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Outras Ondas: Uma avenida chamada Brasil

Milhões de brasileiros atendem fielmente ao soar que ecoa todas as noites, em lares, bares e afins: oi oi oi! Todos se rendem ao mais recente e intenso fenômeno da televisão brasileira, a novela Avenida Brasil , palco das peripécias de Nina, Carminha e companhia. O tema invade, sem resistência, as conversas entre amigos, redes sociais. Gera ótimas sátiras – como a do jornal carioca Extra, que, na última quinta-feira, identificou os personagens do mensalão com a trama. A mídia e os próprios telespectadores se perguntam: mas por que tanto sucesso? Certamente, pelo “efeito espelho” que a trama de João Emanuel Carneiro propicia.

A adesão do público não está na velocidade da trama, como apostam muitos críticos. O que fideliza quem assiste à novela é a emoção fluida dos personagens. É óbvio que, como em toda criação artística, o exagero caricatural participa da construção das falas e dos trejeitos. Mas todos ali são possíveis: manifestam o que somos, quem conhecemos ou, no mínimo, o que fantasiamos como ideal de realização.

Ao aplaudir uma mocinha capaz de roubar, dissimular e extorquir, o público está acatando um fato irrefutável: o mal não é um ente alheio à nossa alma. A vingança de Nina, apesar de uma gritaria excessiva, propicia a todos uma deliciosa sensação de alívio. Vê-se ali a vontade cotidiana de revanche, que todos os dias enfrentamos ou precisamos sufocar. Essa projeção é a base da arte: a catarse, o movimento que nos unifica em torno de um mesmo tema, dando-nos uma grata sensação de fraternidade: emoções nos atravessam de forma muito semelhante, o que nos oferece o conforto do pertencimento.

A sede de poder permeia todos os meios, do Divino à Zona Sul. Uns se satisfazem com pequenas conquistas, enquanto outros cobiçam grandes reinos: a notoriedade, a sedução, o dinheiro, o comando sobre a vida dos demais. Jung dizia que uma relação pautada pelo poder jamais conhecerá o amor. Ou seja, fica difícil perceber na trama relações sinceras, desmotivadas por uma necessidade de privilégio diante dos demais. Enxergo, parcialmente, esse desapego em Mãe Lucinda, por cuidar de crianças indigentes por anos a fio – embora saiba eu que, mais cedo ou mais tarde, seremos surpeendidos com a verdadeira motivação para tamanho altruísmo…

O exemplo mais claro dessas relações compromissadas está na forma como a empregada Janaína trata sua diarista: sem pestanejar, desconta suas querelas, humilhando a funcionária com as mesmas humilhações que sofre. Repete gestos e palavras sem se dar conta do que faz: um verdadeiro culto à patroa Carminha, a quem veladamente inveja. Uma aula primorosa do conceito junguiano de sombra: preste atenção naquilo que mais o incomoda nos outros e, com o tempo, você perceberá que os defeitos eram mais seus do que deles.

Para validar a sede pelo poder, nada melhor que a esperteza. Afinal, o Brasil não é o país dos espertos? O engano e a trapaça se manifestam a cada capítulo. A sinceridade não é bem-vinda em Avenida Brasil . Basta ver Adauto, Ivana e Débora: todos bonzinhos “de dar dó” – ou seja, despreparados para enfrentar a selvageria urbana, à qual os demais parecem estar mais aptos para conviver. Mas qual seria mesmo o ponto que separa a aptidão da frieza e da crueldade?

Sou, confesso, um dos milhões lá do primeiro parágrafo – daqueles que só dispensaAvenida Brasil quando estou diante de um compromisso profissional. Assim, escreveria por horas, personagem a personagem. O que mais me liga à trama é o potencial de humanidade que ela traduz. Assisto por compreender que a novela reflete diretamente uma série de lições, com as quais convivemos diariamente: os limites dos afetos, a força da improbabilidade, as múltiplas faces que construímos para sobreviver. E, principalmente, assisto para ter a amostra diária da ação devastadora das relações pautadas pelo poder.

