Produzi um artigo exclusivo para a 7ª edição da revista (Meia Um). O tema é a sombra do Brasil, que se projeta sobre a capital. ´
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O artigo também está disponível no site da (Meia Um).
Produzi um artigo exclusivo para a 7ª edição da revista (Meia Um). O tema é a sombra do Brasil, que se projeta sobre a capital. ´
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Criar os próprios conceitos e ter a convicção para defendê-los é um desafio no processo de desenvolvimento da personalidade. Nesse caminhar, somos influenciados diretamente por todos aqueles que nos atravessam: a sabedoria inquestionável dos professores, o poder de contestação inspirada pelos amigos na juventude, os mestres com quem convivemos no trabalho, os gurus e mentores que seguimos… Cada um nos propicia uma coleção de ensinamentos que copiamos, mesmo sem perceber. E, como quem borda uma colcha de retalhos, moldamos nosso próprio legado.
No entanto, basta uma simples observação do que fomos, somos e queremos ser para que entendamos como esses conceitos se transformam na medida em que o tempo passa. E nos cabe a digna lição de humildade para admitir: não, não estávamos certos. A vida mostrou, por A mais B, que a realidade não era tão nítida como imaginávamos. As soluções não eram tão sábias. A frase de efeito era linda de ser recitada, mas a lição que ela imprimia era difícil demais de ser aplicada na prática. Muitas vezes, nem nos chegava ao pleno entendimento. E agora, o que fazer com tudo isso?
O pensamento tende a querer dominar de forma dura, inflexível, contundente. A crença que atribuímos aos conceitos nos leva a querer cristalizá-los, como quem busca perpetuar algo no tempo. Não é à toa que, no tarot, essa função se expressa no naipe de espadas: o aço frio, pontiagudo, sempre em riste, pronto para cortar as sobras e abrir o caminho para novos conceitos. Mas também aquele que é inflexível, impiedoso e intransigente, que gera dor quando se apresenta de forma assoberbada.
Os conceitos se transformam na medida em que a vida muda. E não há demérito nisso. É justamente o contrário: desde Darwin, aprendemos que a adaptação é aquilo que garante o desenvolvimento e a perpetuidade das espécies. Espertos são os que se permitem mudar. Em nosso psiquismo, funciona da mesma forma. Somos chamados, a cada dia, a experimentar novas formas de enxergar a si próprios e ao mundo que nos envolve. E percebemos que, a cada escolha, mudamos aquilo que somos. Naturalmente, nosso discurso também deve mudar. Definir-se é um exercício de plasticidade.
Olhar para o novo é excitante, mas também denota medo. Da mesma forma, é desafiador substituir as verdades antigas pelas novas – desde já, encare essas com desapego, como quem maneja ferramentas úteis para o hoje, mas que precisarão ser trocadas logo que perderem a utilidade para nossa vida.
Dessa forma, o passado se transforma num mero álbum de retratos, onde buscamos recordações de bons momentos e a memória dos erros que não devem ser cometidos novamente. Não deve ser plano de rota para o futuro, na medida em que percebemos que os nossos objetivos já não são mais os mesmos de antes. Basta lembrar que, ao baterem em sua porta, a pergunta que usualmente é “quem é?”. E nunca “quem foi?”. Até porque o nosso passado não é, certamente, a nossa melhor tradução.
“Nasce um deus. Outros morrem. A Verdade
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procure sem creias: tudo é oculto.
(Natal, Fernando Pessoa).
Uma das grandes críticas do mundo atual é a ausência de valores voltados à coletividade. Vivemos, dizem, em uma civilização pautada no egoísmo, repleta de valores predatórios. No entanto, a cada dia me deparo com pessoas que, por temerem a associação com esses papéis, sofrem justamente pela debilidade do EU. Na ânsia por dar certo nos papéis sociais, esquece-se de destinar o saudável espaço para os momentos de promoção de valores relativos à individualidade. Deixa-se confundir pelo eu-profissional, o eu-mãe, o eu-marido – e uma série de outros eus fragmentários.
