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Psique: O ego é uma figura imprescindível para a manutenção da saúde psíquica

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Na semana passada, citei num texto sobre o vazio algumas características do ego. Entre elas, a pressa, o olhar limitado e a necessidade de controle. Pareceu que eu queria criticá-lo, como ressaltaram alguns colegas analistas. Não foi a intenção.

Quem me conhece, sabe que não apoio o discurso antiego. Ele é fundamental para que tudo não desmorone, para que a individualidade possa se realizar com a influência e não sob o domínio dos conteúdos coletivos. Defendo o ego de forma respeitosa.

O ego é aquele que interpreta a realidade, e a define como tal. Ou seja: é quem identifica, nomeia e processa aquilo que vivenciamos, sentimos, pensamos e fantasiamos. É uma figura imprescindível para a manutenção da saúde psíquica.

Sem ele, seríamos difusos, inconsistentes – pois assim são os incontáveis personagens que nos habitam. Não se vê nessa pluralidade toda? Então, avalie com sinceridade: você age da mesma forma diante de sua mãe, no trabalho, na religião e nas relações conjugais?

Cada contexto chama um personagem, e todos cabem dentro de si. Cada um com suas particularidades: interesses, crenças, emoções e sistemas. Cada personagem é coerente em si, mas não necessariamente com os demais. São como personalidades que nos habitam. Algumas convivem bem com as demais, outras, não.

Por este motivo, costumo dizer que ele é o zelador do prédio, o gerente do RH. É ele quem tenta administrar uma pluralidade incontável de personagens que constituem o sujeito. Encontrar o espaço certo e a forma mais adequada para harmonizar essa convivência. Nunca é fácil, pois os interesses costumam ser divergentes.

O ego é quem mais sofre nessa história toda, pois é puxado a atender uma série de demandas e interesses. Na análise, ele é o meu interlocutor e também a voz dos demais personagens. Ora para defendê-los, ora para acusar os danos por eles gerados.

Meu ofício parte dessa escuta. De compreender com quem o ego está irmanado, e de avaliar como está a capacidade dele de lidar com as asperezas da realidade. Ele é a voz do sofrimento, é quem reclama do mundo que não se comporta de acordo com os ditames do que julga correto.

Quantas e quantas vezes, ele chega aqui fraquinho, indefeso, incipiente. Ainda indiferenciado das questões familiares; achando que é seu aquilo que, de fato, é uma reprodução de imagens herdadas pela mãe e pelo pai. Sem capacidade ainda para realizar sua verdadeira missão.

O ego é aquele que se encarregará da realização da alma, é o seu veículo. Quando está devidamente fortalecido, fará com que o indivíduo explore suas potências da melhor forma, e, assim, possa marcar sua presença no mundo.

Propiciar o desenvolvimento do ego não é inflacioná-lo, cedendo lugar à ignorância, à soberba, à mesquinharia. É fazê-lo compreender da tal missão e curvado a atender tais propósitos, maiores que sua vontade e prazer. Ele é o cavalo que, para executar bem o trajeto, precisa estar submisso e confiante no cavaleiro que o conduz.

Para que se atente a isso, muitas vezes ele precisará ser contrariado. E será. Seja no processo analítico, de forma simbólica, seja nos acontecimentos e eventos concretos. A vida corrigirá os cursos dos egos arredios, mesmo que isso seja marcado pela dor e pelo sofrimento. O maior deles, certamente, será o de perceber-se limitado. Humano, simplesmente.

Psique: No fundo do poço, há água limpa. Mas é preciso coragem para lançar-se

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Ao vazio atribui-se tudo de pior. A dor, o sofrimento, o descontentamento, o medo, a incompletude. Ele é o grande inimigo do ego: o zelador metido a dono do prédio, que quer tudo na mais perfeita ordem. Sem perceber, no entanto, que ele mesmo não é capaz de vislumbrar a perfeição.

Daí tenta-se preencher o vazio com palavras, objetos, relações. É inútil. Ele persiste lá, e persistirá. É assim que deve ser para que seja preservado o sentido da existência – e não só os caprichos e confortos egoicos.

Tudo brota do vazio. A semente carrega em si uma câmara oca. O útero é um vazio. O silêncio é um vazio. Nele, então, temos o princípio da criação das coisas, dos seres, das ideias.

A alma precisa desse espaço ocioso para se manifestar. Longe dos preconceitos e dos determinismos que limitam a realidade ao cristalizá-la. Se estamos totalmente preenchidos por algo, não há espaço para a inovação. Ficamos estagnados.

No entanto, isso nos parece mais seguro. São as âncoras usadas para manter o ideal de controle do ego. Nossas certezas preenchem nosso campo de visão. As prateleiras vazias evocam possibilidades que ainda não consegui vislumbrar – e isso é confundido com fracasso.

A natureza é tão sábia que se encarrega de desocupar espaços. Desgasta, corrói, esfacela. O tempo, agente compulsório da transformação, assume o papel de fomentar o vazio. Ele é o irmão mais velho da morte. E ela é a mãe das possibilidades.