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A capa do Extra:

Meia Um: Brasília e a sombra do Brasil

Produzi um artigo exclusivo para a 7ª edição da revista (Meia Um). O tema é a sombra do Brasil, que se projeta sobre a capital. ´

Ilustração: Francisco Bronze
Brasília e a sombra do Brasil
Hino autoproclama Brasília como a Capital da Esperança. Os rocks dos anos 80 a reduziram à capital da corrupção. A cidade é o centro das oportunidades para milhares de jovens que aqui aportam, atraídos pelas chances de altos salários e estabilidade dos empregos no setor público. Na cabeça de milhões, ela é um ente mágico, que projeta sobre os brasileiros uma série de expectativas e de frustrações. O poder que emana da capital é a base para todas as virtudes e os problemas de uma nação. No caso de Brasília, as notícias de falcatruas e descaso com o dinheiro público transformam-na em um gênio demoníaco. A cidade aparece como o reverso de um povo tão alegre, honesto e solidário.
A observação apurada que estabeleceu sobre a alma humana fez com que o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung percebesse a presença de um aspecto interessante no dinamismo da psique: uma sombra simbólica, formada por tudo que o ego, o centro da consciência, reprimiu ou nunca acolheu. São muitos os motivos para que um motivo se torne sombrio: a repressão, o recalque, o medo e a falta de energia para se tornar consciente.
Na prática, é como se tivéssemos uma casa ampla, com uma bonita fachada e bem mobiliada. No subsolo, longe do olhar dos visitantes, a casa esconde um grande porão. O local é perfeito para abrigar aqueles conteúdos não tão bonitos, nem tão louváveis ou pertinentes, como aqueles que gostamos de ostentar um andar acima. Mas não devemos confundir o porão com um depósito de coisas desagradáveis, somente. Lá também são guardados os elementos que são grandes demais para ocupar o piso térreo. Assim sendo, a sombra não se transforma em algo bom ou ruim, niilista. É o inconveniente, o avesso da alma: por mais esforço que se tenha para ignorá-lo, ele está presente.
A sombra acaba sendo enxergada a partir de projeções: os defeitos que nos compõem nos saltam aos olhos quando vistos como “defeitos dos outros”. Incomodam, perturbam e desencadeiam uma série de emoções inegáveis. Geram críticas ferrenhas, despertam o desejo de “correção”: tenta-se eliminar no outro aquilo que se quer eliminar em si próprio. Uma batalha em vão, que acaba por reforçar tais características.
Se pensarmos em cada nação, partido, religião etc. como um organismo único, podemos enxergar com nitidez uma sombra que se forma sob seus pés. Nela, encontram- se os preconceitos e dejetos negados pela coletividade daquele grupo, tudo aquilo que não é bom de ser reconhecido. Mas que, no fundo, também faz parte do histórico daquela gente. Instituições que combatem ferrenhamente a corrupção aninham ladinos em seu seio íntimo. Na necessidade de pregar a moral exacerbada, cometem-se crimes contra a vida e a dignidade humana. Combatem-se demônios exteriores para punir a própria vontade de exercer o mal. A insegurança sexual que se vive é combatida, a socos e pontapés, quando o que é bem resolvido com seu desejo se coloca à frente. Sombras falam pela intransigência.
Deus é brasileiro, mas parece que é o diabo quem habita a cabine de comando do País. Assumir-se brasiliense ainda é um exercício de coragem: seja para lidar com o fascínio daqueles que enxergam essa aura de poder pairando sobre a cidade, ou para lidar com o preconceito de quem a vê como um balcão de recrutamento de trambiqueiros engravatados.
Projetar os aspectos sombrios no outro é uma estratégia do ego para isolar a sombra fora do eu. Talvez por isso os brasileiros, de Norte a Sul, enviem para cá grossas remessas de seus porões a cada mandato: coronéis, palhaços, retrógrados, conservadores, aproveitadores, criminosos… Desembarcam aqui a mancheias, a cada mandato, para definir os rumos políticos. Comandam, assim, uma nação ignorante de sua própria sombra. Gente que tenta isolar, nos Três Poderes, os aspectos de si que desagradam e amedrontam. Brasília se transforma no cárcere para a sombra do Brasil – prisão luxuosa e farta, invejável para a maioria dos filhos da terra, que se intitulam “espertos” por natureza.
Brasília, enquanto capital, não tem a permissão de simplesmente ser mais uma cidade. Talvez pelo histórico recente, e crescente, de escândalos políticos aqui desencadeados. Talvez pela juventude da cidade, que ainda não a fez aflorar com uma identidade única, não institucional. Talvez por ambos, e por uma série de outros motivos que contaminam os porões da alma do brasileiro.

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O artigo também está disponível no site da (Meia Um).

