos dogmas religiosos.

Como que instintivamente, acreditam que uma melhor elaboração do tema poderia conferir-lhes mais bem-estar. E estão plenos de razão. Encontrar-se espiritualmente é a finalidade para cada indivíduo, uma espécie de meta na existência. E isso não está necessariamente associado à religião.

Entendo uma pessoa espiritualizada como aquela que encontrou e aprimorou os valores e talentos que lhe fazem única. E que, fielmente entregue a isto, passou a empregar tais características a serviço do outro, em nome de um bem comum.

Em suma: espiritualidade é serviço. E, seguindo esse conceito, todos podem ser altamente espiritualizados exatamente com aquilo que são, com as facilidades que têm. Não há porque pensarmos que um dito “líder espiritual” é mais elevado que um chaveiro, por exemplo. Tudo dependerá daquilo que é entregue – seja um conselho, ou uma cópia de chave.

Inclusive, pensar assim mudou profundamente a forma como interpreto as religiões. Ainda as compreendo como um bom caminho para desenvolver a espiritualidade – uma vez que nos chamam à reflexão do lugar que ocupamos no mundo. Mas tenho buscado me libertar dos discursos, e focar nas atitudes.

Muitos que se proclamam espiritualizados são, em seu íntimo, clientes de Deus. Ou dele apropriam-se indevidamente. Buscam, pedem, reclamam, barganham. Mas pouco estão dispostos a verdadeiramente servir ao semelhante – seja com uma palavra, um silêncio, um gesto. Agem como acumuladores de milhas, e não como quem quer atender ao chamado de quem necessita.

Um ser espiritual reproduz o caráter transcendente do que entendemos por Deus: vai além do óbvio, compreende, excede à normalidade. Faz a diferença, positivamente. É capaz de transformar uma vida, de abrir frestas que ajudam a iluminar e arejar o sofrimento, a carência e a incerteza do outro.

E, para isso, não precisam de esforço, de ser quem não são. Espiritualizar-se não é criar uma personagem, é saber despir-se das que a vida já obriga a carregar. É um encontro de dois dispostos, seja lá qual for a circunstância.

Palavras não conduzem o espírito. O sentido que damos a elas, sim. O simples fazer não me aproxima do sublime, mas a intenção do feito pode ser transformador e reverberante. Pessoas verdadeiramente espiritualizadas não cultivam a hipocrisia. Contribuem somente com aquilo que têm a oferecer, sem deixar se levar por intenções abjetas.

A espiritualidade é uma busca grata por nos oferecer a noção de sentido: existo com um propósito, sou capaz de melhorar meu mundo único e exclusivamente por ser quem sou. Assim, o caminho que nos leva a esse estado nada mais é que o mesmo que nos leva para dentro.

Psique: Crise política: amor e poder não podem coexistir num mesmo ambiente

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Jung nos ensina que o amor e o poder não podem coexistir num mesmo ambiente. Sempre que as diferenças são ressaltadas numa espécie de qualificação, fica complicado ter uma atitude de aceitação, compreensão, inclusão, respeito. Seja por si, seja pelo outro.

Na clínica, vemos essa premissa ser aplicada nos mais diversos campos da existência humana: relações profissionais, conjugais, familiares, religiosas. O poder quase sempre é a base para o sofrimento, justamente por não dispor, ao outro, a capacidade de observar as diferenças de seu semelhante sem, com isso, ter de impor sobre ele uma cobrança, uma medição.

O momento político que atravessamos é um reflexo explícito disso. O poder chamou para perto, cada vez mais perto, o desamor. Chamou também a incapacidade de pertencimento, de unificação, de um propósito comum.

O vigente, ao que parece, é ganhar mais, para quem tem acesso aos dividendos e quer detê-los para se tornar ainda mais poderoso. Ou ter razão, para quem acompanha de longe e, iludido, sente-se no dever de defender algum possível injustiçado.

Independentemente do papel que se seja capaz de assumir, o que mais fica evidente é a incapacidade de empatia – a porta do amor. Especialmente com quem não tem condição de defender os próprios direitos, por ter a voz negada.