Quando recebo alguém se queixando de um vazio, sentindo-se o pior dos seres justamente por isso, escuto o eco de uma alma que quer se realizar. O difícil nesses momentos é convencer o “eu” a confiar e retirar-se dessa função dominante, sob a promessa de que algo melhor surgirá.

A metáfora do “fundo do poço” é uma ótima imagem para ilustrar essa situação. Muitas vezes, achamos que chegamos ao fim. Mas, de fato, ainda tentamos nos agarrar nas paredes cobertas de lodo por temermos o vazio. Ignoramos, assim, que é no fundo que se encontra a água limpa, sede da vida.

Superar o desespero diante do vazio é perceber nele uma oportunidade, entender que ali está guardada toda a potência. Como nos ensinam os versos de Lao Tsé, escritos no Tao te Ching, 600 anos antes de Cristo:

“Trinta raios convergem para o centro da roda 
Mas é o vazio do meio 
Que faz andar a carroça.

Dá-se forma à argila para fazer vasos, 
Mas é do vazio interior 
Que depende seu uso.

Uma casa é furada com portas e janelas, 
É ainda o vazio 
Que permite a habitação.

O Ser dá possibilidades 
É através do não-ser que nós as utilizamos.”

Psique: Nossa história é definida pelos passos tomados no caminho da vida

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Nenhum palácio chega à ruína de uma hora para outra. Assim como nenhuma relação, carreira ou instituição. A natureza não dá saltos, e nossa vida também não. São os passos que definem o caminho assumido durante a história.

No meu trabalho, lido basicamente com queixas. Daquilo que poderia ter sido, e não foi. Do outro como embargo à felicidade. Das obrigações que forçam a ser quem não se quer. Parte de quem chega a um consultório de psicoterapia vem em busca de aliados, e não de transformação.

Grande parte dessas queixas são antigas, já ganharam lugar cativo no colo de quem as traz. Resistem ao tempo, acreditando que ele (o tempo) trará soluções. Não percebem que uma ferrugem no casco de um barco nunca irá transformá-lo num navio.

A postergação dos nossos males não é a estratégia do preguiçoso, exclusivamente. Muitos dos que adiam decisões não o fazem somente por uma passividade frente os acontecimentos. Mas por descrença, insegurança. Acham que o esforço é válido, mas não suficiente para reverter situações.

Assumem, então, o lugar dos esperançosos: aqueles que creem mais nos acontecimentos que nas realizações. E, aos poucos, recebem por baixo da porta a fatura da negligência diante da vida. E é justamente ele, o tempo, quem aparece com as cobranças.

Daí pensam: é tarde demais, as condições não são mais favoráveis. A coragem para recomeçar, a disponibilidade para aprender, os créditos para estabelecer novos vínculos, o colágeno da pele… Tudo parece ter diminuído, deixando escassas também as chances de novos empreendimentos bem-sucedidos.

Assim, sucumbem até o fim dos dias – quando a fisiologia do corpo ou a decisão do outro será capaz de resolver por si. Arrependem-se muito da primeira fumaça, do primeiro indício, da sinalização inicial. As coisas não estavam indo bem e algo precisava ser feito. “E eu não fiz”. Culpar-se não é a saída.

Você conhece a teoria da vidraça quebrada? Ela foi desenvolvida por dois pesquisadores americanos, J. Wilson e G. Kelling, e fala basicamente que desordem gera desordem.

Se deixarmos uma casa fechada, porém intacta, ela assim se manterá por bastante tempo. Quando a primeira vidraça for quebrada, o vandalismo rapidamente se instalará e, logo, a casa estará destruída.

Podemos pensar metaforicamente na teoria e na administração dos nossos problemas. É necessário repor as vidraças logo que se quebrem, para que a energia de abandono não se instale. Caso ocorra, a reparação dos danos será mais dispendiosa e desgastante.

Encarregar-se daquilo que nos inspira mal-estar é cuidar da vida. Cuidado é a palavra mais apropriada para designar a coragem para resolver um problema, encerrar uma fase – e dar início a outra. Só quem cuida de si é capaz de perceber a graça no trajeto, o significado de existir.

Psique: Preocupe-se menos em ser admirado e mais com ser bem resolvido

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“Não há melhor resposta que o espetáculo da vida”. Sou um enfático defensor dessa frase de João Cabral de Melo Neto. Sim, é ela – a vida – quem nos golpeia nas esquinas escuras. Mas é nela que também encontramos o triunfo, a recompensa pela dedicação que temos.

Não contesto aqui quem acredita no reino dos céus, na felicidade além-túmulo. Feliz de quem pensa nessa continuidade. Até porque quem tem isso como parâmetro também costuma manter vigilância aos atos maléficos que comete (e que podem comprometer essa espécie de plano de carreira).