Em psicologia analítica, cremos que esse EU se personifica no ego, o eixo que ocupa o centro da consciência. Ele é um complexo, ou seja, um emaranhado de imagens e sentimentos que se forma à medida que o indivíduo experimenta o mundo que o cerca. O ego funciona como o personagem central da história, o responsável pela execução das tarefas designadas pela totalidade psíquica, a quem chamamos self. Jung descreveu a formação do ego como ilhas de consciência que emergem do oceano do inconsciente. Ao se aglutinarem, essas ilhotas constituem a imagem que temos de nós mesmos – seja ela na dimensão corporal, psíquica ou espiritual.
A formação do ego se inicia desde o momento inicial da vida. Porém, ela tem um salto importante quando a criança para de se referenciar como “O Pedrinho” ou “A Carol” e se autointitula “eu”. Nesse momento, ela toma a consciência de que mora no “arquipélago” da consciência, e não mais no inconsciente indiferenciado. Os pais percebem isso claramente: em geral, vem acompanhado por uma fase questionadora, cheia de birras e tiranias, lá pelos 2 anos de idade. O ego ganha um novo upgrade na adolescência (com as mesmas birras e tiranias), onde há uma afirmação de traços da personalidade a partir do desprendimento ou identificação com as características herdadas dos pais. O eixo da consciência se completa por volta dos 21 anos, quando o sujeito se diferencia dos demais a partir de traços únicos de personalidade.
Porém, muitos se esquecem de continuar fortalecendo esse eixo. Deixam de lado elementos que lhe são favoráveis, diria imprescindíveis, para aguentar as adversidades que o mundo impõe. O Eu se transforma num resolvedor de problemas do cotidiano – e valida-se tanto nesse papel, a ponto de esquecer-se de aproveitar as recompensas diante dos feitos heróicos que realiza. A vida competitiva faz com que não haja sossego: a paz ficará para o futuro, quando tudo estiver organizado. Mas e que dia saberemos que o tal futuro chegou? Chegaremos ao dia mágico destinado a descansar e aproveitar a vida?
Nessa roda viva, o eu-herói se encarrega dos próprios problemas, dos problemas dos semelhantes e dos problemas da humanidade. Não defendo aqui a individualidade exacerbada, absolutamente. Mas é preciso saber reconhecer que um soldado ferido pode onerar, e até mesmo prejudicar o andamento de uma guerra. O reconhecimento das próprias feridas tem sido um problema constante. A tendência do mundo é de cobrar que se faça mais, e mais, e mais. Não há mais razoabilidade para admitir-se infalível. No íntimo, o eu-heróico se queixa de ser humanamente imperfeito.
O tempo para refazer-se das batalhas diárias se transforma em frivolidade. Transfere-se os méritos a outros; lidar com troféus torna-se um enfado. É como se fosse proibido ser feliz: deve-se “correr atrás”, pois o tempo passa rápido e é inadmissível deixá-lo escapar entre os dedos. Mal percebem que, quanto mais obstinado se estiver com esse propósito, sobra menos tempo para viver.
O ego é o veículo nessa jornada. E, como tal, merece passar por revisões constantes para que possa se manter funcionando plenamente. Entre os itens a conferir, estão o comprometimento com as atividades que me conferem prazer e descontração, além do respeito com o corpo – que nem sempre diz sim a todos os embates que o herói resolve abraçar. Estar ciente desses fatores é lidar, sem culpa ou constrangimentos, com as maravilhas que o mundo propicia.
O candomblé é uma religião originária de gente sofrida. Pela fome, pela guerra, pela desigualdade. Nela, são cultuados energias da natureza personificadas, chamadas orixás. É como se o vento tivesse corpo e personalidade, com seus gostos e contragostos. As pedras, a água, a lama, as folhas… Tudo que é fruto da criação é orixá. A comida, elemento primordial para manutenção da vida, também é divina. Não podia ser diferente num povo assolado pela terra improdutiva e que aportou em terras brasileiras pela via macabra da escravidão. No candomblé, Deus come e se contenta quando comemos com Ele.
A comunhão se dá de forma simbólica. Assim como o pão e o vinho se figuram no próprio corpo crístico de Jesus, as comidas preparadas e oferecidas aos orixás se transformam na energia das divindades. Depois de sacralizado, o alimento se transforma em axé, a força dinamizadora que conduz a vida.