Não se fala mais nas intoxicações provocadas em Mariana, nem nas calamidades da seca no semiárido. Tampouco no travesti assassinado e ridicularizado no vídeo do WhatsApp. Nem no jovem negro, condenado como traficante a 11 anos de prisão por portar um frasco de desinfetante. Nem na criança morta pela falta de assistência médica.

E por que não? Esses nunca foram eleitos ao amor. Esses nunca preocuparam a sociedade – somente quando, de alguma forma, representam uma ameaça ao poder já alcançado. Amamos somente quem enxergamos, e esses só são vistos quando há alguma conveniência.

Estamos indignados com a falência dos nossos poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – por ainda acreditarmos que neles estaria a solução para nossas mazelas. De fato, nossa descrença maior está na capacidade transformadora do amor. Talvez por ainda associarmos a este afeto um tom meloso, em tons pastéis, um tanto passivo.

Amar o Brasil é mais que defender um partido político, uma ideologia, uma religião. Ou, até mesmo, o nosso território conquistado – seja ele um quadradinho ou um grande feudo. Para exercer esse amor, temos de estar dispostos a abraçar o sujo, o empoeirado, o enlameado, o desdentado.

Esses representam uma das grandes sombras que queremos evitar. Falam da rejeição, da falência, do insucesso, da senzala, do incapacitado, do doente, do imperfeito. Queremos consertá-los, num higienismo hipócrita de quem melhora a realidade usando a denegação: “Se eu fechar os olhos, o problema deixa de existir”.

E assim vemos cracolândias dispersadas, crimes indulgenciados por delação e o argumento de comparação do mal maior com o mal menor. No lugar disso, deveríamos simplesmente ouvir o velho Jung: “O melhor trabalho político, social e espiritual que podemos fazer é parar de projetar nossas sombras nos outros”.

Psique: A resposta de incontáveis questionamentos está em seu inconsciente

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Como é que a relação que você tem com seu chefe corresponde à forma como seu avô tratava sua avó? Por que será que você sente enjoo quando escuta palavras ofensivas, mesmo que estejam sendo dirigidas a outras pessoas? O que o fim dos seus relacionamentos tem a ver com a forma como você é vista por seus irmãos?

A resposta desses e de outros incontáveis questionamentos, aparentemente desconexos, está em você. Mais precisamente em seu inconsciente, um termo muito popular, mas pouco compreendido. Meu desafio, hoje, é tentar apresentá-lo.

Conceitualmente, é fácil. O inconsciente corresponde a tudo aquilo que a consciência não é capaz de identificar, nominar, compreender, interpretar, refletir. Mas que existe, apesar de desconhecido pelo ego (a voz do “eu”).

Existe e tem poder. Muito poder. Capaz até de alterar os desígnios e decisões da própria consciência, de forma mais corriqueira do que você pode imaginar.

Os conteúdos inconscientes se agregam em núcleos temáticos, permeados por emoções. É o que chamamos de complexos afetivos. Eles processam os acontecimentos, internos e externos. Ou seja, não só o que vivemos, mas também nossas impressões, fantasias, frustrações e expectativas.

A semelhança das experiências é o que encorpa o complexo. Assim sendo, tudo aquilo que remete à traição, por exemplo, ficará ali, junto e misturado: imagens apreendidas, emoções vivenciadas e referências exteriores. Vão se construindo como um novo ser que nos habita.

Quando uma nova vivência remete a algum desses componentes, esse ser acorda. E passará a atuar a partir de sua coerência própria, tendo por base as experiências anteriores. Ou seja, o complexo tem uma estrutura própria de pensar, sentir, acreditar, agir, sofrer, gratificar-se.