Outras Ondas* – A forçosa dor do começar

sao_jorge

Um novo texto, uma nova atividade, um novo desafio. Tudo que se principia leva a uma série de questionamentos. Valerá a pena? Serei capaz de atender minhas expectativas e aquelas projetadas em mim? No que isso irá contribuir para a minha felicidade? Muitas vezes, hesitamos diante do novo, assustados com tantas interrogações. E, posteriormente, nos queixamos pela falta de oportunidades que a vida nos oferece.

Viver é perigoso, como advertiu Guimarães Rosa com toda a razão. Afinal, o risco, assim como a dor, são entes inerentes ao desenvolvimento humano. Aprender a andar, escolher uma profissão e passar no vestibular, experimentar a sexualidade, reconhecer-se nos filhos… Os grandes momentos da trajetória, mesmo aqueles lembrados com a maior ternura, foram antecedidos pela tensão da escolha: lapsos de segundos ou anos a fio na indecisão de seguir ou recuar. Seguimos e, posteriormente, percebemos que era sim o melhor caminho a escolher. Essa era a vida que precisávamos realizar.

No tarot, temos isso representado sabiamente pelo diálogo existente entre os arcanos 6, Os Amantes, e 7, O Carro. No primeiro, entendemos que a realidade oferece diversas maneiras de se manifestar e somos chamados a escolher. Muitas vezes, maldizemos a tal bifurcação que se apresenta diante dos olhos: um caminho reto, sem decisões, não coloca à prova nossa perspicácia diante do desconhecido. Percebemos que, a cada escolha, provocamos uma reconfiguração no caminho que nos levará à realização da vida.

Muitas vezes, hesitamos pelo pessimismo: tentamos optar pelo caminho menos pior, aquele que nos poupará de privações e contrariedades. Mal compreendemos que nunca escolhemos o melhor caminho – escolhemos, sim, a alternativa que precisamos enfrentar em prol do nosso crescimento. Dizer isso não é depositar uma crença em um destino fixo, pré-estabelecido. É crer que somos orientados por uma sabedoria interior inata, capaz de oferecer ao ego as lições necessárias para o desenvolvimento da consciência.

Passada a aflição da escolha, entramos no arcano 7, o Carro. Ele é o veículo que estreitará a distância entre nós e nosso objetivo que determinamos. O carro oferece a possibilidade de “acelerarmos” os processos, por esse motivo é considerada uma carta de progresso e expansão. No entanto, ela depende de um olhar bem focado – por melhores que sejam os cavalos e a carruagem, a virtuosidade está na habilidade do cocheiro. É ele quem exerce o soberano exercício da coragem, um risco que nem todos estão dispostos a enfrentar. Mas também é ele quem conhece a vitória da realização.

O grande mal do indivíduo é viciar-se em si mesmo. Mantemos hábitos condicionados, repetidos à exaustão sem nenhum questionamento, e mantemos viva a queixa de uma vida inerte. Mantemos o padrão neurótico da unilateralidade: só conseguimos enxergar uma versão para a história, uma saída para o problema, um motivo para o problema. Nessa visão limitada, ignoramos a dádiva da multiplicidade dos fatores e perdemos a chance de aproveitá-los como estruturas disponíveis ao desenvolvimento. E o tal sofrimento que tanto se tenta evitar nos chega antes e com força exponencial: pela não-concretização dos propósitos e pela frustração de não sermos hábeis o suficiente para concretizá-los.

O erro está em olhar para o fim, ignorando que toda estrutura depende de uma pedra fundamental para se erguer. Realizar sonhos depende impreterivelmente de uma ação inicial, onde a confiança e o otimismo devem sobrepor a insegurança diante do desafio. O difícil é começar, escuto diariamente dos clientes que atendo – fala que compreendo bem, mas que busco combater com a justificativa de que vale a pena mudar. A impermanência é uma lei natural: nada é estanque, tudo se transforma. Devemos obedecê-la a fim de promover boas mudanças, como agentes ativos no processo e não como vítimas das circunstâncias. Acredite: você não é mais a mesma pessoa.

Outras Ondas* – Fé cega, faca amolada

A espiritualidade é um valor inerente ao homem, motivo pelo qual a religião torna-se um fenômeno cultural intrínseco à civilização. No entanto, nem sempre o que é apregoado em cada templo ou livro religioso desemboca em um bem para o indivíduo. Tivemos esta semana uma triste prova disso. Um rapaz ceifou as expectativas de uma dúzia de famílias, além de interferir diretamente no futuro de outras centenas. Sim, todos os estudantes da Escola Municipal Tasso Silveira, além de vizinhos (e de todos nós, espectadores da tragédia) terão a vida transformada pela ação de alguém que, contaminado por pensamentos religiosos distorcidos, praticou o gesto mais vil que um ser humano pode cometer: retirar a vida de um semelhante.