As comidas de cada orixá ajudam a traduzi-lo, a partir de suas características e predileções. Assim, Oxóssi, o caçador, gosta de feijão torrado – comida prática, leve e forte, que garante a subsistência cada vez que ele se entoca na mata. Yemanjá, dona das cabeças e do equilíbrio psíquico, come do manjar de arroz, tão gelatinoso como o cérebro. Omolu prefere as pipocas, que florescem assim como a varíola e demais doenças infecciosas da pele, que remetem aos males que o dominaram na infância.
O amalá de Xangô, o orixá da justiça, é mais que uma receita a ser seguida, é aula de mitologia. O quiabo é cortado com cuidado em pedaços pequenos, preferencialmente sem que as sementes sejam afetadas pelo fio da faca. Temperado com camarão seco e cebola moídos, o legume vai cozinhar até que as sementes fiquem graúdas e rosadas. A comida é arrumada numa gamela de madeira – diferentemente dos outros orixás, que comem em louça ou barro. Xangô assim prefere como sinal de submissão, uma promessa que fez a Oxalá, seu pai. Conta o mito que, numa ocasião, guardas do reino de Xangô aprisionaram o velho num estábulo ao pensar que ele havia roubado o cavalo do rei. Ao descobrir a injustiça, o governante disse que comeria em gamelas, assim como os animais, para que ninguém esquecesse o peso da negligência. Na arrumação do amalá, são colocados 12 quiabos com a coroa para cima – para lembrar os 12 ministros de Xangô – e no centro vai um orogbô, o fruto africano que remete ao próprio rei.
Yansan, a esposa dileta de Xangô, é vista como a mais curiosa e desaforada dos orixás. Ela não se conformava com o fato de o marido ter o domínio sobre o fogo. Queria descobrir qual era o segredo para o domínio do elemento. Um dia, ao mexer nas coisas do marido, acabou sendo encantada por uma magia, que a levava a cuspir labaredas sempre que abria a boca. Desde então, ela ganhou o domínio dos acarajés. Os bolinhos de feijão, quando fritos no azeite corado do dendê, ganham a cor do fogo. Agora, Yansan não cospe fogo, e sim os coloca para dentro, como quem engole brasas. E vem daí a tradição da culinária baiana de vender o bolinho nas ruas: o ofício era, originalmente, um dever das noviças iniciadas para a orixá.
Dois orixás merecem destaque quando o tema é o banquete dos deuses. Em primeiro lugar, Exu. O mais controverso dos orixás, diretamente ligado ao funcionamento do corpo, tem fortes ligações com a alimentação. Ele é aquele que primeiro come nos rituais. Alimenta-se de tudo que há. Precisa comer primeiro para não perturbar o culto aos demais orixás. Quando nasceu, Exu tinha um apetite insaciável. Comeu todos os legumes e raízes, todos os animais terrestres e aquáticos, pedras e até a própria mãe. Foi detido pela espada do pai, que o dividiu em inúmeros pedaços – trama bem edipiano, vale ressaltar. Apesar de se saciar com qualquer comida, a sua favorita é a farinha misturada com dendê cru – comida de preparo simples e rápido, ágil para aplacar a fome voraz que pode se manifestar a qualquer instante.
O último orixá que come é Oxalá, o grande responsável pela criação do mundo e dos homens. A ele é destinado o acaçá, ou ekó, que consiste num mingau de milho branco moído e posteriormente embalado em folhas de bananeira. Quando esfria e descansa, ganha um formato piramidal. O branco imaculado, semitransparente, lembra o líquido seminal – a base da criação, origem da vida, fluido sagrado para os africanos.
A crença do candomblé se baseia numa premissa: Deus, em suas mais diversas faces, gosta tanto dos homens que quer vê-los sempre em festa, com muita alegria e dança! Diante desse ambiente, os orixás não se contentam em simplesmente assistir: tomam seus noviços por possessão e, ao serem vistos pelos demais, distribuem a sua força. Quando a cerimônia parece ter chegado ao fim, surgem dos fundos das cozinhas imensas panelas, ricas em cheiros e sabores. A primeira porção das comidas foi oferecida aos orixás, em agradecimento. E também com votos de que o restante da panela se transforme em energia, axé, que alimenta o corpo e cura a alma. A hora do ajeum, a refeição que é compartilhada aos convidados. Só então a festa se encerra.
Para os desavisados, oferecer comidas e sacrifícios aos deuses pode soar primitivo – ou até mesmo desperdício. No entanto, o que alimenta os orixás é a crença do homem na natureza, como instrumento de crescimento e socialização saudável. É essa fé que o santo come.