Para mim, são vários os ingredientes que compõem o bem-estar. O mar, um amor, amigos, uma música alegre, fé, a palavra certa, arte, acarajé… Nem todo dia dá para ter essas coisas. E isso é bom: até para que eu possa valorizá-las, como deve ser.

Ruim mesmo é lidar com a injustiça, em qualquer sentido, com o desamor, com a insegurança, com a miséria. Isso mina a saúde de qualquer ser e, invariavelmente, irá nos atingir em maior ou menor grau.

E, quando atinge, abala primeiro a confiança. Principalmente quando assimilamos o outro como origem para nosso desconforto. Daí brotam vínculos venenosos. Começamos a creditar ao outro o nosso mal, o nosso desequilíbrio. E assim ficamos ainda mais contaminados.

Nesse processo, nossa energia vital se dispersa: uma parte segue para cumprir nossos objetivos, a outra se destina a nutrir ressentimentos, ímpetos de vingança, vultos de perseguição. Um desperdício, por não corrigir os danos que foram causados. Mais que isso: uma estratégia de defesa autodestrutiva, degenera mais que serve.

Muitos encontram em tais argumentos uma trincheira, uma justificativa para insucessos e incapacidades. Erram, por destinar os recursos que têm para combater o inimigo errado. Em vez de batalhar pelo próprio desenvolvimento, abrem novos drenos, por onde escoam oportunidades.

Com elas, temos a chance de mostrar quem verdadeiramente somos. Quando conhecemos nossas potências, não sucumbimos por pouco. Aportamos nossa capacidade naquilo que temos, e não no que nos falta. E assim reconstruímos realidades até melhores do que as que foram subtraídas.

Essa reconstrução é um exercício grato, por nos ensinar sobre a resiliência. Envergamos, sem quebrar – e isso nos faz mais fortes, menos frágeis do que o pensamento inicial nos fazia acreditar.
Viver bem deixa de ser um exercício para contemplar a expectativa alheia, ou até mesmo para mostrar ao outro o quão capazes somos. Preocupamo-nos menos em sermos admiráveis, exuberantes, invejáveis. E dedicamos nossa atenção a sermos bem resolvidos. Passamos, assim, a desfrutar daquilo que a alma nos presenteia, simplesmente por merecermos.

Psique: Existe limite para o perdão?

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Quantas chances uma pessoa merece? Quando um erro pode ser compreendido, quando é inadmissível? Ceder é uma atitude louvável ou uma idiotice? Limites frágeis definem valores tão subjetivos.

Nós, terapeutas, somos muitas vezes acusados de complacência. Defendemos os errados, sob o argumento da inconsciência de seus atos. Já ouvi comentários até que soam como insultos: “é fácil falar, queria ver se fosse contigo” – o mais comum.

Até certo ponto, é verdade. Não somos (ou deveríamos ser, ao menos) tão inimigos assim do erro. Mas a defesa que fazemos não é por sermos bons ou tolos. E, sim, por compreendermos que qualquer ato está ligado a uma complexa rede de acontecimentos. E que, por trás de cada gesto, há uma mensagem que tenta ser transmitida. Mesmo que da forma mais torpe.

Assim como ninguém nasce para ser um fracasso, não há nenhuma atitude planejada para dar errado. O sucesso, no entanto, derivará de uma série de fatores. Muitos deles serão incontroláveis, até ao sujeito mais minucioso.

Quando o outro comete uma falha, ele nos frustra duplamente. Não só por interromper nossos planos, mas principalmente por nos lembrar que lidamos intimamente com a possibilidade do erro. Isso justifica a dificuldade dos perfeccionistas em abonar o erro do outro.

Ao darmos outra chance a quem erra, fazemos mais que uma simples aposta no acerto. É um voto de confiança, uma forma de mostrar solidariedade à condição falível que nos atravessa a todos. É também uma atitude amorosa: capacitar o outro a refletir sobre o ocorrido, para que possa revisar atitudes e corrigir posturas.

Há um limite razoável para isso? Obviamente. Não se trata de um chamado a cegar-se diante das falhas. É necessário discernir entre uma incapacidade legítima e uma intenção maligna, pois, é fato, existem aqueles que estão impregnados por mal maior que a minha capacidade de detê-lo.

A estes, também cabe alguma misericórdia, novas chances para que possam interagir com o mundo de forma menos nociva. Mas, pergunte-se: serei eu a pessoa mais indicada e capacitada para auxilia-lo, ou é o momento de me preservar?

Uma coisa é certa: a outra chance, seja ela para quem ou o que for, só é válida quando é uma decisão madura, genuína. E não quando aparece como uma espécie de crédito para validar meus futuros erros. Muitos negociam indulgências com esses trunfos, e impedem que as relações em questão sejam maduras, honestas e profundas.

Mas estou certo de que esgotamos as possibilidades bem antes do nosso verdadeiro limite. Desistimos fácil do outro, não só por não crermos na sua capacidade de melhorar. Mas por saber que, para que o erro do outro seja superado, exige-se também uma reforma naquilo que somos. A vida não é somente uma disputa por razão.

nivas gallo