E assim experimentamos situações como as descritas no primeiro parágrafo. Fisgados pelo complexos, perdemos o discernimento de onde e com quem estamos. Reagimos não só ao que o momento pede, mas a tudo aquilo que acumulamos sobre determinado tema.
Por exemplo: uma pessoa que se sentiu desprestigiada por um amigo numa rede social poderá atingir um alto grau de sofrimento a partir disso. Algo aparentemente banal, mas que, nela, pode ter feito acordar todo um complexo de menos valia, inadaptabilidade e dificuldade de inserção social. Toda a rejeição de uma vida se atualiza ali, e ela reage a isso.
Da mesma forma, surgem as simpatias. Ou seja, as situações afins, com as quais nos identificamos positiva e prontamente. Um novo amigo, ou um novo lugar, podem aludir diretamente a uma situação de conforto e confiança. E assim a adesão é imediata: sentimos uma intimidade inexplicável, uma sensação de segurança, como se o novo existisse há tempos.

Uma vez que isso faz parte da estrutura da psique, precisamos aprender a lidar com os nossos complexos dominantes, como forma de sermos, antes de qualquer coisa, mais justos conosco e com o mundo. Assim, não emitiremos uma fatura mais cara do que a cobrada pela circunstância

Psique: A vida não precisa estar ruim para que nos sintamos insatisfeitos

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A vida não precisa estar ruim para que nos sintamos insatisfeitos. Não carecemos de um problema exato, de um dilema identificado, de uma relação frustrada. Tudo pode estar nos eixos e, ainda assim, pairar uma sensação de estranhamento, de falta, de impertinência.

Depressão, a aposta óbvia, é o extremo patológico desse estado. Mas nem sempre chegamos a tanto: a vida está seguindo, funcionando, apesar do esvaziamento. Não se vê a solução num sedativo para o sofrimento. Aliás, sofrimento não é a melhor definição para aquilo que se sente.

Melancolia é o bom nome que os gregos criaram para definir esse estado: o veneno sombrio, a bílis da tristeza secretada pela alma. Ela escorre por nossos sonhos, alterando-lhes o sabor. O amargo afasta a doçura, deixa o paladar metálico, ríspido, pesado. Talvez daí venha o tal “gosto de cabo de guarda-chuva” – a metáfora para o estado melancólico da ressaca.

Nenhum afeto se apresenta sem um propósito maior. Existe em nós uma tendência quase compulsiva a querer correlacioná-lo a algum acontecimento exterior. Ignoramos, assim, que a dinâmica psíquica vai além de fatores sociais, relacionais e biológicos. Especialmente quando os isolamos para facilitar nossa observação.

A alma fala por uma linguagem própria, numa pertinência absurda. Chega a ser constrangedor quando, pela reflexão, conseguimos compreender algo que ela expressa. Constrange por percebermos que aquilo sempre esteve ali, só não éramos capazes de enxergar.

É como se, por um átimo, acessássemos todo o conhecimento do nosso universo particular. Em geral, a experiência mobiliza a ponto de alterar cursos e ritmos. Costuma colocar o trem novamente no trilho. Em alguns, é como se desesperasse ainda mais o maquinista: a vontade de agir faz com que ele descontrole ainda mais o manete. Imprevisibilidades da nossa mente.

A melancolia não escapa dessa regra. Se está ali, tem uma função – ainda que incompreendida. O mundo contemporâneo nega espaço a esta compreensão: não devemos perder tempo com aquilo que não afirma a produtividade, a forte atuação social e o sucesso.

Ignoramos que esse estado melancólico possa ser uma espécie de elaboração. É como um terreno que se prepara para a semente. A terra sendo remexida, a putrefação do adubo enriquecendo o solo, nascentes sendo desviadas para a irrigação. E o vazio desolador das covas nuas, vazias, à espera do que virá a brotar.

Suportar essa espera é um desafio, especialmente àqueles que “não têm tempo a perder”. Mas, para que sincronizemos relógios e calendários ao ritmo da alma, é preciso escutá-la. Reverenciá-la, até mesmo quando ela parece se esconder. Contentar-se com o mais sutil dos sinais que venha a oferecer, em vez de desejar que ela se manifeste algo arrebatador.

Nossa percepção é simplória demais para tudo aquilo que queremos saber. Assim, resta-nos confiar em um propósito maior, sempre que nosso eu se assemelha a um campo limpo. Concentrar-se na possibilidade, em vez da ausência. Somente assim teremos chance de acessar aquilo que é imenso e sublime em nós.

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