A prática da psicoterapia me ensina, a cada dia, a mais valorosa lição do ofício do analista: o ganho compartilhado. Cada vez que um cliente senta diante de mim, busco seguir a máxima ensinada pelo velho Jung: esqueça tudo que leu, tudo que viveu, quem você é ou deixou de ser. Concentre-se diante do novo, desconhecido e surpreendente mundo da psique de quem se apresenta. Só assim se consegue desempenhar o serviço da promoção e ampliação da consciência.
Falar é visto como um instrumento terapêutico desde a antiguidade. Nos primeiros hospitais gregos, os pacientes passavam por uma longa entrevista – independentemente de terem ido parar ali por um problema do corpo ou da alma. Só então receberiam o tratamento necessário, em prol da cura.
Essa é a base para o exercício das diferentes escolas de psicologia e de psicanálise. O fundamento é de que, a partir da expressão de suas angústias, o indivíduo ganha a possibilidade de compreender melhor sua realidade, favorecendo as transformações necessárias. A melhora, no entanto, não está simplesmente no falar, mas principalmente no “ser ouvido”. Nesse ponto, entra a eficácia do terapeuta: ele não deve simplesmente escutar os relatos apresentados, mas principalmente ter a atenção plena sobre o que é dito. E, a partir de então, intervir com perguntas que favoreçam a reflexão não óbvia. Assim se desenvolve o contaponto necessário, que colocará em xeque os conceitos prefabricados que o cliente ou paciente carrega.
Desconhecer é uma prerrogativa básica para que um bom trabalho de análise se desenvolva. É preciso se despir de preconceitos e de teorias que condicionam nosso olhar ao mais fácil. Abandonamos a tentadora fórmula da “cama de Procrusto”, o personagem da mitologia grega que, passando-se por um anfitrião impecável, oferecia pouso aos viajantes. Ao serem recebidos, os visitantes se deparavam com uma cama de ferro para dormir. O problema é que Procrusto impunha a seus hóspedes uma sina terrível: os que eram grandes demais para a cama tinham as pernas cerradas; os baixinhos eram esticados para ocuparem-na por inteiro. Males de quem enxerga a realidade como uma medida imutável. Males igualmente nocivos dentro do setting terapêutico, quando se ignora a unicidade do cliente ao tentar enquadrá-lo numa determinada patologia ou distúrbio. Jung também nos ensina: tratemos doentes em vez de doenças.
Um ganho só é mútuo quando o sacrifício entre as partes é mútuo. Por um lado, é necessário manter uma relação desigual entre as partes de um processo de análise, para que a função terapêutica não se confunda com uma amizade – improdutiva, injusta e oportunista, onde um dos “amigos” se beneficia economicamente do outro. Ao manter o desprendimento e a entrega diante de cada atendimento, o terapeuta o transforma em um momento único de promoção da consciência. Favorece a quem atende, assim como favorece a si mesmo.
São diversos os motivos que levam alguém a iniciar um processo de análise: a necessidade de superar, a busca pelo autoconhecimento e até mesmo um falso status que a atividade envolve. No entanto, o que só se descobre durante o processo é que, para a grande maioria, a motivação inicial declarada é pequena demais diante do que será abordado. O mergulho vai além daquilo que foi estimado, coloca o indivíduo em confronto com elementos até então ignorados. Dói, angustia, revolta. Da mesma forma, o ganho também costuma ser maior que o esperado. Gratifica, elucida, facilita. Ao nos jogarmos para dentro, percebemos que somos muito maiores do que a consciência era capaz de perceber. E, cada vez que voltamos à tona, emergimos mais fortes, mais inteiros. Fiéis a aquilo que verdadeiramente somos.
“Um encontro de dois: olho a olho, cara a cara
E, quando estiveres perto, arrancarei teus olhos
E os colocarei no lugar dos meus,
E tu arrancarás os meus olhos
E os colocarás no lugar dos teus,
Então te olharei com teus olhos
E tu me olharás com os meus.
Assim até a coisa comum serve ao silêncio e
Nosso encontro é a meta sem cadeias:
O lugar indeterminado, um momento indeterminado,
A palavra indeterminada ao homem indeterminado.”
J.L. Moreno.