É impossível dizer que o crime tenha sido motivado pelo dogma de alguma religião específica – até porque o fato de ele ser ex-aluno da escola e ter alvejado mais meninas que meninos é bastante significativo. Mas a carta deixada pelo autor da barbárie revela que o comprometimento psíquico que apresentava exercia um diálogo franco com o fascínio despertado por ideais religiosos. Há falas sobre pureza, pedidos de perdão a Deus, tudo em um tom missionário. Wellington Menezes de Oliveira entra para o hall de milhares de pessoas que agridem, matam e degredam em nome da fé.

Não quero dizer aqui que o valor redentor das religiões não seja ainda o principal caminho para que os indivíduos alcancem os valores da espiritualidade. Somos naturalmente atraídos por templos e ritos, aprendemos com os ideais morais e éticos lá ensinados. Mas esses também podem ser instrumentos para o desenvolvimento de neuroses e psicoses. A determinação dependerá do nível de ajustamento psíquico do indivíduo, da capacidade dele de distinguir minimamente as orientações dogmáticas de determinações fanáticas.

Para Wellington, a religião era o veículo da doença. Assim também o foi com a morte do filho do cartunista Glauco. Tais exemplos configuram situações extremadas. No entanto, não é preciso ter mortes para que enxerguemos o quão nociva pode ser a crença desmedida. Recentemente, os jornais baianos noticiaram a destruição de mais um terreiro de candomblé nos subúrbios de Salvador, por seguidores de outras denominações religiosas. Nem precisamos sair de Brasília: as imagens da Prainha precisaram passar por uma restauração completa em virtude de tantas agressões que sofreram. Ainda esta semana, observamos mais uma manifestação de crença nociva: uma garota do Entorno teve parte do corpo queimado com álcool em chamas, ao participar de um ritual de exorcismo encomendado pela família a um médium – um vizinho com 12 anos de idade.

A religião é um canal prático onde o homem busca conectar-se com o desconhecido, por crer que ele poderá provê-lo com respostas aos seus anseios. Muitas vezes, encontra tais explicações ou alcança a resignação necessária para o enfrentamento do problema. A segurança da ponte, no entanto, dependerá da perícia de quem caminha sobre ela. O problema é que esse desconhecido, que chamamos Deus, inspira mistérios e maravilhas capazes de cegar a razão. Em alguns casos, pode afastá-lo do terreno da realidade: é como se a ponte se rompesse, impedindo o retorno ao mundo real. Tomado pelo fascínio, o indivíduo não consegue discernir entre as vontades que lhe tomam e as questões éticas que deve seguir. A verdade ganha um tom unilateral: de um lado, eu e minhas crenças; do outro, tudo que se opõe a mim e a elas. Fé cega, faca amolada. Quando não há diferenciação entre pessoa e crença, é difícil distinguir quem manda em quem.

Óbvio e felizmente, os casos de fanatismo patológico, desses que levam à morte e à destruição, são pouco comuns e repudiados em nossa sociedade. No entanto, não podemos nos esquecer que o mal se esconde na intolerância nossa de cada dia. Manifesta-se sempre que criticamos o diferente, que olhamos com desdém as crenças que não nos atendem. Deixamo-nos contaminar até mesmo nos templos que decidimos seguir – competimos como filhotes que despertam o seio que os nutrem, sem entender que a saciedade está ao alcance de todos. Criamos escambos com Deus, inocentes da incapacidade de ludibriá-lo.

As religiões têm, em comum, uma figura de totalidade, pureza e sabedoria. E é essa a fonte que nutre a nossa espiritualidade e ética. Nem sempre conseguimos encontrá-la diretamente nos lugares que indicam com letreiros a presença da divindade. Os grandes mestres nos alertam sobre isso. Jesus ensina que a casa do Pai tem muitas moradas. Khrisna diz que as religiões são contas de um colar, e que ele (Deus) é o fio que as une. Lições genuínas de amor ao próximo.

Outras Ondas* – O poder dos avessos


Para onde vai minha vida e quem a leva?
Por que eu faço sempre o que não queria?
Que destino contínuo se passa em mim e na treva?
Que parte de mim que eu desconheço é que me guia?

Maria Bethânia, 1973
A inveja do colega de trabalho, que inspira desconfiança contínua, oferece a você uma importante lição. Também fique atenta à arrogância daquela atriz da televisão, com cara de santinha, que leva você a mudar de canal sempre que ela aparece em uma entrevista. A atriz, o colega e tantos outros intragáveis podem ser, na verdade, porta-vozes de alguém que você finge não ver, mas que estará do seu lado até o fim: sua sombra. Ela é a face inconfessa, que, apesar de ignorada, não se silencia. Projetada nos outros, ela grita aos berros os seus defeitos. Mas também traz consigo uma pérola ao questionar o papel de perfeição que, ingenuamente, tentamos atrelar à nossa imagem.

Quando a sombra se manifesta, pensamentos e emoções se tornam arredios. Acabamos por desconhecer nossos gestos e palavras proferidas. É como se algo nos tivesse possuído – “não sei onde estava com a cabeça”, “estava fora de mim” e outras frases surgem quando conteúdos sombrios irrompem do inconsciente e nos dominam… Somos surpreendidos numa dinâmica de dominação, autossabotagem e entrega franca aos instintos – sintomas da ausência de reflexão, personificados no tarot com a carta n°. 15, O Diabo.

O conceito de sombra foi defendido pelo psiquiatra suíço C.G. Jung no século passado. Recentemente, o assunto ganhou popularidade graças à literatura de autoconhecimento. Por semanas, O efeito sombra (Ed. Lua de Papel) ficou no topo dos mais vendidos, impulsionado pela popularidade dos autores, especialmente do indiano Deepak Chopra, autor de As sete leis espirituais do sucesso (Ed. Best Seller). O livro permite, a partir de exemplos e testes, reconhecer o papel e a proporção da sombra na vida cotidiana.

Apesar dos exemplos citados no início, não podemos reduzir a sombra às nossas falhas de caráter. Metaforicamente, costumo dizer que ela é como um porão, que abriga tudo aquilo que não deve estar na sala de estar, por não ter espaço ou por não estar de acordo com a decoração que planejamos para agradar às visitas. Além dos defeitos, guardamos ali o que é inconveniente ou incômodo – não necessariamente mau ou inútil. “Se as tendências reprimidas da sombra fossem totalmente más, não haveria qualquer problema. (…) Ela contém qualidades infantis e primitivas que, de algum modo, poderiam vivificar e embelezar a existência humana; mas o homem se choca contra as regras tradicionais”, ressalta Jung, em Psicologia e religião (Ed. Vozes). É, segundo ele, o parceiro no treino de boxe – que expõe falhas e aguça habilidades. Ou seja, é o mal necessário para o nosso desenvolvimento.

Recentemente, uma reportagem exibida no Fantástico ressaltou um ótimo exemplo disso no Centro Educacional São Francisco, em São Sebastião (DF). Aterrorizados com a violência de alunos, a direção criou um serviço de mediação para apaziguar brigas entre estudantes e professores. Os mediadores foram escolhidos a dedo: os alunos mais trabalhosos. O depoimento de uma das jovens envolvidas no processo emociona: a brigona inveterada se tornou uma das mais ativas na atividade. Hoje, sonha ser juíza, promotora ou coisa assim. Descobriu que a violência instintiva era, na verdade, um potencial combativo vivido de forma distorcida – hoje reconhecido como uma habilidade para lutar pela paz.

A luz da consciência é capaz de provocar mudanças como essa. Por isso que o exercício de reconhecimento da sombra tem, como pressuposto, a quebra da intransigência. Basta lembrar que as verdades absolutas são capazes de despertar grandes sombras coletivas, e geram guerras e outras manifestações de desrespeito à individualidade: xenofobia, sexismo, homofobia, fanatismo…

Conhecer e aceitar que temos uma parte obscura de extrema força é a meta do desenvolvimento pessoal. É ter coragem de descer ao porão e ali encontrar ferramentas que, mesmo negligenciadas num determinado momento, são extremamente úteis à vida atual. Quantas e quantas vezes nos enxergamos traindo velhas convicções, repetindo erros que já deveriam ter sido assimilados, falando ou fazendo tudo aquilo que mais condenamos? Estarmos atentos a isso é perceber que estamos prontos para a mudança. A sombra é o berço dos nossos maiores conflitos. Mas é justamente com eles que nos lapidamos, durante a jornada, rumo à evolução.

* A coluna Outras Ondas é publicada aos domingos no blog da Revista do Correio: www.correiobraziliense.com.br

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